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Música

Gisele Rocha, a guitarrista brasileira muçulmana, está de banda nova

A guitarrista de heavy metal, que ganhou notoriedade uns anos atrás por tocar usando um niqab, agora faz parte da Eden Seeds, banda que toca em São Paulo, nesta quarta-feira (29).

Gisele Marie Rocha. Todas as fotos pelo próprio autor.

Uma subida íngreme separa a casa de Gisele Marie Rocha do supermercado mais próximo. Era uma tarde de terça-feira com céu cinza que anunciava um temporal em Santana, bairro da zona norte de São Paulo. A figura de preto cumpria seu trajeto com certa dificuldade, que era acentuada pelo niqab — véu islâmico que cobre o rosto, deixando apenas os olhos à mostra — e principalmente pelo isdal, tecido que vai da cabeça aos pés.

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De pele clara e um par de olhos verde-escuros circundados por um intenso e cuidadoso traço de delineador, Gisele usava luvas e meias tão impecavelmente negras quanto a vestimenta principal. O padrão só era rompido em dois detalhes: o broxe dourado com um pequeno pingente vermelho e as sapatilhas — pretas, mas preenchidas com bolinhas rosas.

A estampa do calçado justifica-se pela combinação com outro acessório indispensável: sua guitarra, a “Polka”, uma Flying V personalizada especialmente em homenagem ao modelo clássico do guitarrista norte-americano Randy Rhoads, com bolinhas rosas no lugar das brancas.

A banda Eden Seed antes do ensaio.

Aos 45 anos, a munaqaba (muçulmana que opta por usar o niqab) vive um momento de renovação em sua carreira como guitarrista de heavy metal, com a formação de sua nova banda, a Eden Seed, cuja estreia oficial rola nesta quarta (29), no show que acontece no Espaço Som, em Pinheiros. A banda que prevê entrar em estúdio nos próximos meses para gravar seu primeiro disco, também despertou a atenção do cineasta italiano Gianni Torres, que está no Brasil e irá filmar a estreia da Eden Seed, como forma de colher material sobre Gisele, personagem que pretende retratar no filme ainda sem nome.

Para o show desta quarta a ideia, conta Gisele, é tocar com instrumentos inusitados, algo como cuíca, ou talvez um alaúde. “Eu gosto da boa música. Esta transcende os gêneros, que para mim são convenções mercadológicas”, declarou. O que ela procura é a “mistura descompromissada que surge por exigência da música”. Não é difícil entender o apreço pela diversidade: “Eu mesma sou uma mistura: brasileira, neta de alemães, muçulmana e toco metal”.

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Gisele, além de mulçumana convertida, é guitarrista egressa da Spectrus. A banda, criada por seus irmãos nos anos 1980 e 90, renasceu em 2012 com novos músicos. Gisele, à época cursando Psicologia e afastada da música (à exceção de alguns trabalhos com jingles), foi convidada para integrar a nova formação da banda e embarcou na tentativa de ressuscitar o grupo. Mas após três anos de ensaios, apenas um show e nenhum disco lançado, decidiu partir para algo novo. Buscando uma sonoridade própria, hoje sente-se livre para se dedicar a experimentações incomuns no universo do metal, acompanhada pelo vocalista Cláudio Marchese, o baixista Caio Caruso e o baterista Gilberto Meneses.

Eclética, a paulistana começou sua formação musical aos oito anos, tocando piano e estudando música erudita, mas aos 11 se “converteu” ao metal depois de ouvir o primeiro álbum do Black Sabbath. Mais tarde, reforçou sua paixão ao ganhar contato com outras bandas de peso, como Led Zeppelin, Deep Purple e Iron Maiden. Em seu repertório, porém, ainda resta espaço para a música barroca, além de blues, jazz fusion, rock de vários estilos e até flamenco.

Além de Rhoads, Zakk Wylde, Eddie Van Halen, Brad Gillis, Jimi Hendrix, David Gilmour e Howlin' Wolf são alguns dos músicos nos quais ela se espelha nas sessões de estudo de seis horas diárias, “de segunda a segunda”. Na hora de empunhar o instrumento, Gisele abre mão das luvas para fazer soar riffs e solos cheios de peso e personalidade, como pede o metal.

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RELIGIÃO

Muçulmana desde 2009, a guitarrista que usa niqab (muitas vezes chamado erroneamente de burca, que se diferencia por cobrir também os olhos) atraiu a atenção da imprensa nos últimos anos (aqui e aqui e aqui). Sua escolha pessoal por resguardar sua imagem, paradoxalmente, acabou por lhe render a visibilidade que pode contribuir para alavancar sua carreira.

Gisele mostrando a sua 'Polka'.

Alguns “irmãos” do Islã passaram a censurá-la, especialmente pelo tipo de música que pratica. “É Haraam!” (termo que se refere a comportamentos proibidos pela religião), sentenciam os mais conservadores. Na contramão, há uma turma de muçulmanos que até sobe no palco para sacudir o corpo e cantar. “Pretendo fazer muitos shows, Insha'Allah (‘se Alá quiser’, em árabe), em todos os lugares, porque tem muita gente querendo ver”, adiantou, erguendo as mãos aos céus.

Certa de que não atenta contra o Alcorão, Gisele deixa claro que Islã e música coabitam nela em perfeita harmonia. Um exemplo conhecido da dissociação entre as crenças pessoais e o exercício artístico? Ela logo cita a endiabrada Slayer, uma conceituada banda norte-americana de metal que trata sobre temas satânicos em muitos de seus trabalhos, enquanto alguns integrantes são cristãos praticantes. Incongruência ou apenas “liberdade de criação artística”? Gisele escolhe a segunda opção sem hesitar.

Extraindo o melhor (e mais pesado) som de sua 'Polka'.

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Conversar com Gisele, aliás, é uma experiência linguística no mínimo curiosa. Dividem espaço em seu vocabulário gírias consagradas pela juventude brasileira, como “de boas” (uma de suas preferidas), termos em inglês (em que é fluente) e palavras e expressões árabes, que são vocalizadas numa profusão de ás, resultado da complexa romanização do sistema de escrita árabe. “Gostaria de falar até mandarim, mas infelizmente não tenho tempo de estudar”, lamentou.

Criada em berço cristão, mas pouco praticante ao longo da vida, Gisele sempre manteve uma espiritualidade peculiar, sem muitas regras ou costumes. Seu despertar islâmico aconteceu em 2009, um ano delicado para a aspirante a psicóloga, que começou com a perda do pai, Glézio. Assim como a esposa, Maria, o homem tinha gosto refinado para a arte, era mineiro, católico e filho de alemães. Ele foi responsável por instigar nela o interesse pela cultura da Arábia ao lhe dar Lendas do Deserto, livro de Malba Tahan (pseudônimo do escritor brasileiro Júlio César de Melo e Sousa). Passado o luto, Gisele encontrou na internet um curso de língua árabe. Aficionada por literatura, logo chegou ao Alcorão, em busca do valor poético da obra. Entretanto, logo no começo da leitura foi arrebatada ao passear pelas suras (como são chamados os capítulos do Alcorão) e ayas (os versículos do livro).

ATESTADO DE FÉ

Ao terminar a leitura do Alcorão, entrou em um momento de profunda reflexão a respeito de sua vida e de sua fé. No mesmo ano, contando com o apoio da mãe, proferia a Chahada, atestado de fé que constitui o primeiro dos cinco pilares do Islamismo. Os outros quatro são: orar cinco vezes ao dia (salat), em horários específicos, conforme a posição do sol; pagar anualmente o zakat (em prol de uma purificação simbólica, o muçulmano deve se desapegar de sua riqueza por meio de doações aos menos favorecidos na comunidade); cumprir o jejum no mês do Ramadã (saum); e, enfim, realizar, desde que tenha condições físicas e financeiras e disponha de tempo, a peregrinação a Meca — chamada de hajj.

No processo de conversão, Gisele diz ter percebido “que já era muçulmana e não sabia”. Poucas adaptações foram necessárias, uma vez que ela já era abstêmia e muito “hiponga” de alimentação (o Islã proíbe o consumo de carne suína). Aderiu ao sunismo, corrente seguida por mais de 80% dos muçulmanos, e é totalmente contra grupos terroristas e radicais como Estado Islâmico, Boko Haram e Talebã. “Eles seguem Deus praticando a violência, a opressão, o assassinato? Não há qualquer justificativa para o que fazem. Reprovo veementemente todo movimento que atente contra a liberdade, contra a vida, contra a paz; isso tudo é anti-islâmico, e, acima de tudo, contra Deus”, condenou.

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Durante a subida ao mercado, um toque de celular começou a vir do que parecia ser algum lugar dentro do tecido vindo do Kuwait. “Estou com minha bolsa na roupa”, se antecipou, enquanto pelejava para localizar o telefone. “Alô. Eu tô indo no mercado agora, filha. Um litro de leite? Tá bom. Beijo, tchau.”

Criada “em uma tradição germânica”, ela se recusa a “expor” as quatro filhas (duas biológicas, de um relacionamento antigo, e duas adotivas, todas igualmente amadas) e revelar seus nomes, assim como não dá muitos detalhes sobre o breve casamento com um muçulmano, que acabou recentemente.

A despeito disso, Gisele está sempre disposta a conversar, o que ela faz com tom de voz naturalmente alto. No mercado, depois de enroscar a roupa em uma prateleira, puxou um assunto qualquer com a funcionária do caixa. Na hora de embalar as compras, solicitou socorro para abrir as sacolas plásticas, tarefa impossível (ou quase) com as luvas: “Eu costumo conseguir, mas demora”.

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