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Música

Como Flying Lotus, Kamasi Washington e Brainfeeder Estão Recolocando o Jazz no Pop

O selo fundado pelo FlyLo tem usado suas raízes na cena beat underground de Los Angeles para fazer com que ouvir jazz se tornasse 'cool' de novo.

Thundercat, Kamasi Washington e Flying Lotus, imagem por Lia Kantrowitz Você está ouvindo um disco de jazz. Há a bateria frenética, levemente irregular; o zunido de um contrabaixo; trechos virtuosísticos em um piano Steinway invisível – tudo isso pontuado pelo velho conhecido murmúrio de um sax tenor. A melodia, deliberadamente distinta dos clássicos desgastados do gênero, poderia facilmente ser percebida como uma composição nova. Mas não é. Trata-se de uma versão acústica de “Never Catch Me”, o primeiro single (com participação de Kendrick Lamar) do disco You're Dead!, lançado em 2014 pelo produtor de música eletrônica Flying Lotus. O baterista Kendrick Scott escolheu a canção que desafia os gêneros como o único cover de seu futuro disco We Are The Drum, com lançamento agendado para setembro próximo, pelo lendário selo de jazz Blue Note. “É uma transcrição do rap de Lamar, seguindo o fluxo e o ritmo”, diz Scott no release do disco. “Raps são uma extensão do que nós fazemos como bateristas… Um tipo de busca por uma nova forma.”

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“Quando começaram a ver o Flying Lotus como um artista do jazz?”,

perguntou um redditor aborrecido

, logo após o lançamento de

You're Dead!

, o qual, apesar de suas raízes muito óbvias no jazz fusion (e do sucesso de crítica) foi quase que automaticamente omitido do escopo dos próprios críticos de jazz, para os quais Flying Lotus é, irrevogavelmente, um artista da música eletrônica. A distinção não foi tão fácil para a população do Reddit, que (naturalmente) debateu longamente o assunto: é possível fazer jazz sem tocar um instrumento? O Flying Lotus faz improvisos? Para cada ideólogo da espontaneidade, havia listas correspondentes de compositores famosos do jazz (Charlie Mingus, Duke Ellington); para cada critério aparentemente definitivo, havia um potente exemplo em contrário. Entre os dissidentes, o usuário billymcgee, que concluiu: “Toda vez que você ouvir 'Never Catch Me', ela vai soar basicamente a mesma coisa.”

“É uma questão interessante”, diz o saxofonista Kamasi Washington, cujo disco recente

The Epic

foi lançado pelo selo Brainfeeder, do Flying Lotus. O disco o fez passar rapidamente de uma presença forte na cena de Los Angeles para o músico mais falado do momento no mundo do jazz. “Jazz é só um termo. Na minha opinião, é um termo muito mal aplicado, porque acaba sendo restrito demais ou amplo demais. O que é o jazz? Se Jelly Roll Morton é jazz e John Coltrane é jazz, então como dizer que Flying Lotus não é jazz?”

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Os aficionados (como o pessoal do subreddit r/Jazz) saboreiam a oportunidade de acrescentar e excluir novos membros aos eleitos e laureados do gênero, com a mesma presteza que seus músicos fazem campanha para que se ignore o selo – que hoje carrega uma bagagem de um século – de uma vez por todas. “Música Negra Americana” tornou-se o termo escolhido por um certo setor do gênero, ao passo que outros da vanguarda adotam “art music contemporânea”. Contudo, o jazz persiste, enquanto música e enquanto nomenclatura, provavelmente porque, como diz Washington, “se não chamarmos isso de jazz, vamos chamar de que, então? Não consigo pensar em nenhum outro termo.”

O que dá um foco à questão é que o elogiado disco de Washington rompeu sem esforço a parede, tantas vezes intransponível, entre o jazz e, bem, o não-jazz, sendo tema de matérias elogiosas nos mesmos sites e publicações que promovem os novos singles do Future. Os discos de estreia de músicos do jazz não são, tradicionalmente, resenhados pela Rolling Stone ou pela Pitchfork. As raízes da Brainfeeder na cena underground de beat music de LA significam que o selo já conta com um público jovem e curioso, e também com a atenção dos veículos de imprensa lidos por esse público. Mais facilmente do que até o próprio selo esperava, foi possível usar essa influência para fazer com que ouvir jazz se tornasse cool mais uma vez. Kamasi Washington, foto por Mike Park, cortesia de Kamasi Washington “Sinceramente, não estávamos preparados”, diz Adam Stover, dirigente da Brainfeeder. “Estávamos com tudo engatilhado, mas encomendamos um certo número de prensagens do disco, e a demanda completamente excedeu esse número. Tivemos que mandar fazer mais milhares e milhares de CDs”. Além da associação com a Brainfeeder (e, é claro, da música), Washington se destacou de seus companheiros do jazz graças a uma participação de destaque no disco To Pimp A Butterfly, de Kendrick Lamar, alguns meses antes do lançamento de The Epic. “Isso o arremessou até a estratosfera”, diz Stover sobre o momento fortuito, que afirma ter sido acidental. Tornar-se o músico de jazz mais falado de 2015 por aparecer em um dos principais discos de hip-hop do ano, contudo, continua sendo algo bastante improvável.

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“Isso deixou a indústria de sobreaviso, acho”, diz o trompetista e ganhador do Grammy Terence Blanchard (outro contratado da Blue Note) sobre o sucesso de The Epic. “As pessoas estão falando no assunto, e ele lançou pela Brainfeeder – não por um dos grandes selos. Está havendo uma grande mudança de paradigma nesse país, no mundo. Acho que esse disco representa uma grande parte dessa mudança”. Embora talvez o disco pareça quase ter emergido do éter (Washington, até o momento, mal chegou a tocar fora de Los Angeles enquanto líder de banda), é, na verdade, o fruto de uma comunidade musical antiga e completamente distinta, entrelaçada com os mundos do hip-hop, da música eletrônica e do jazz – só foi preciso aparecer um selo igualmente singular que levasse os sons daquela comunidade para o povo.

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“O próximo disco que será lançado pela Brainfeeder talvez pareça, à primeira vista, uma certa mudança de direção por parte do selo”, entoam os materiais promocionais do disco Endless Planets, de Austin Peralta, lançado em 2011, “mas não se poderia estar mais enganado”. Peralta, um prodígio de 21 anos que já lançara dois discos com versões de clássicos do jazz pela Sony Music Japan, foi o homem responsável pela “apresentação à Brainfeeder de um tipo pra-frente de jazz band”, de acordo com Flying Lotus (também conhecido como Steven Ellison). Mas a Brainfeeder vem se aproximando do mundo do jazz quase desde sua origem, em 2008 – uma transição que há muito poderiam prever os que conhecem de onde vem Flying Lotus.

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Sobrinho neto de Alice Coltrane – sim, a segunda esposa de John Coltrane (e ela mesma uma musicista inovadora) – Ellison diz ter sido “exposto a muitas dessas coisas, novas e velhas, desde bem novo. Sempre tive respeito pelo som”. Sua família patrocinou o John Coltrane Festival, de LA, onde, relembra ele, “Thundercat [também conhecido como Stephen Bruner], Ronald [Bruner, irmão de Stephen] e Kamasi tocaram quando ainda adolescentes. Na época não nos conhecíamos.” (Isso foi em 1999, e o grupo, conhecido como Kamasi Washington and the Young Jazz Giants, foi o vencedor da competição naquele ano). O terceiro disco de estúdio de Ellison, Cosmogramma, saiu em 2010 – não muito depois dele e Bruner finalmente terem se conhecido. “Foi meio que ali que as coisas começaram a aparecer, no que diz respeito à relação entre FlyLo e o jazz”, diz Stover sobre o disco, que conta com participações de Thundercat, Ravi Coltrane, primo de Ellison, Thom Yorke e outros.

“Quando comecei a conviver com gente como Thundercat e Kamasi, senti uma confiança maior para ir atrás [do jazz]”, diz Ellison. Apesar de suas ligações genealógicas com a cena de jazz de LA, ver a antiga comunidade da cidade em primeira mão ainda assim foi uma surpresa para o produtor. “Fiquei pensando: 'Como que isso aqui está acontecendo? Esses caras são tão novos e já estão destruindo'”, diz. “Ninguém tem conhecimento disso aqui, todo mundo reclama, diz que jazz é uma merda, e aí tem esses caras que tocam no Piano Bar, um barzinho pequeno bem no meio de LA, toda quarta-feira, e arrebentam. Tipo, como assim, como eu não fiquei sabendo dessas coisas?”

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Ele não foi o único a deixar passar em branco o pequeno mas dedicado grupo de músicos. “Meu relacionamento com [a cena de jazz como um todo] foi um relacionamento anônimo – é quase como se, de algum modo, eles não fizessem ideia do que estávamos fazendo no nosso canto”, diz Washington.

Thundercat, foto cortesia de Thundercat “Em LA, o holofote não é tão potente assim, embora, é claro, gente excelente tenha surgido na cidade no decorrer dos anos”, acrescenta Stover, aludindo a ícones do jazz como Dexter Gordon, Charlie Mingus, Roy Ayers e Billy Higgins. “Na maior parte das vezes, eles tiveram liberdade total para fazer o que bem quisessem, e esse meio que é o etos da nossa gravadora. Há uma liberdade, e ninguém tem expectativas de que você se iguale a essas figuras maiores da história. Pode só colocar dez amigos numa sala, que sabem tocar muito bem, e eles vão fazer um jam, e dali vai sair uma coisa nova.”

O The West Coast Get Down, como se chamam os ex-residentes do Piano Bar, vêm tocando juntos desde o segundo grau – embora, na época, usassem um nome bem mais utilitário: Reggie Andrews' Multi-School Jazz Band. Na banda de Andrews, Washington e ambos os Bruners se juntaram ao baixista Miles Mosley, ao baterista Tony Austin, ao tecladista Brandon Coleman, ao pianista Cameron Graves e ao trombonista Ryan Porter, dando continuidade às amizades musicais que tiveram início quando muitos deles passaram a infância juntos, no centro-sul de Los Angeles.

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“Tive a sorte de crescer sendo exposto a muito [jazz]”, diz Stephen. “Não de uma maneira brega, tipo alguém dizendo: 'Você não sabe nada sobre isso, seu fedelho! Este aqui é Roy Ayers!' A gente aprendia tipo umas quatro ou cinco músicas do Gerald Wilson para tocar no Playboy Jazz Festival todo ano com o Reggie Andrews – [éramos parte de] toda aquela instituição. Era uma coisa genuína. Eu me sinto quase abençoado e mimado de poder dizer que venho desse tipo de linhagem aqui.” The West Coast Get Down, foto por Mike Park, cortesia de Kamasi Washington

Muitos integrantes do West Coast Get Down ganhavam a vida na imensa cena de estúdios de LA, mas continuaram comprometidos com sua residência no Piano Bar, criando uma noite que ficou famosa como um dos principais eventos musicais da cidade (um vendedor da Amoeba Records chegou até a recomendar à autora dessas linhas que comparecesse, durante uma visita a LA, em 2013). “Sempre tocamos para públicos que não se viam como fãs de jazz”, diz Washington sobre a residência. “Eles às vezes não percebiam que estávamos tocando jazz. Gostavam da coisa e pronto. As pessoas chegavam e perguntavam: ‘Que tipo de música é essa? Estou vendo, o contrabaixo… é jazz?'”

Logo depois de se conhecerem, Ellison propôs a Kamasi que fizesse um disco para a Brainfeeder. “Eu nunca tinha tentado falar com ninguém sobre fazer um disco para um selo antes”, diz ele. “Quando me perguntaram pela primeira vez se eu queria fazer um disco para o Brainfeeder, perguntei [a Ellison]: 'Que tipo de disco você quer que eu faça?' Ele não me deu nenhum parâmetro – falou tipo: 'O que você quiser fazer.'”

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“Eu disse a Kamasi”, acrescenta Ellison, “faça o seu melhor. Mostre a que veio, faça aquilo que só você sabe fazer. Faça o que bem entender”. Kamasi disse a Stover que talvez precisasse de um tempinho para montar o disco. Isso foi em 2010.

Mais ou menos na mesma época, Ellison conheceu Peralta, por meio do artista de audiovisual Strangeloop (o responsável pelo hipnótico arranjo de palco de FlyLo). “Eu trouxe [o Peralta], e ele já conhecia o Thundercat”, diz Ellison. “Foi tipo, 'ah, agora faz sentido. Todo mundo meio que se conhece.'”

“[Austin] entregou um disco de piano jazz simples, e disse: 'Quero soltar isso daqui'”, relembra Stover. “Steve [Ellison] falou 'adorei, vambora.' Como alguém que basicamente havia soltado muita música de batidas eletrônicas, fiquei pensando: 'O que a gente vai fazer com isso?' Fiquei um pouco perplexo, porque era um gênero muito diferente”. O disco, uma obra evocativa e penetrante, demonstrou a habilidade de Peralta, sem se fiar excessivamente nela. “Acho que é disso que [o jazz] precisa”, disse Peralta à LA Record em 2011. “O jazz pode ser uma coisa tão convencional, e os públicos tão pomposos, que precisa desse tipo de recepção, precisa desse tipo de público, precisa desse tipo de energia. Quem pode dizer que o punk rock é mais hardcore do que o jazz? Isso não é verdade.”

Ele logo tornou-se parte essencial do coletivo da Brainfeeder, contribuindo no disco de estreia de Thundercat, The Golden Age of Apocalypse, e no disco de Flying Lotus Until the Quiet Comes (2012). Se alguém na Brainfeeder tinha dúvidas sobre adotar o termo “jazz”, o virtuosismo e o sucesso de Peralta as fizeram evaporar. “Sou um músico de jazz. A improvisação é de onde venho”, disse Bruner à Passion of the Weiss pouco depois do lançamento de seu disco. “Este é um passo na direção em que quero encaminhar a Brainfeeder”, disse Ellison à época sobre a associação de Peralta com o selo. O pianista morreu inesperadamente no final de 2012 – tinha apenas 22 anos.

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“Eu o considero um disco de jazz”, diz Ellison a respeito de You're Dead! – o disco que mereceu a distinção única de seus críticos todos usarem a palavra jazz, sem ser de fato classificado como parte daquele gênero.

Foi uma escolha consciente da parte de Ellison: uma reação ao conservadorismo do mundo do jazz. Da grande maioria das músicas lançadas atualmente, o produtor diz: “O som é maneiro, mas não sei de quem é. Não há muita individualidade e diversidade nos sons. É perfeito. Todo mundo fez cinquenta mil gravações, só para usar aquela que soou perfeita.”

“É quase como se [o jazz] tivesse se isolado depois de algum tempo”, acrescenta Bruner, cuja música também muitas vezes tocou a fronteira que separa o jazz do pop. “Fui chamado de elitista por alguns dos meus amigos algumas vezes. Eles dizem: por que você está ouvindo isso aí?”

“Mais ainda, sinto que se criou uma desconexão, abriu-se uma divisão”, conclui ele. Flying Lotus, foto cortesia de Flying Lotus

A um primeiro olhar, a relutância geral de rotular Flying Lotus como artista do jazz faz sentido. Afinal, há pouca coisa na imagem pública de Flying Lotus (exceto, talvez, por sua família) que sugira a ideia “músico de jazz”. Enquanto o jazz tradicionalmente significa instrumentos acústicos em casas noturnas aconchegantes e, cada vez mais, nos renomados teatros dos institutos de música do mundo (dentre os quais o Jazz at Lincoln Center é o principal), a música de Lotus é mais frequentemente vivenciada como inspiração para uma dança de fazer a terra tremer (com nenhum Steinway à vista). Se você não está sentindo o baixo bem no centro do seu ser, não está fazendo a coisa certa. Contudo, pelo menos em espírito, isso faz dele um digno continuador do legado do jazz como um gênero que amplia as fronteiras, e também um refrescante choque de energia nova.

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Herbie Hancock, parte icônica desse legado, não se incomodou com as casas de show (ou com os subwoofers) escolhidos por Flying Lotus. Os extensos créditos do compositor e pianista de jazz incluem ter participado do Segundo Quinteto de Miles Davis, e a criação de alguns dos mais queridos clássicos do gênero. Diversas vezes mencionaram Ellison para Hancock (de acordo com o gigante do jazz) como um dos “jovens com os quais talvez seja interessante trabalhar”, então ele convidou Ellison e Bruner para seu estúdio. A colaboração acabou resultando nas faixas Tesla”, que Ellison descreveu como “a fagulha inicial do disco” e “Moment of Hesitation”, ambas saídas de You're Dead!. Consta que Hancock mais tarde comentou, sobre seus novos parceiros musicais: “Se Miles estivesse vivo hoje, seria na companhia de vocês que passaria o tempo.”

Enquanto isso, do outro lado da cidade, no estúdio de outro titã da música, um outro disco com inclinações para o jazz ficava pronto: To Pimp A Butterfly. O elenco do disco é impressionante – junto com Flying Lotus, Thundercat e Kamasi, participam também Snoop Dogg e Kendrick Lamar.

“Eu trabalhava nos discos de Kendrick e de Lotus quase que ao mesmo tempo”, disse Bruner à

Billboard.

“Thunder [Bruner] vinha trabalhando em [

TPAB

] há quase dois anos”, acrescenta Stover. “Eu literalmente tenho demos no meu computador que são o núcleo daquelas faixas, antes de terem virado o que são hoje, porque se originaram em demos mais antigas que o Thunder tinha feito”. O primo de Bruner, Terrace Martin, foi parte igualmente essencial do disco. Um músico de jazz formado que começou a ganhar experiência junto do pessoal do West Coast Get Down, ele fez nome como produtor de hip-hop, trabalhando para artistas como Wiz Khalifa e Snoop Dogg (e também produziu

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o mais recente single de YG

, uma homenagem deslavada ao G-funk). Martin é creditado (em alguns casos várias vezes) em praticamente todas as faixas de TPAB.

A decisão de Lamar de usar músicos de jazz nesse disco (os heróis da cena do jazz Robert Glasper e Ambrose Akinmusire também aparecem) o coloca na vanguarda de uma minibolha de jazz/hip-hop. Menos de um mês após seu lançamento, Tyler, the Creator soltou Cherry Bomb, que conta com a participação do próprio Roy Ayers, também de LA. “Mandei [para Ayers] a música da qual eu queria que ele participasse”, contou Tyler a Tavis Smiley, “e ele falou tipo 'Tyler, essas mudanças ficaram maneiras, cara!' Ouvir alguém como ele, que vem trabalhando nisso desde sempre, reconhecer alguém como eu foi incrível”. A lenda do rap Ghostface Killah escolheu colocar seus versos sobre os sons embebidos de hip-hop do jovem trio de jazz BadBadNotGood, de Toronto, no recente disco deles chamado Sour Soul. E Chance the Rapper recuou um pouco dos holofotes e para dentro do coletivo Donnie Trumpet & the Social Experiment em seu mais recente lançamento, Surf – um projeto não tão irrefutavelmente jazzístico quanto um solo de Herbie Hancock, mas certamente embebido das sensibilidades do gênero.

Nada disso é novo, é claro. O hip-hop vem sampleando o jazz quase desde que surgiu, e usando bandas ao vivo desde os dias de Run-D.M.C. Tanto Washington quanto Martin e Bruner chegaram a participar da banda que Snoop levava nas turnês (“Cara, você tem mesmo que tocar todas essas notas?” Bruner certa vez lembrou do rapper ter lhe perguntado no palco). O último disco de Miles Davis, o “jazz rap” Doo-Bop, foi produzido por Easy Mo Bee, o mesmo cara por trás da mesa de som de “Party and Bullshit”. Foto por Mike Park, cortesia de Kamasi Washington

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The Epic, de Kamasi, contudo, não é hip-hop ou jazz rap. É jazz – jazz arrebatador, intransigente, na tradição de líderes de banda altamente conceituados como Sun-Ra. O nome “The Epic” tampouco é eufemístico: o projeto é composto de três discos, chegando a 173 implacáveis minutos. “O primeiro risco que ele correu foi simplesmente o de lançar toda essa quantidade de música”, diz Terence Blanchard. “Sei que algumas pessoas tentaram convencê-lo a não fazer isso”. O próprio Washington disse que, não fosse pela Brainfeeder, ele não “achava nem que teria saído, para ser sincero. Considerando só o tamanho da coisa, e os motivos pelos quais eu queria lançá-la.”

Em algum sentido, a relutância de um selo em lançar um álbum de três discos de um artista praticamente desconhecido fora de LA – um artista do jazz – seria compreensível (como certa vez disse Robert Glasper, “toda vez que entro nos mais vendidos, tenho que competir com Louis Armstrong”). Mas, ao desafiar o senso comum, a Brainfeeder tirou a sorte grande.

“Você faz música porque acha maneiro – qualquer um que chegue dizendo que sabe como a música será recebida pelos outros está meio que mentindo”, diz Washington. “Eu posso dizer que eu achava maneiro. Mas não poderia dizer que achava que seria recebido como foi.”

“Fiquei muito surpreso com como se saiu o disco de Kamasi, e como não perdeu força até hoje”, acrescenta Ellison. “Eu não sabia se as pessoas teriam alguma reação a ele”. O status da Brainfeeder como um selo que cria novos gostos, contudo, quase com certeza foi parte do improvável sucesso do disco. “Acho que meus fãs meio que esperam algo como [

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The Epic

] de mim”, diz ele. “Porque estabeleci meio que um lance de jazz com minha própria música, e isso meio que deu o tom um pouco para os lançamentos futuros.”

O selo Brainfeeder está levando o jazz para pessoas que não ouvem jazz – um sonho impossível para a maioria dos selos do gênero. “Está nos ouvidos de muita gente que nunca teria nem prestado atenção, se não tivesse ocorrido nesse contexto, se não tivesse se criado esse buzz”, diz Stover. Jazz é um gênero que acaba facilmente esmagado sob o peso de seu próprio impressionante legado, com incontáveis nomes célebres e um ar geral de seriedade que pode intimidar os recém-chegados. Artistas como Thundercat, Flying Lotus e Kamasi Washington estão modificando o contexto com suas abordagens despretensiosas, tirando o jazz da torre de marfim e ampliando o alcance de suas próprias músicas enquanto isso.

“Já enchi dois passaportes só trabalhando com música”, acrescenta Kamasi, que está prestes a embarcar em sua primeira turnê como líder de banda. Mas, de algum modo, minha própria música nunca chegou a sair da minha cidade natal”. Isso tudo está mudando, contudo.

“Agora esse cara, em vez de sair pelo mundo tocando músicas feitas por outras pessoas, sai pelo mundo tocando suas próprias músicas”, diz Ellison a respeito de Kamasi. “Esse para mim foi um dos motivos de criar o selo. É por esse motivo que quero trabalhar nisso, ver coisas assim acontecerem”. Há novidades a caminho também. “Esses caras que vêm tocando juntos há tipo 15 anos – eles agora têm um lar”, diz Ellison sobre o futuro da Brainfeeder no jazz.

“O que aconteceu com o disco do Kamasi é o que eu gostaria de ver acontecer com muitos outros discos que estamos investigando”, acrescenta Stover, “o nosso público ouviu e passou a adorar. Eles agora querem que lancemos discos do mesmo calibre, desse mesmo sabor”. O próximo lançamento de jazz pelo selo? Ainda nada confirmado, mas Ellison diz, à sua maneira impassível, que uma ideia que está no ar é “colocar o Kamasi meio que para supervisionar uma compilação de jazz da qual participariam todos os caras.”

O destemido otimismo da Brainfeeder e dos muitos músicos que orbitam em torno dela está fazendo renascer um veio independente há muito tempo subestimado por todo o litoral esquerdo do país – como acontece com o selo caseiro TDE, de Kendrick Lamar, em relação ao hip-hop. Como poderia uma comunidade unida, grande parte da qual não frequentou conservatórios de música e evitou os marcos tradicionais de sucesso da indústria, lançar os discos mais falados de jazz e hip-hop do ano (até o momento)?

“É assim que a gente faz aqui”, conclui Kamasi. “Você vai para o Palco Mundo, e rola uma jam session com todos aqueles músicos gospel e produtores de hip-hop. Talvez a única música que conhecem seja ‘Blue Bossa’. Mas e daí? Vamos tocar 'Blue Bossa'. Três vezes. Vai soar como 'Gin and Juice'”.

Natalie Weiner é escritora e vive em Nova York. Siga-a no Twitter.

Tradução: Marcio Stockler