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Música

Na feira de São Cristóvão, o happy hour do proletariado é tudo junto e misturado

No Rio de Janeiro, os trabalhadores comemoram o fim do expediente cantando em uníssono no karaokê — e a investigação do nosso repórter aponta que “Evidências” é a canção mais entoada por lá.

Todas as fotos de Leonardo Coelho.

O leãozinho da RAF Electronic — cujo design deve ter sido feito pela mesma equipe que desenvolveu o Dollynho, sem deméritos — surge na velha tela da máquina de karaokê pedindo para digitar os números da próxima canção. As seis mil opções se encontram em um livreto tipo menu de restaurante popular, só que ainda mais úmido de cerveja, refrigerante e outros fluidos não identificados. Passado de mão em mão, esses livros são uma espécie de Bíblia das máquinas de karaokê da Feira de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. E com R$ 2 você pode louvar a quem quiser. A única diferença é que, ao contrário das jukeboxes paulistanas, na feira carioca, ao invés de ouvir Frank Sinatra cantando “My Way”, você pode escutar a mesma canção na voz rouca de um senhor que provavelmente tomou algumas cervejas a mais ( não estranhe caso ele chore) e simplesmente entrou no boteco em que você e seu amigos íntimos estavam. Olhe pelo lado bom, o setlist que vocês fizeram provavelmente estava muito homogêneo, cheio de rockzinhos tipo Raimundos ou Los Hermanos e canções pop grudentas tipo Spice Girls. O senhorzinho fez um favor à noite de vocês. Ele sabe que o negócio em São Cristóvão é a mistura, inclusive no karaokê.

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Durante uma andança pela feira durante um final de semana de abril, bebi muito Guaraná Jesus, comi sarapatel (e detestei), planejei a ida ao próximo show do Pablo, aka Homem não Chora, e tentei descobrir qual a música mais tocada nas máquinas de karaokê da feira.

O empresário do ramo das máquinas de karaokê, Luiz Paulo, dono do Bazar da Cantoria, possivelmente o bar de karaokê mais famoso — e privativo para os mais sensíveis a infiltrações externas do local me avisa que há cerca de 38 máquinas espalhadas pela feira, cada uma com um livreto com cerca de seis mil músicas bastante desatualizadas. No bazar do Luiz, porém, o negócio é profissa. “Aqui temos 130 mil músicas atualizadas e o nosso próprio KJ, o VJ do Karaokê”. O bagulho lá é tão completo que até música do Estado Islâmico está no catálogo caso alguma vivalma tenha a moral de querer entrar no rol da ABIN, Polícia Federal e CIA por conta de três minutos de pura ironia. “Ninguém pediu até agora”, deixa claro Luiz Paulo. E sobre a música mais tocada? “Não acho que tenha uma mais tocada que as outras”, pondera.

A assessoria da GVK, empresa responsável pela divulgação do karaokê no Brasil, concorda com a afirmação de Luiz Paulo. “Por ter um público muito heterogêneo, não há na feira uma linha de preferência por uma canção ou outra”, pontuam os representantes da marca. “Não existe isso [de música mais tocada].”

Na tentativa de averiguar as infos, fui invocado enchendo a cara de Guaraná Jesus para essa importante missão de interesse público. Assim, partimos para um xaxado completo na feira.

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Com a hiperatividade que o Guaraná Jesus me trouxe, descobri que na Barraca Já Disse, por exemplo, as canções mais lembradas pelos garçons são “Evidências”, “Caça Caçador” e “Deslizes”. Na Barraca do Primo, por sua vez, Sidney Magal com sua cigana “Sandra Rosa Madalena” aparentemente reina forte, seguida por SPC com “Depois do Prazer”. Na Raiz do Maranhão, Araketu, Renato Russo, Paralamas e, de novo, “Evidências”, ganham a memória dos funcionários e frequentadores. Nos próximos dois bares a canção de Chitãozinho e Xororó também foi a primeira música imediatamente lembrada.

Eis que, entre os corredores estreitos da feira, no meio de um furacão de som vindo de todos os lados, ouço os versos daquela que pode ser a canção mais tocada da feira. Ainda me sentindo meio exagerado, chego perto e começo a cantar de levinho:

Quando eu digo que deixei de te amar

É porque eu te amo

Quem cantava não era um vaqueiro ou um neo-sertanejo cheio de tatuagens de gosto duvidoso e calça mais apertada que a da época áurea da Gang, e sim duas meninas tipicamente classe média do Rio de Janeiro e…peraí….

Chega de mentiras

De negar o meu desejo

Eu te quero mais que tudo

Eu preciso do seu beijo

Eu entrego a minha vida

Pra você fazer o que quiser de mim

Só quero ouvir você dizer que sim!

Finalizada o êxtase, converso rapidamente com a dupla para saber por que elas escolheram “Evidências”. “Essa é A MÚSICA de karaokê” comenta Julia, de 26 anos. “Quando eu venho pra cá, quero cantar esse tipo de música.” Sua dupla, Mariana, de 20 anos, confirma o que eu imaginava: “Eu não ouço isso isso em casa. Não gosto de sertanejo. Mas essa música é diferente.”

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Em pelo menos mais quatro bares em que estive na Feira de São Cristóvão, a tendência “Evidência” se confirmou.

Com a baixa da glicose do Guaraná Jesus, me acalmo e começo a procurar os especialistas para tentar entender por que todos gostam tanto do hit de Chitão e do Xororó. O primeiro é o ser de cabelos onduladamente dourados chamado Johnnie, o KJ do Bazar da Cantoria. Com 27 anos, o DJ de karaokê confirma a alta procura da obra do cantor José Augusto e eternizada na voz da dupla sertaneja. Já sabe até de cor o número da música: 3094. “Me lembra tempos mais tranquilos, de infância.” me conta Johnnie.

Já Juarez Marques, costumeiro frequentador da feira e karaoteca , o mestre do karaokê (sim, isso existe) três vezes campeão de melhor apresentador de karaokê do Rio, não aguenta mais ouvir a canção. “Ela é boa, mas cantam toda hora” me escreveu por Whatsapp.

Já para a outra karaoteca Gláucia, advogada com 15 anos de karaokê, resolvi tentar uma abordagem diferente. Mandei uma mensagem inocente, perguntando qual era a música número 3094. Em menos de um minuto ela voltou com a resposta que você sabe qual é. “Essa música hoje é tocada quando tem grupo de jovens e não-viciados em karaokê. Depois do décimo chope o grupo vai para o palco cantar juntos. É um hino”, explica Glaucia.

Um hino, terminologia bastante específica. Um hino louva, adora algo ou alguém, e talvez seja essa a diferença entre “Evidências” e aquela que é, sem dúvida, a mais famosa música de karaokê de todos os tempos: “My Way”, do Frank Sinatra.

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Digamos que “Evidências” é o “My Way” da feira de São Cristóvão apenas na quantidade em que é tocada, pois a essência das músicas são completamente diferentes. Como comentou a karaoteca Glaucia, o hit sertanejo é um hino a ser cantado em conjunto.

Talvez por isso, mesmo sendo o Brasil um país violento, nossa cena de karaokê não seja como a da Ásia, onde mortes relacionadas ao clássico do Frank Sinatra continuam acontecendo. Em alguns lugares o negócio é tão sinistro que a canção foi simplesmente retirada de circulação.

Enquanto “Evidências” é pagão, “My Way” é cristão. Se “Evidências” é novela, “My Way” é cinema. “My Way” sou eu, “Evidências” é nóis.

Nada representa melhor isso que um caso que ocorreu na China, em 2015, uma alma desafortunada apareceu no hospital com um microfone de 25 centímetros enfiado no cu por conta de uma briga provocado no karaokê. Até hoje não se sabe qual foi a música que catalisou essa cena dantesca e simbólica do poder penetrante do ato de cantar. Porém podemos concluir que (provavelmente) não foi “Evidências”. Se fosse, eles estariam cantando juntos em uníssono e abraçados uns aos outros. Manda eles virem aqui pra feira.

Leonardo Coelho não sabe cantar e tirou 63 cantando “Evidências”. Mostre sua nota para ele no Twitter

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