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Música

"Exodus", de Utada Hikaru, Completa Dez Anos Como o Disco Incompreendido que Antecipou o Novo Pop

A adorada artista cult era uma produtora inovadora e cantora de J-pop.

Hikaru Utada está olhando bem em frente. Sentada em uma cadeira giratória, num escritório pré-fabricado de paredes de compensado, Utada, nascida em Manhattan e com 21 anos, está cercada por homens e mulheres mais velhos com ternos e terninhos de executivos. À sua esquerda, os presidentes de conglomerados de mídia fingem sorrisos afáveis; à sua direita, seu pai e mãe estão de frente para um fotógrafo, sorrisos apatetados no rosto. A cadeira giratória grande demais, a presença dos engravatados, a caneta erguida na mão direita: tudo encenado para uma sessão de fotos. É quarta-feira, 20 de março de 2002, o ano em que ela assina um contrato com o selo Island Def Jam.

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Ela fala pouco, mas oferece uma resposta diplomática ao jornalista da Billboard que se encontra ali, sobre se conseguirá entrar no mercado americano. Todos sorriem para a câmera, exceto ela. Ela parece assustada, a ficha em processo de cair. Já gravou alguns discos em Nova York antes, mas foram coisa de pequeno porte. Agora a pressão chegou.

Exceto que a coisa era um pouco mais complicada do que as fotos de imprensa, publicadas na Billboard, faziam parecer. Seu primeiro disco, único que lançou por um selo indie de Nova York, saiu quando Utada tinha dez anos de idade. Aos 14, ela se mudou para o Japão; dois anos depois, como Utada Hikaru, era uma pop star. Sua estreia em língua japonesa, em 1999, First Love, é o disco japonês de pop mais vendido de todos os tempos, com 32 discos de platina; o seguinte, Distance, vendeu três milhões de cópias na primeira semana. Ela já vendeu 52 milhões de discos, 38 milhões dos quais só no Japão. Já trabalhara com Jerkins anteriormente; sua introdução no mercado americano seria pelos produtores The Neptunes, da rapper Foxy Brown, e da trilha sonora de Hora do Rush 2. Brown se gaba de que "minha menina vende discos como Michael nos anos oitenta!" sobre "Blow My Whistle", da trilha sonora mencionada, e isso não está muito longe da verdade.

A aquisição de Utada – como ela passaria a ser conhecida, com esse único nome – pelos EUA foi "enorme" para a Def Jam, de acordo com Jonathan Benedict, um assistente de A&R da Def Jam que ajudou a supervisionar o projeto. "A coisa foi muito badalada", ele me conta, falando de seu apartamento no Brooklyn. "Era uma questão de 'o que podemos fazer para pegar essa pessoa praticamente desconhecida nos EUA e inseri-la no mercado daqui?'". Rick Patrick era um Diretor Criativo da Def Jam durante o período em que Utada se juntou ao time: "Introduzir um artista estrangeiro seria uma grande vitória". Com a sedutora possibilidade de uma superstar asiática intercultural liderando as vendas em dois continentes distintos, um controle criativo total foi concedido a Utada e seu pai/produtor/empresário, Teruzane. A produção do disco, intitulado Exodus, começou. Quando se aproximava a data de lançamento de Exodus, a imprensa americana agarrou a chance de vender a estrela do J-pop como uma alternativa mais refinada a Britney Spears e Christina Aguilera, usando o semestre que ela cursara na Columbia University como símbolo de que era simplesmente melhor do que as gigantes do pop adolescente americano. A TIME a chamou de "diva do campus"; o Washington Post estufou o peito, anunciando que "Utada Hikaru não usa decote".

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Então, no dia 5 de outubro de 2004, Exodus chegou às lojas dos EUA, e parecia que ninguém sabia o que fazer com ele. Apesar de um sucesso prolongado no Japão, as expectativas que se amontoavam sobre Utada – alternativa aceitável ao pop adolescente, artista asiática entrando no mercado americano, contratação de luxo da Def Jam – nunca se realizaram. "Pode ter havido alguns desencontros, nos quais as duas entidades – os Utadas e a gravadora – não compreendiam 100% os desejos e objetivos uma da outra", diz Benedict, teorizando sobre o fracasso comercial do disco. Obtendo um escasso apoio dos veículos de vídeo e rádio, Exodus nunca chegou a entrar no top 100 da Billboard.

Com a distância de uma década de seu lançamento repentino nos Estados Unidos, Exodus continua sendo uma arriscada estreia em gravadora de grande porte: uma afirmação autoral e caseira, completamente contrária às exigências das rádios pop ou da MTV.

Já pendendo mais para o tipo cantora-compositora do que para uma estrela típica do J-pop, a sensual sereia do R&B apresentada em "Blow My Whistle" é praticamente abandonada, em favor de algo mais excêntrico.

"Eu não quero ficar indo e voltando entre esse e aquele gênero", canta Utada na fofa introdução new age do disco, o conceito de hits tradicionais com estilos mesclados imediatamente negado por uma mistura de murmúrios, percussão áspera e grave e um estilo de música ambiente à la Brian Eno. Sem as amarras dos aspectos tradicionalistas de seus trabalhos japoneses, ela entra em conflito com sua própria identidade, após anos sob os holofotes. Num momento, ela é trêmula e frágil com suas neuroses; no seguinte, é impenitente, e tenta preencher a sexualidade cuja existência acabou de perceber. Associa coisas mundanas – lavar louça, lavar roupas, cigarros – com o potencial de uma emoção intensa. Cita Edgar Allan Poe, Tutankamon, e a linha de baixo de "White Lines". Ela faz piadas sem graça, a maioria sobre ser asiática-americana (ela rima "easy breezy" com "I'm Japaneezy!" – "belezinha" com "sou japonesinha"). Ela se diverte com um cristão renascido que conhece numa boate, a amante de um caso extraconjugal, e uma acompanhante de luxo num elegante lobby de hotel, retratando cada personagem com um toque humanista. Um uivo eletrônico sobre o fracasso em se comunicar faz com que Utada jogue as mãos para o alto e deseje ter nascido homem; um jam de sedução em que a morte do vizinho gera um pânico sobre potencialmente desperdiçar a própria vida (e sexualidade); e uma críptica música principal, que mistura R&B, alt-pop e prog em cinco minutos, chamada "Kremlin Dusk".

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Resumindo: muita coisa acontece em Exodus.

Como uma artista pop de grande gravadora, seria de esperar que Utada seguisse a rota criada pela maioria de suas equivalentes americanas: trabalhar em conjunto com vários produtores e compositores designados pela gravadora até que algo desse certo. Desde o início, a artista e seu pai deram ouvidos aos desejos da gravadora – o então CEO Lyor Cohen falou abertamente sobre suas intenções de fazer com que Utada gravasse com consagrados produtores de hits do início dos anos 2000, como The Neptunes e Rodney Jerkins –, mas se reservaram o direito de escolher com quem trabalhariam. Suas escolhas foram mais heterodoxas do que se imaginava.

"Terazume veio falar comigo, dizendo 'quero trabalhar com o time de produtores mais incrível que houver em Nova York'", lembra Benedict. Isso resultou numa reunião com James Murphy e Tim Goldworthy, da DFA, à época badalada no underground novaiorquino por ter produzido "House of Jealous Lovers", do The Rapture. Apesar de ambos terem demonstrado entusiasmo, a colaboração nunca chegou a sair do papel. "Na noite antes da reunião, Teruzane ligou e disse 'olha, a gente ainda não está pronto para gravar com produtores de fora'". A sessão foi cancelada, e os Utadas começaram a reunir uma equipe de músicos e engenheiros para ajudar na criação da música. O Def Jam não interferiu quando eles se instalaram nos famosos estúdios da Hit Factory, em Nova York. "Em algum momento", diz Benedict, "ficou evidente que ela faria o disco que queria fazer".

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Os músicos chamados para colaborar no disco eram condizentes com as possibilidades inusitadas apresentadas pela DFA: Jon Theodore, baterista do Mars Volta; Steve Sidelynk, baterista do Style Council; Pete Davis, ex-produtor de Alison Moyet. A criação de Exodus foi até os limites da tecnologia disponível. Utada estava compondo sozinha grandes porções do disco em seu quarto de hotel, em Nova York, usando o Digital Performer em seu notebook, e depois dando um acabamento com a ajuda dos músicos participantes, e o enclave de sintetizadores alugados que ocupavam a Hit Factory. Embora hoje seja comum, há uma década era algo que tornava lento o trabalho. "Naquela época era bem mais difícil", diz Sidelynk por e-mail. "Era preciso sincronizar com uma master tape, então tudo era bem mais lento".

Quando o período de gravação se aproximava do fim, Utada já se acostumara com a ideia de trabalhar com produtores de fora, o que resultou em contribuições de Timbaland (pós-"Dirt Off Your Shoulder", pré-"Sexy Back"). Contudo, as contribuições do excêntrico superprodutor foram bastante leves, pois cabia a Utada escolher dentre o arquivo de batidas dele, e depois modificá-las como quisesse. Sua abordagem mãos na massa foi tanto uma declaração de propósito quanto uma necessidade de preservar a visão que ela tinha para o disco. Em uma entrevista para a Teen People, em 2004, ela diz o seguinte: "A quantidade de mulheres [que são produtoras] é muito pouca. Você não precisa ser o Moby para poder usar máquinas".

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Apesar de tudo, Exodus foi bem recebido pela crítica. O AllMusic o descreveu como a "chegada à América de uma artista incomum e instigante"; o USA Today, de modo um tanto profético, sugeriu que ela era "mais do que um fantasma dentro de sua própria máquina". Porém, tais elogios não bastaram para fazer dela uma queridinha da crítica, ou para influenciar a Def Jam. Onde as resenhas viam o início de uma carreira instigante, a gravadora parecia ver uma tentativa frustrada de fazer algo que transpusesse a ponte entre culturas. Ao que parecia, era isso e ponto final.

Enquanto isso, Bradley Stern – super fã de Utada, e criador do popular site sobre música pop MuuMuse – discutia o disco em fóruns de J-Pop, com "as únicas pessoas que falavam do assunto". A atenção da grande mídia era escassa. Ele lembra de ver o single principal, "Easy Breezy", passando na MTV num momento em que ele caminhava pela universidade. "Eu pirei", diz ele, acrescentando secamente: "Foi eletrizante". Ele não teve a sorte de ver a música na MTV outra vez, mas "Easy Breezy" e o disco que a continha o marcaram.

Em setembro de 2012, Stern escreveu um ensaio no MuuMuse sobre crescer ouvindo Exodus. Como adolescente lidando com a própria homossexualidade, ele descobriu que o disco de Utada funcionava como um "refúgio". A inquieta afirmação de identidade pessoal que há no disco foi algo que ressonou com ele: "Nada no disco fala explicitamente sobre ser gay", escreveu, "há incontáveis momentos que parecem dar vazão à frustração, vergonha e solidão que acompanham o processo de sair do armário, e ainda depois". Ao publicar o ensaio, ele ficou chocado ao ver os comentários – pessoas do mundo inteiro tinham vínculos pessoais parecidos com o disco. Apesar de seu fracasso comercial, Exodus virou um fenômeno cult, com um grupo pequeno mas apaixonado de seguidores.

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Aquilo que confundiu o público dez anos atrás parece que hoje teria alguma chance. Em vários pontos, Exodus parece antecipar como a música pop se adaptaria a um mundo cada vez mais digital. O ano de 2004 marcou o início da verdadeira era das mídias sociais, uma época em que o Livejournal e o Myspace deram às pessoas a chance de inserir ideias e emoções contrastantes em uma paisagem digital. Ele soa caseiro e opulento ao mesmo tempo; introvertido e confessional, mas apresentado como uma opção dentro do mainstream; insiste em ser sexy, esquisito e vulnerável, tudo ao mesmo tempo, ideias e emoções aparecendo e sendo atualizadas como um feed de RSS.

"Fico me perguntando se, caso fosse lançado agora, com Grimes e FKA Twigs por aí, a recepção seria diferente", pondera num e-mail o Diretor Criativo do disco, Rick Patrick, mencionando duas artistas que atualmente oferecem uma visão claramente pós-internet da música pop. O foco intensamente independente do disco também parece ter virado a norma, vista em uma série de pop stars mulheres, de Beyoncé a M.I.A. e CL, do 2NE1, que usam as mídias sociais para apresentar diversas identidades artísticas, sempre em fluxo. Dez anos depois, perece perfeitamente contemporâneo, e até mesmo condizente com a geração Y: aventuroso e ambicioso, mas confuso diante dos caminhos da vida, fazendo um amálgama de gostos de cultura pop com questões pessoais, assim gerando curtos estouros que transmitem uma identidade pessoal.

E ainda assim, o time de Utada manteve silêncio sobre Exodus em seu aniversário de dez anos, a antítese do luxuoso relançamento de First Love em comemoração de seus quinze anos. Pedidos de entrevista foram negados, ressaltando o fato de que o Exodus não funciona ao lado "dos planos globais para Hikaru Utada". "Em todo o catálogo, foi nesse disco que ela disse mais alto a que veio", pondera Stern, "e pode ser esse o motivo da sensibilidade dela em relação a ele". De qualquer modo, Utada está em um hiato desde 2011, e faz pouco tempo se mudou para a Itália com seu marido, Francesco Calliano, com quem se casou em maio. Os Utadas são lendários pelo quanto protegem sua privacidade; talvez tenham encarado a atenção renovada sobre Exodus como uma espiadela por entre as cortinas.

O fã que há em Stern tem esperanças, mesmo assim, de que Utada retorne, rejuvenescida, de seu hiato. "Eu adoraria se ela comemorasse o Exodus de verdade", ele diz, sorrindo. "Neste ano ou no próximo, ela com certeza vai voltar. Mesmo que não queira voltar nunca mais, já realizou o que precisava realizar". Para um super fã, é uma atitude madura, mas aqueles que participam do culto a Exodus pensam da mesma forma. Naquela introdução new age, Utada canta "You and I/ We can wrestle borders" ("Você e eu / Podemos lutar contra fronteiras"). Esses versos sugerem uma declaração de missão compartilhada com todos que ouvirem, e que se manteve a despeito da falta de interesse do mainstream. Dez anos depois, essas fronteiras parecem menos nítidas, e sente-se que a visão de Utada é o presente. O êxodo pode voltar para casa agora.

Daniel Montesinos-Donaghy está no Twitter - @danielmondon

Tradução: Marcio Stockler