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Música

Entrevista: Kamau

O rap no Brasil tá com uma visibilidade inédita e o Guerreiro Silencioso é um dos responsáveis. Acho que nessa entrevista os porquês disso ficam aparentes.

Se teve um dia cuja noite foi foda, foi o da primeira audição de “…Entre…”, o novo EP do Kamau, na livraria Suburbano Convicto. Foi um encontro de amigos, parceiros e conhecidos e o clima era quase familiar, não fossem as expectativas palpáveis dos presentes em escutar as músicas inéditas. O Kamau é um dos caras mais importantes do rap nacional, um esteta desbravador e um arquiteto da cena que desde 2008 não lançava um disco.

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Enquanto o MC esmiuçava os motivos de cada uma de suas novas músicas, o DJ Erick Jay as mixava e o poeta Emerson Alcalde declamava ao vivo as participações que fez no disco. Observei a empolgação da plateia crescer a cada faixa, e vi mais de uma pessoa com os olhos marejados (eu inclusive).

Convidei ele pra vir até a redação da VICE pra batermos um papo. Desde então o EP ganhou as ruas e está sendo merecidamente muito elogiado. Se o rap no Brasil tá com uma visibilidade inédita, o Guerreiro Silencioso é um dos responsáveis. Acho que nessa entrevista os porquês disso ficam aparentes.

VICE: Você disse na audição que o “…Entre…”, seu novo EP, foi influenciado por um filme do Spike Jonze.
Kamau: Logo que acabei o Non Ducor Duco, queria fazer um EP com cada um dos produtores que me mandaram beats e acabaram ficando fora do álbum. Mas eu precisava dar uma respirada e vi que não ia sair tão facilmente como pensei, porque o que eu começava a escrever era parecido demais [com o disco anterior]. Queria começar 2008 trabalhando, no meio do ano esse EP ia chamar 21/12, por ser aquela coisa 21 anos de skate, 12 de rap, skate desde os 12 de idade, rap desde 21 anos de idade.

Que acabou virando uma faixa.
Sim, e eu achei o Renan [Saman], e ele me mandou uma batida. Quando ouvi, me emocionei tanto quanto ouvir a base da “Equilíbrio”, que o Nave me mandou. Na primeira parte [de "21/12"] eu falo de quando comecei a andar de skate, e na segunda falo de como comecei a rimar. Nesse meio tempo recebi o remix da “Só”, aí lancei o clipe do remix da “Só”, a “Resistência” com o verso da [MC] Invincible, mas na batida antiga, e a “21/12”.

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E o lance do Spike Jonze?
Eu estava num momento introspectivo, de bloqueio, digamos assim. Então entrei na minha cabeça pra procurar o que estava acontecendo. E conheçia o trabalho do Spike Jonze do “Video Days”, um vídeo de skate de 1991. Queria há muito tempo ver o filme Quero Ser John Malkovich e quando pensei no nome do disco, lembrei da ideia da portinha que entrava na cabeça de um cara. Eu já tinha visto O Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças [do diretor Michel Gondry] no cinema, em que o cara vasculha muito pela memória, e ao mesmo tempo juntando com a ideia de Quero Ser…, que você está vendo o mundo pelos olhos de outra pessoa, e chega num momento que o John Malcovich entra na cabeça dele mesmo. Então percebi que eu estava entrando numa cabeça e era a minha. E é aí que vem essa mistura dos dois filmes.

E aí coloquei um disco no iPod que eu não tinha colocado ainda, era o Wake Up do John Legend com The Roots, e uma música me deu essa ideia de acordar, arrumar a casa, e assim nasceu a música “Entre”. Procurei muito a sonoridade dessa música e depois eu a achei numa batida do Renan. Então o disco é meio calcado nisso, fala muito do que estava se passando na minha cabeça na época e das coisas que me fazem andar, que me movem, e que de alguma forma me farão continuar. E eu pensei nesse nome, por ser “entre na minha cabeça”, “visite a nossa cozinha”, e, entre um álbum e outro, que é o Non Ducor Duco e o álbum novo que eu falo o nome no EP.Quando vocês ouvirem, vocês saberão qual é.

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Você disse que o poeta Emerson Alcalde, que participa do disco, te influenciou. Fala um pouco disso.
Acho que o jeito de colocar as palavras, às vezes algumas que são mais parecidas não necessariamente tem uma ligação direta além do formato da palavra, e acho que a primeira vez que eu vi o Emerson [declamando] fiquei empolgado com essa parada de spoken word, dos saraus.

E como foi o processo de fazer esse disco?
Vindo pra cá fiquei pensando nisso, que o Projeto Paralelo tem uma influência grande nesse disco. Não influência de som, mas das pessoas que conheci. Fui convidado pelo Rick Bonadio, mas não aceitei o convite até conhecer os caras do NX Zero, conversar com eles e saber o que eles queriam da música, e aí achei o jeito de escrever pra esse disco deles. Na faixa em que rimo, participa o Marcelo [Mancini], do Strike, conhecendo ele vi o quanto ele gosta de rap. Ele é um cara que conhece bastante de rap, mais do que muita gente imagina. E o Marcelo falou: “Cola lá em casa, vamos trocar umas ideias”, e nessa eu conheci todo mundo da banda e o André [Maini], que tinha gravado o primeiro disco do Projota, Projeção, falou: “Quando você quiser gravar alguma coisa, fazer um teste, vamo aí”. Trocando ideia com ele, que é guitarrista, a gente foi criando mais coisas. Eu, ele e o Renan, colocando guitarra numas músicas. Então tem música que é produção minha com bateria do Renan, mas todas as frases de guitarra, as coisas que a gente foi colocando na música, são minhas, com algumas ideias dele também.

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E as outras participações?
O Cadu, baterista do Strike, toca em duas músicas. O Di Ferrero também participou do disco. Não necessariamente por ser quem ele é, mas porque estava ouvindo a música e pensei na voz dele e achei que tinha a ver com o que eu queria. Eu penso no que a pessoa vai trazer pra música. Sempre foi assim, e por isso pensei na Paola [Evangelista] e no Di. A gente meio que ia fazer um dueto, mas a Paola cantou tão bem que o Di achou um lugar pra ele e eu achei que ele se encaixou bem ali.
E o Di, além dessa participação, trocou muita ideia comigo, pude conhecer um lado da indústria musical que eu até então não conhecia. Porque sou independente desde o começo, acompanho a correria do rap independente desde o começo, desde exatamente o Racionais em Sobrevivendo no Inferno. Então eu aprendi outra parada com eles, e vi que eles gostam de música tanto quanto a gente, que faz com muito mais amor que recurso. Eles mesmos têm amor e ter recurso às vezes até atrapalha um pouco.

Falando em Racionais… Lembro que teve uma época que uma galera negava as coisas do rap nacional. Você é um cara que nunca fez isso.
Sempre fui ligado ao rap brasileiro que veio antes de mim por ter aprendido com eles antes de começar a rimar. Sou amigo do KL Jay desde os meus 12 anos de idade. Comecei a andar de skate com o Robson [DJ Ajamu]. Meu primeiro grupo foi com ele e com o Sagat, mas antes disso eu já era amigo e frequentava a casa dele. E ao mesmo tempo em que eu estava convivendo com eles, convivia com outras pessoas que são parte dos primórdios do rap, que é mais ou menos uma segunda geração, mas é a primeira porque foi ela que mais se destacou.

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Fala um pouco dessa época.
Tenho alguns fatos históricos na minha cabeça, que são muito mais históricos para mim. Por exemplo, eu estava na casa do KL Jay no dia que ele chegou comemorando que eles tinham conseguido o nome para a coletânea, que era o Consciência Black, que foi a primeira coletânea que saiu com música do Racionais. Estava lá na casa dele vendo o Racionais ensaiar “Racistas Otários”, quando eles cantavam em cima do beat de “Once Upon A Time In The Projects”, do Ice Cube. Estava na biblioteca do Tucuruvi quando eles tiraram a foto da contracapa do Escolha O Seu Caminho. É do lado de casa e eu tinha ido lá pra pegar um livro. Fora isso, o Rappin Hood foi o cara que deu a primeira oportunidade pro meu grupo. Eu já conhecia ele de bem antes, porque eu também andava de skate com o irmão dele, que é conhecido como Parteum, como diz meu amigo Roni Carlos, antigo Fabio Luiz. E sempre via esses caras de perto, aprendia diretamente com eles, aluno presencial, não telecurso. Hoje em dia tem o telecurso pelo YouTube, então é muito mais fácil. Então eu estava ali, vendo as coisas acontecerem, aprendendo, mesmo não pensando em ser MC na época. Estava vendo o DJ Hum, vendo o Thaide, o DMN, o MRN, no começo, e eu era só um ouvinte de rap. Até que o K L Jay me falou: “Por que é que você não rima?” — a primeira pergunta que faço no Non Ducor Duco. Então, a partir desse conhecimento que tive com eles, eu me formei como pessoa e como MC. Nunca vou me desligar dessa referência.

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Esse momento atual do rap, muita gente acha bom e muita gente acha ruim. O que você acha?
Acho que o momento que o rap está vivendo é muito do que foi plantado por outras pessoas, e que foi o sonho de muitas pessoas. Mas algumas das pessoas que plantaram desistiram no meio do processo e elas aparecem agora pra colher um pouco dos frutos, dizendo que “não era bem assim”. Mas a gente aprendeu com os erros e acertos das gerações anteriores. Agente a gente tem que prestar atenção aos erros que vieram antes — aos que se acomodaram numa gravadora, aos que achavam que tinha que fazer o que a gravadora queria, ou os que achavam que a gravadora tinha que fazer tudo por eles, desde viabilizar a música até viabilizar uma cesta básica de banqueiro da Suíça. É bom rever alguns tópicos pra gente poder ser bem mais forte lá na frente.
Tem muita gente que ainda tem um pensamento bem fechado. Teve um imenso debate na internet sobre "rap na Xuxa". Acho que o meu pensamento eu refleti em um dos tuites que postei na hora. Quando conheci a música “Triunfo”, do Emicida, a gente tava viajando junto pra fazer um show em Porto Alegre, e gostei muito. E quando a música saiu um monte de gente gostou, gostavam e algumas gostam até hoje, e outras acham que não tá certo — mas achavam certo antes. Eu falei: “É a mesma música que em 2007, e antes você gostava, né?”. Parece um pouco reclamar de barriga cheia, mesmo sem ter a barriga cheia, no caso. Mas gosto desse bom momento do rap e acho que a gente tem que ter muito cuidado. No rap em geral, não me excluo, não me incluo, não me coloco em nenhum grupo, não tô falando do rap, eu tô falando de dentro do rap. A gente tem que tomar cuidado pra não ter picuinhas internas e provocar um desconforto dentro de casa, e também não abrir a porta pra qualquer bom samaritano que bater. Vão aparecer muitas pessoas querendo se aproveitar do momento, sim. Como sempre. E agora vão aparecer muito mais, porque o momento é muito maior, muito mais forte.

E você sempre deu força pros moleques novos do rap, ao contrário de muita gente da música que é olho grande. Você está sempre apoiando, apresentando os nomes novos.
De certa forma, foi o que esses caras fizeram com a gente também. Não necessariamente do mesmo jeito, o KL Jay ficou perto da gente por muito tempo, mas demorou um tempão até que ele falasse: “Vamos aqui fazer uma parada com a gente, vamos fazer uma parada com o Racionais”, porque ele tem muito de ensinar a pescar ao invés de dar o peixe para a pessoa. E foi assim comigo, com o DJ Will que é filho dele, então eu tenho isso. Faço isso porque eu quero que tenha continuidade, que a cultura se fortaleça e continue por muito tempo. Não vejo problema em dividir espaço com alguém. Muitos amigos dizem: “Faz a sua parada primeiro, antes de ficar trazendo as pessoas”, mas tenho isso como instinto.

Acho que estou fazendo a minha música com a mesma vontade e essência que tinha no começo e me orgulho disso, porque, como comecei a fazer com 21 anos de idade, já sabia o que queria como pessoa, na vida, o que queria do rap. Me orgulho de ter aberto caminhos pra mim, se outras pessoas passaram pelo caminho depois, legal, se outras pessoas botaram pedágio e asfaltaram esse caminho depois e estão ganhando dinheiro em cima disso, legal também, mas eu segui o meu instinto como bússola. Não acho que fiz nada pra falar “fui eu quem começou”, só falei “quero ir por aqui”. É o que eu falo na “Por onde andei”. Achei que faltava e fui. Agora não falta mais.

E em quem você apostaria?
Hoje em dia tem tanta coisa que a gente não consegue se desviar para procurar alguma coisa. Evito algumas coisas quando, como diz o meu pai, “a pessoa chega e não fala bom dia”. Todo dia recebo link de alguma coisa de alguém falando: “Curta meu bagulho” ou “Dá uma força”. Esse imperativo do verbo me dá nos nervos. De vez em quando eu clico. Agora que estou no processo do meu disco, não tenho tempo para parar e ouvir, mas de vez em quando eu escuto. E por acaso, cliquei no link do Amiri, que é um cara que está sempre nos meus shows. E graças a Deus aconteceu muita coisa boa pro Amiri. E fora a música que eu ouvi, ouvi outras coisas e eu acho que ele é um cara que vai aparecer bem pro rap num futuro próximo. Fora o Amiri tem o Renan Saman, que é um cara que trabalha diretamente comigo e acho que ele tem muita coisa pra mostrar, tanto de batidas quanto de rimas. Acho que já chegou a hora do Don L aparecer mesmo como artista. E o Gasper, de Goiânia, também. Acho que já tá na hora dele aparecer pra mais lugares fora do eixo Goiânia/Brasília.

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