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Música

“Se Miles Davis estivesse vivo, estaria trabalhando com o Kendrick Lamar”: Uma entrevista com Don Cheadle

Interpretando a entidade do jazz em ‘Miles Ahead’, Cheadle fala sobre o som e a fúria do trompetista que tentou imprimir ao seu personagem.

Todas as fotos fornecidas pelo filme, exceto quando indicado em contrário.

Miles Davis é o autor da famosa frase de que o importante no jazz são as notas que você não toca. Miles Ahead, o novo filme do Don Cheadle sobre a lenda do jazz, faz jus a essa filosofia ao descartar a estrutura do-berço-ao-túmulo que tantas vezes assola os filmes biográficos.

“Não é preciso chamá-lo de filme biográfico”, Cheadle me garante quando nos encontramos. Isso é verdade. Este filme sem ordem cronológica não é nada senão um anti-filme biográfico. Se Ray fez você chorar como um entrevistado da Oprah e se você fez péssimas imitações do Joaquin Phoenix na frente do espelho depois de ver Johnny & Junne, então talvez ache Miles Ahead uma aventura um pouco radical demais.

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Assim como o lance de Davis era a experimentação agressiva e nunca ficar parado no mesmo lugar, Miles Ahead dança ao compasso de um ritmo eletrizante, que oscila entre diferentes gêneros, épocas e cortes de cabelo. Pode escolher: é um filme de ação-crime-suspense-comédia-jazz-fantasia, aparentemente passado durante o hiato movido a cocaína de Davis no final da década de 70, quando ele ficou viciado em analgésicos e perdeu a própria magia. O que o faz despertar (além da cocaína) é um um assalto ficcional envolvendo uma fita de estúdio perdida, arrojadas perseguições de carro, e um duelo armado com executivos de gravadoras. Mais ou menos assim: como se Não Estou Lá tivesse cheirado Bitches Brew — tudo isso entrando em chamas dentro de Grand Theft Auto.

Com um suprimento generoso de sexo, drogas e rock 'n' roll revolucionário, o roteiro — do qual Cheadle é coautor — incorpora o espírito desregrado e exuberante da música de Miles. Ao lado de flashbacks que mostram o casamento fodido com a dançarina Frances Taylor (Emayatzy Corinealdi), há uma fantasia à lá Bill & Ted, que imagina como seria Davis no século 21, em que ele se apresenta num palco usando uma jaqueta rotulada #socialmusic, com um supergrupo de ex-colaboradores (incluindo Herbie Hancock em pessoa) e novatos cheios de dinamismo.

Mesmo contando com a aprovação do espólio de Davis, Miles Ahead não disfarça as facetas desagradáveis do artista no que diz respeito a infidelidade, abuso de drogas, e violência contra a esposa. Não só dá para se ter uma percepção crua de quem era o homem, dos auges transcendentes até os baixos ultra trevosos, como também dá para sentir sua música pulsando como sangue por todas as cenas. Trata-se de um triunfo quando você compara com o filme de Andre 3000 sobre Jimi Hendrix, que não conseguiu obter acesso ao catálogo completo do artista e, em consequência disso, passou uma impressão de inautenticidade.

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Cheguei uma hora adiantado ao Corinthia Hotel, em Londres, para conversar com o Don sobre tudo isso, levando três páginas de perguntas (incluindo a frase: “Nada de saxofone, por favor — somos ingleses”, para o caso de eu conseguir inserir na conversa como um falso improviso). Mas, ao final, acabamos tendo só sete minutos para conversar. Então perguntei a Cheadle se poderíamos falar de tudo tão rápido que nossos maxilares doeriam, e ele topou.

Noisey: Oi, Don. Bora ir rapidão nisso aqui?
Don: Sim, vambora.

Na autobiografia, Miles descreveu a época documentada pelo filme desse modo: “Eu era quatro pessoas diferentes, duas delas tinham suas consciências, e as outras duas não. Eu olhava no espelho e via a porra de um filme inteiro, um filme de horror”. Por que focar um filme inteiro nesse período de inatividade?
Porque é muito carregado — como ele descreve aí no trecho. Isso realmente nos deu um trampolim para criar alguma coisa que parecesse uma composição, algo que fosse musicocêntrico. Nos deu a capacidade de usar todos os diferentes tipos de música que Miles tocava, e pudemos anexar a nossa criatividade à dele — em vez de passar por toda uma listinha com o que ele fez em diferentes anos. Nossa vontade era criar algo que fosse modal, que fosse agora e depois, que fosse isso e aquilo, e aí transformar em algo que fosse uma composição.

Você dominou a arte de tocar trompete para fazer o papel. Isso foi uma coisa essencial?
Não diria que dominei! Mas foi muito importante para mim aprender como tocar aqueles solos. Aprendi os solos e os coloquei no papel. Porque eu não queria ficar só fingindo. Eu queria mergulhar na experiência de onde o Miles estava. Mais do que qualquer coisa, eu queria ser como ele, e não só instruir as pessoas sobre o que ele fez. Eu queria ser o Miles.

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Você aprendeu do zero?
Sim. Quando soube que ia trabalhar nesse projeto, comecei a brincar com o instrumento. Então, durante oito anos, toquei o máximo que pude.

Que nota você daria a si mesmo, de zero a Miles?
De zero a Miles? Quem sabe? Eu ainda estou nos primeiros passos. Minha nota é bem baixa.

Você acha que algumas pessoas, como você e Miles, têm simplesmente um dom natural para a música?
Não sei. Tenho um bom ouvido, mas, com certeza, foi uma coisa em que eu trabalhei. Não foi só pegar o trompete e saber como fazer. E o Miles também. No decorrer de muitos, muitos anos, ele teve de procurar seu próprio som, e descobrir como se expressar através daquele pedaço inerte de metal.

O Miles uma vez disse que ia cuspindo arroz no caminho para o colégio.
Sim, para melhorar a embocadura — deixar ela bem justa, para pegar os cantos. Eu não fiz isso de cuspir arroz, mas também trabalhei muito na minha embocadura.

Foto de Brian Douglas.

Tem uma cena do filme em que Miles, em 1979, ouve “So What” no rádio. A sua intenção era retratar que ele se sentia assombrado por um passado de teor menos experimental, que ele basicamente repudiava?
Acho que, na nossa história, ele está lidando com como encontrar a própria voz. Ele está tendo dificuldades para acessar seja lá o que for que vai permitir que ele volte a falar. Mas não sei se “assombrado” é a palavra certa. Ele é assombrado no nosso, acho. Mas acho que Miles sempre estava… sim, talvez pelo fato de se sentir assombrado, ele estava sempre seguindo em frente.

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Pharoahe Monch canta um rap na hora em que os créditos do filme estão rolando. Se Miles estivesse vivo, o que estaria fazendo agora?
Ah, meu Deus, ele provavelmente estaria tentando trabalhar com o Pharoahe. Se Miles estivesse vivo, estaria trabalhando com Kendrick Lamar, e Kamasi Washington e Walter Smith III. Os caras que realmente entendem, e que estão tentando levar aquela música adiante, e ao mesmo tempo a modificando, e a transformando em um estilo inteiramente novo. Acho que Kendrick está na vanguarda da música hoje em dia. Ele está incorporando todo tipo de som. É um contador de histórias incrível. Isso é algo em que o Miles com certeza estaria metido.

Ih, cara, estão me dizendo que é hora de encerrar. Parece que a família não teve problemas com você incluir no filme todos os aspectos desagradáveis da vida do Miles, né?
O próprio Miles incluía os aspectos desagradáveis.

Isso fazia dele um músico melhor?
Talvez fosse uma inspiração para ele. Acho que os músicos e as pessoas criativas como ele consomem tudo. [Don olha para as perguntas que tenho anotadas]. Não vai dar para encaixar tudo isso, então escolha a melhor de todas.

O grande e falecido Garry Shandling comparou a comédia com o boxe, porque o obrigava a estar no momento, e no filme vemos o Miles praticar boxe no tempo livre. Qual é a ligação entre o jazz e o boxe?
Tudo que tem de improviso, ter a capacidade de ouvir e seguir a deixa, todas essas coisas fazem parte do boxe. Miles falou especificamente sobre a relação entre tocar o instrumento e praticar boxe. Ele entrava em certas notas usando certas abordagens que ele encarava como jabs. A resistência e o fôlego também eram importantes. Então ele tinha muitas maneiras análogas de descrever sua música e o boxe.

A última: diga um disco subestimado do Miles que as pessoas deveriam procurar.
Não sei se é subestimado, mas eu amo Circle in the Round. Passei a curtir muito enquanto trabalhava nesse filme.

Vou dar uma ouvida. Valeu, Don!

Tradução: Marcio Stockler

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