A longa estrada da vida que transformou um humilde casal em dupla fenômeno do sertanejo raiz

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Música

A longa estrada da vida que transformou um humilde casal em dupla fenômeno do sertanejo raiz

Edivan & Gisele são de São José do Rio Preto e caíram na rede com uma bela e caseiríssima versão de “Casebre de Palha”. O sucesso foi tanto que tiveram até que abandonar o emprego para se dedicarem à carreira de dupla sertaneja.

Gisele, Ratinho e Edivan. Todas as fotos são de arquivo da dupla.

Rolava um churrasco descontraído na varanda de uma casa na quente São José do Rio Preto, cidade do interior de São Paulo, 440 km distante da capital. A galera dava risada, bebia e, no forno, estava um bacalhau para acompanhar o encontro. O que mais parecia um desses típicos vídeos de churras (muito comuns no Snapchat entre às 14 horas de sábado e às 20 horas do domingo), ganha contornos únicos logo nos primeiros segundos. Um sujeito super animado segura o smartphone e grava um casal cantando. Tudo indica que são marido e mulher. Ele, de óculos, está sem camisa e, acredite você, sentado ao lado de um botijão de gás — dá até para enxergar aquelas simpáticas roupinhas de pano, protetoras. Ela, com cabelo preso e avental amarrado, aproveita os respiros na música e se alterna cantando entre a varanda e a cozinha. "Eu estava secando o arroz na panela e tinha que ficar olhando o fogão", confessou depois para a reportagem do Noisey. Juntos, eles cantam de maneira muito harmoniosa e com uma potência impressionante na voz. Mesmo em meio a farra toda, é possível ouvir, claramente, o poder da canção Casebre de Palha, famosa na voz de Matogrosso & Mathias, uma composição que fala da realidade brasileira após a abolição da escravatura, toada assinada por Morgado e Morinaldo.

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Esse vídeo foi para o Facebook. E estourou. Depois vieram o WhatsApp e o YouTube.

Hoje esposo e esposa são, graças ao brutal compartilhamento dessa música, Edivan & Gisele, dupla caipira formada ali, naquele dia 30 de janeiro de 2014, que atualmente vive da sua música e faz uma média de dez shows por mês, no Brasil todo, já tendo se apresentado no Paraguai e com negociação em andamento para shows em Portugal.

O viral caipira

"A gente nem sabia que iam colocar isso na internet", conta Edivan, nome artístico de Aparecido Antonio dos Santos, de 56 anos, que é casado com Gisele Mara Moreira, de 45 anos, há três décadas.

Um amigo da família, Kleber, da dupla de sertanejo universitário Tonny e Kleber, da região, é quem faz a filmagem. Brincalhão, narra o tempo todo a gravação. Foi ele mesmo quem subiu pela primeira vez o vídeo. "Nós nem entendíamos nada de tecnologia, nem mexíamos com computador", lembra Edivan.

Dois dias após ter postado a filmagem, Kleber ligou para Edivan. Disse que não sabia mais o que fazer e que sequer estava conseguindo trabalhar, tamanho o sucesso que o vídeo estava fazendo na rede, que já ultrapassava 8 mil compartilhamentos.

A postagem original, atualmente com mais de 100 mil compartilhamentos e milhões de visualizações no Facebook, motivou o casal a gravar um segundo vídeo, ainda de forma amadora, mas em um ambiente mais silencioso. Esse já trazia, ao final, um número de telefone para contato. Foi suficiente para que já fossem contratados para apresentações. "Nós não tínhamos ideia nem de como cobrar por esses shows", lembra.

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"Esse vídeo não foi apenas importante… Esse vídeo foi tudo de melhor que aconteceu na nossa vida", ressalta o cantor.

Vídeo que originou a carreira do casal. Há diversas versões deles espalhadas pelo Facebook e YouTube.

O destino e a nova parceira

O início de 2014 foi bastante conturbado na vida do então assessor da prefeitura de São José do Rio Preto. Após muitos anos sem estar no cenário sertanejo, tinha reatado, a pedido do cantor e amigo José Rico (1946-2015), a dupla Edivan & Brasileiro.

Esse projeto havia se iniciado em 1977, ano em que chegaram a gravar um disco em um estúdio na rua Mauá, no Bom Retiro, em São Paulo. Conviveram com músicos da época, do cenário sertanejo que se formava, mas deixaram a parceria em 1982.

Com o retorno em 2013, preparavam um novo álbum. Nunca foi lançado. João Carlos da Silva, o Brasileiro, viria a morrer em um acidente de carro, aos 56 anos, no início do ano seguinte.

"Acabou, parou. Não canto nunca mais", disse Edivan ao chegar em casa. Poucos dias depois, o vídeo descrito no início desse texto seria gravado em seu quintal e, após anos cantando sozinho ou com outros companheiros de palco, o cantor teria dentro de casa, com a sua esposa, uma nova chance de prosseguir na música.

​Performance da música "Aurora do Mundo", com as irmãs Barbosa. Todos sentados em cadeiras de fio.

Lógico que Gisele não aprendeu a cantar no dia do vídeo. Nascida em São Carlos, mudou-se para a região de São José Rio Preto e, influenciada pela família de músicos, cantava desde os dez anos de idade. Seus irmãos caçulas, os artistas mirins Tico Tico & Beija Flor, no final dos anos 1980, paravam o Brasil com seus mullets e roupas de franja aos domingos no Programa Show de Calouros, apresentado por Silvio Santos. Mas Gisele afirma que a grande inspiração para sua forma de executar as músicas com a voz foram os seus pais, Gilberto e Roseli, que chegaram a gravar um álbum sob o nome de Duo Oriental. A mãe, Roseli, faleceu há pouco mais de um mês.

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Em 1986, Edivan estava na estrada, passando por São José do Rio Preto, quando foi chamado por um amigo, dono de uma lanchonete, para integrar o corpo de jurados em um concurso de talentos locais que organizara. Cansadão, vindo de shows e de longo trecho na viagem, pensou em declinar. Acabou indo. Mal se mantinha acordado quando viu a jovem Gisele se apresentar no palco com a irmã. Ficou apaixonado. Namorou por dois meses. Isso mesmo, não foi erro de digitação: dois meses. E estão juntos desde então.

Aliás, se a paixão foi forte, as notas do júri nem tanto — as irmãs ficaram em segundo lugar na competição. A dupla formada pelos pais das meninas levou o prêmio principal da noite.

Uma nova carreira

"Nós somos uma família pobre. A gente luta para sobreviver. Nós não temos posses. O carro que usamos para fazer os shows é financiado. Nossos vídeos são na varanda", diz Edivan.

As produções, todas na casa das dezenas de milhares de visualizações, são de fato produzidas na varanda, na sala, na cozinha. Mesmo quando há convidados, como é o caso das apresentações das Irmãs Barbosa, dupla de São Paulo que também canta o mesmo estilo, as performances são no sofá ou naquelas cadeiras de cordas, no quintal.

Poucos meses após a explosão na internet, a dupla já estava no palco do Viola Minha Viola, emocionados, cantando ao lado de Inezita Barroso (1925-2015). Desde então já passaram pelo Programa do Ratinho, Balanço Geral, também por diversas apresentações em programas do badalado padre sertanejo, Alessandro Campos, tanto na TV Aparecida, quanto na Rede Vida, sem falar em tantas outras atrações ligadas a esse gênero musical, em emissoras regionais e na internet.

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"Nós gostamos da música sertaneja, que fala de amor, que tem conteúdo. É um resgate dessa raiz", conta Edivan, que afirma que não tem que não goste de "Chico Mineiro", "Saudades da Minha Terra". "Nós apenas não cantamos 'nóis fumo' e 'nóis vortemo', pois achamos que não precisa dizer dessa maneira para passar a mensagem", conta.

No palco do Viola Minha Viola, na TV Cultura (vídeo do canal de Gil Moreira).

Lugar ao sol

Edivan teve de deixar o emprego na prefeitura para se dedicar à carreira. Não tem agente ou empresário, ainda. Montaram um escritório e lidam diretamente com cada contato. Para fazermos essa entrevista, respondeu de forma bem humorada no WhatsApp afirmando, quando questionei se o número era o da equipe da dupla, que, na verdade, era ele mesmo: tirou uma selfie para provar.

"Nosso show custa entre R$ 10 mil e R$ 12 mil, tenho que contratar cinco músicos, transporte, alimentação… E é a nossa música raiz. Não consigo entender, um show sertanejo universitário custa R$ 300 mil ou R$ 400 mil, e as pessoas ainda pagam até mais de R$ 100 pelo ingresso", cita Edivan.

Gravaram dois CDs: um em 2014 e outro em 2015. Os álbuns estão disponíveis no YouTube e recebem o nome CD1 (Velha Porteira) e CD2.

"Estamos fazendo shows e toda vez que a gente posta vídeo o pessoal gosta muito", conta Gisele. "Confesso que, há uns dois meses, estávamos num corre para lá, corre para cá, sem saber o que estava acontecendo, mas, com tudo que passei com a morte da minha mãe, estamos mais 'pés no chão'. A gente vai seguindo conforme as coisas vão acontecendo", diz a cantora.

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Em suas músicas, a dupla canta de uma forma muito única, alternando quem faz a primeira voz, sempre em uma harmonia perfeita com a segunda, muito característica da música raiz. Durante a execução das canções, é possível esquecer que há instrumentos acompanhando. Há apenas a voz de Edivan & Gisele. Aliás, é muito comum se arrepiar, se emocionar.

Fazem sucesso entre público de diversas idades, tanto os mais velhos, saudosos, quanto dos jovens, admirados. Cantam dentro de casa, com carinho. Abrem suas vidas para nós, o público, em uma pura e bela homenagem a um de nossos estilos musicais mais autênticos.

No vídeo abaixo, da canção "Vida pelo Avesso", composição de Ivone Ribeiro e Joel Marques, o casal aparece na mesa de jantar, ao lado de um jovem tocando violão. Ao fundo, é possível notar os pequenos armários de cozinha, brancos. Durante toda a gravação, Edivan fica com o braço apoiado nos ombros da esposa. Em certos momentos, enquanto Gisele canta, ele acaricia seu rosto, tirando, com muito cuidado, seus cabelos louros da frente dos óculos. A música sertaneja raiz emana desse casal, como o amor desse matrimônio, que gerou dois filhos.

A impressão que temos, nas pequenas e grandes telas das redes sociais, é que esses dois amam o que fazem e se amam. O vídeo e o boom de compartilhamentos foram apenas um feliz acidente de percurso, responsável por tornar esse talento público.