FYI.

This story is over 5 years old.

Música

Diário de um ex-detento: Como foi ver o Tool tocar depois de passar 21 anos na prisão

Seth Ferrant ficou mais de duas décadas preso nos Estados Unidos, mas nem mesmo o tempo de reclusão foi capaz de o afastar do som de uma de suas bandas preferidas.

Imagem por Dylan Balliett

Quando entrei em cana, o Tool era a minha banda preferida. O disco de estreia deles, Undertow, saiu em 1993, e, para o meu gosto, era o creme-de-la-creme do metal naquela época. A banda parecia redefinir o significado de “som pesado”. Eles eram alternativos. Os ritmos que tocavam eram mesmerizantes, como batidas tribais trazidas à vida pelas mãos de uma banda completa. As melodias eram cheias de texturas suaves, graças à voz inconfundível de Maynard James Keenan. Eles eram tipo um novo Led Zeppelin. Fiquei viciado.

Publicidade

Naquele ano, vi o Tool tocando no palco secundário do Lollapalooza, e Undertow estava sempre rodando no meu CD player. Eu tinha acabado de ficar sabendo do primeiro EP deles, Opiate, quando fui preso.

Faz quase um ano que fui solto da prisão, e tenho ido a alguns shows, mas esperar pelo show do Tool, na Chafietz Arena, em Missouri, no meio oeste dos Estados Unidos, foi uma sensação diferente; era como se um ciclo estivesse se fechando. Estar lá me pareceu uma coisa natural: eu não era o mesmo garoto eufórico de 22 anos, mas era mais fã do que nunca. Minha relação com a banda se aprofundou, tinha evoluído. A música do Tool ficou comigo, ainda que durante décadas eu tenha tido poucas chances de ouvi-la.

A maioria das penitenciárias federais fica localizada no cu do mundo: nas montanhas de West Virginia, nas colinas da Pennsylvania, nos picos de Kentucky. Nenhuma estação de rádio. Bem, na verdade sim, havia algumas rádios, mas nada de metal ou de punk ou música alternativa. Nenhuma rádio cool. Eu costumava ter acesso a revistas como Rolling Stone e VICE, mas o pessoal do Tool era um tanto recluso e não costumava dar entrevistas. Não tínhamos muitas revistas dedicadas ao metal na prisão, mas as que haviam eram passadas de mão em mão.

O que tínhamos na prisão era equipamento de banda: guitarras, baterias, sistema de som, baixos, amplificadores. O departamento de recreações tinha um projeto de estímulo às bandas. Eu costumava encontrar caras que gostavam das mesmas coisas, e então formávamos bandas. Eu sempre providenciava para que fizéssemos um cover de “Sober”. Todo mundo conhecia a música e gostava dela. Eu não conseguia cantar como o Maynard, mas conseguia cantar a música. Com sorte, a banda conseguia ensaiar uma ou duas vezes por semana. Os guitarristas pegavam a partitura e a gente dava o nosso jeito. Eu sabia de cor a parte dos vocais. Estavam gravados no meu cérebro.

Publicidade

Durante algum tempo foi nisso que consistiu a minha relação com o Tool. Mesmo que eu tivesse poucas chances de ouvir a música, as emoções das faixas ficaram comigo. Eu gosto do Tool porque eles são poderosos, sonoros e harmônicos, mas também vulneráveis. Na prisão eu tinha que manter uma fachada de durão 24 horas por dia, sete dias por semana. Mas é legal poder relaxar também, não ser obrigado a manter a farsa de durão.

Eu de vez em quando conseguia ouvir as novas músicas do Tool. Com uma arrumação complexa de fios em nossas celas, às vezes conseguíamos pegar ondas de rádio no meio da madrugada e curtir o som de uma rádio de rock moderno de alguma cidade grande. Uma vez eu estava em trânsito, no Centro de Detenção Metropolitano do Brooklyn, sendo mantido lá enquanto esperava minha transferência para outra prisão. Peguei emprestado o rádio de um cara e ouvi um show de duas horas dedicado ao Tool no meio da noite, me refestelando. Foi um banquete — todas as músicas que eu perdera ou que raramente ouvia. Tool não era a única banda de que eu gostava — também era fã de Nine Inch Nails e dos Pixies, mas casos como esse me mantinham ligado a eles.

Por fim, fui transferido para uma prisão em West Virginia, a Instituição Correcional Federal Gilmer, que tinha um programa decente de audição de CDs. Era uma prisão novinha em folha, e eu estive entre os mais ou menos 500 primeiros detentos de lá. Consegui com que eles encomendassem Undertow. Agora eu não podia só tocar numa banda e cantar “Sober”, eu podia ouvir a música de verdade, junto com o resto do CD.

Publicidade

Durante a minha sentença, o Tool lançara os discos AEnima e Lateralus, e estava a caminho de soltar 10,000 Days. Eu tinha lido em alguma revista de rock que eles receberam uma porrada de elogios da crítica. Eu queria ouvir os novos discos e mergulhar nas músicas, mas depois que consegui fazer com que o policial da recreação encomendasse aquele primeiro CD do Tool, nunca mais foi possível convencê-lo a encomendar outro.

Alguns anos antes de eu sair, começaram a oferecer players de mp3 nas federais. Comprei um e baixei um monte de músicas. O Tool estava entre as primeiras bandas que procurei quando me concederam o acesso ao sistema TRULINCS, que permite aos prisioneiros federais comprar e baixar músicas em seus players de mp3. Ainda assim, devido às políticas de licenciamento do Tool (ou da falta delas) os discos não estavam disponíveis. Eu continuava isolado da música deles.

Uma surpresa me aguardava na prisão para a qual fui transferido no Arkansas. Aquela era a minha última penitenciária, o último lugar em que eu cumpriria a minha pena. Eu já estava preso há praticamente duas décadas, e todos os meus impulsos desordeiros já haviam se esgotado. Tudo o que eu queria era cumprir a minha sentença e ir para casa. O Complexo Correcional Federal Forrest City tem um departamento de música incrível no setor de recreação, e por coincidência o detento que comandava o programa era um grande fã de Tool. Ele tinha todos os CDs da banda, mas, em conformidade com a exclusividade do Tool, bem poucos detentos tinham permissão para ouvi-los. O cara era o almoxarife da música, e sabia que, se você deixasse um monte de gente ouvir o CD, a coisa iria pro caralho. Então só um grupo seleto tinha acesso. Mas consegui dar um jeito de entrar.

Publicidade

Passei muitas tardes no setor de recreação ouvindo aqueles CDs, finalmente escutando os discos inteiros, e até mesmo as músicas inteiras até o fim, como eles devem ser ouvidos. Descobri “The Pot”, “Forty Six &2”, “Stinkfist” e outras. Eu ouvia essas músicas de passagem em uma ou outra ocasião, mas aquela era minha primeira oportunidade de devorá-las de verdade. Isso foi em 2010. Pensar que eu tinha esperado tantos anos para ouvir um disco. Mas valeu a pena. As músicas se impregnaram na minha psique. Eram poderosas e definitivas; não tive muita escolha senão gostar delas.

Em Forrest City, virei integrante de uma banda cover dedicada exclusivamente ao Tool. Começamos com “Sober” e outras faixas de Undertow, mas logo progredimos para coisas mais refinadas, como “Jambi”, “Vicarious” e “Schism”. Era um desafio tocá-las, mas os caras da minha banda eram muito competentes. Eu não era páreo para Maynard, mas fizemos a coisa funcionar, tocando duas vezes por semana. Tocar naquela banda cover do Tool foi um dos pontos altos da minha vida na prisão. Chegamos a aperfeiçoar 11 músicas, e até fizemos um show antes de me colocarem na solitária. Eu incorporei Maynard para os fãs de Tool no pátio, gritando a plenos pulmões. Fazer cover do Tool era um negócio exaustivo.

Quando voltei de minha viagem à solitária, dois meses depois, a banda havia me substituído por um outro cantor. Deixei quieto, porque o sujeito realmente cantava as músicas melhor do que eu. Mas foi uma sensação ambígua ouvir um cantor diferente tocando com os meus parças, depois de termos tocado juntos por mais de um ano, e montado um setlist de músicas do Tool. Ainda assim, eu costumava ir vê-los de vez em quando, para obter a minha dose da música.

Publicidade

Fiquei pensando no passado enquanto esperava o Tool subir ao palco em St. Louis. Ver a banda ao vivo foi uma experiência totalmente diferente de berrar as minhas próprias versões para os fãs do Tool que estavam no pátio da prisão. No Lollapalooza, Maynard usara um vestido aberto nas costas, se remexendo palco afora como uma serpente. Parecia um demônio. Confesso que eu estava com a cuca cheia de ácido, mas juro que vi as vértebras dele se mexerem enquanto ele se contorcia. Nos últimos anos eu tinha lido muita coisa dizendo que ele se escondia atrás das caixas de som enquanto cantava, e coisas do tipo. Ele agora é famoso por sua timidez de palco. Não sei o motivo da mudança. As pressões da fama? Acho que os anos cobraram seu preço a Maynard.

Quando a banda finalmente apareceu e tocou “No Quarter”, não se podia ver Maynard em lugar algum. O baterista, guitarrista e baixista estavam destacados pelos holofotes, mas não Maynard. Finalmente consegui vê-lo na plataforma estendida da bateria, cantando na escuridão, preso nas sombras. Mal conseguia enxergá-lo. Maynard estava vestindo o que pareciam ser roupas especiais para lidar com protestos, um uniforme policial da SWAT ou os equipamentos de um soldado. De qualquer forma, Maynard estava em pleno modo de guerra, gesticulando insanamente às vezes, mas escondido nas trevas.

Foi um pouco decepcionante, mas esse é o modus operandi de Maynard, esse ar de exclusividade. Ele se mantém separado e acima dos outros. Mesmo que faça isso para ser um anti-astro do rock, ele na verdade está interpretando o papel de astro do rock com perfeição. Isso emana para o restante da banda, e fez deles uma mercadoria com um público apaixonado. Eu gostaria que Maynard caprichasse mais no show. A banda não tocou “Sober”, “Prison Sex”, ou qualquer outra do Undertow. Mas eles tocaram um monte de músicas incríveis — “Parabola”, “Schism”, “Jambi”. Lembrei dos ensaios da banda em que eu podia fugir da monotonia e da política da vida na prisão. Estar lá no show foi maravilhoso. Foi como estar de volta àquela sala onde ensaiava com a banda, mas agora em liberdade.

Foi uma longa jornada para o Tool e para mim, mas agora tenho acesso a eles: à explosão sonora de sua música e ao constante ritmo na minha cabeça. Às melodias das músicas preenchendo os espaços vazios. A música deles é firme, sincera e brutal, um revigorante crescendo que ataca meus ouvidos.

Siga o Seth Ferranti no Twitter e no site dele.

Tradução: Marcio Stockler

Siga o Noisey nas redes Facebook | Soundcloud | Twitter