Como as Gangues de Nova York dos Anos 70 se Juntaram para Acabar com suas Guerras

FYI.

This story is over 5 years old.

Outros

Como as Gangues de Nova York dos Anos 70 se Juntaram para Acabar com suas Guerras

Savage Skulls. Black Spades. Ghetto Brothers. Deadly Bachelors. Javelin. Dirty Ones. Tomahawks. O nascimento do homem pós-moderno.

Numa cena do documentário Rubble Kings, ex-líderes de gangues de Nova York oferecem uma lista de clãs que parece quase infinita.

Savage Skulls. Black Spades. Ghetto Brothers. Deadly Bachelors. Javelin. Dirty Ones. Tomahawks.

Um ex-membro pergunta no começo do filme: "Lembra aquela cena do Warriors 'Can you dig it?'". Aí a tela mostra os momentos de abertura do clássico cult de 1979. Centenas de membros de gangues da cidade de Nova York ouvem um pacificador chamado Cyrus, que depois é baleado e morto.

Publicidade

"Isso realmente aconteceu", o ex-membro de gangue continua. "De verdade."

Assim era o Bronx no começo dos anos 70: um campo de batalha de gangues de todos os tipos e tamanhos, coexistindo num estado vagamente moderado de anarquia, lutando guerras por territórios alimentadas pelo fracasso do planejamento urbano de uma cidade à beira da falência.

Rubble Kings é a história do que aconteceu naquelas ruas sujas contada pelos próprios líderes das gangues. É uma crônica cativante dos velhos tempos de Nova York – um tempo que parece estranho, mesmo que ainda seja evocado pelos defensores das políticas de janelas quebradas como um exemplo de como as coisas podem piorar. Ainda assim, contrariando a ideia de que a polícia vai nos salvar do caos, o final feliz de Rubble Kings não vem dos corredores do 1 Police Plaza. Isso aconteceu graças a uma trégua orquestrada por uma gangue chamada Ghetto Brothers. E essa paz teria um efeito cascata cultural em todo o mundo.

O documentário, que será lançado em canais por demanda e exibido em cinemas escolhidos em Nova York, Chicago e Los Angeles, chega num momento em que a violência de gangue está mais uma vez em ascensão na cidade. A VICE falou com Shan Nicholson, o diretor, sobre o filme e como o Bronx se despedaçou para começo de conversa.

VICE: Como você se envolveu nesse projeto?
Shan Nicholson: Isso aconteceu quando comecei meu filme anterior e estava fazendo pesquisa sobre ele. Cruzei com a história dos Ghetto Brothers lendo o livro Can't Stop Won't Stop, de Jeff Chang. Eu também conhecia a música deles, sou DJ e produtor. O disco do Ghetto Brothers é o Santo Graal da caça de discos. Achar isso é como encontrar o bilhete dourado do Willy Wonka. O disco é uma lenda. A história deles sempre esteve na minha cabeça, mas, quando li o livro de Chang e ouvi a história da gangue e da trégua, achei que seria uma narrativa incrível. Eu realmente queria abordar isso assim. Pesquisando mais e encontrando filmagens do tratado e dos Ghetto Brothers, pensei "Uau. Vamos começar o documentário e depois escrever o roteiro". Era uma dessas histórias que te perseguem. Tipo, eu estava numa festa e alguém mencionava os Ghetto Brothers. E eu dizia: "Acabei de ler sobre eles!". Com o tempo, isso foi entrando em foco.

Publicidade

Membros de uma gangue do Bronx. Foto por Stephen Salmieri.

E por que você quis contar a história deles?
Na minha época, não tínhamos gangues; tínhamos galeras, mas passei por muitos eventos similares quando morei em Long Island City, no Queens. Perdi meu melhor amigo em 1992, e todo mundo envolvido queria vingança. Ele foi assassinado, e não havia motivo para isso. Então, achei muito impactante que esses caras tenham escolhido a paz em vez da violência, e eles conseguiram fazer isso funcionar apesar de todas as chances estarem contra eles. Essa era meio que a norma. Se alguém mata um de vocês, você vai matar um deles. Foi isso que mais ressoou em mim nessa história.

Mas fiz a escolha de ficar atrás da câmera e não contar muito da minha história nesse filme. É estranho como a arte funciona: você é obviamente um produto do seu meio ambiente, e se você, como artista, é capaz de canalizar suas experiências para a arte, então, parabéns, certo? Eu não estava pensando sobre minha conexão com o meu passado quando fiz esse filme, mas é como uma vibração – isso entra em foco, isso destrava alguma coisa, tipo: "Ah, isso faz sentido". Isso está canalizando meu passado, e estou meio que consolando meus próprios demônios com esse filme.

Sempre houve essa história de gangues em Nova York. Por que elas aparecem em certas épocas e não em outras? Acho interessante como elas surgiram nesse período dos anos 70. Era uma reação não só à ruína social e econômica de Nova York, mas também às falsas esperanças dos anos 60. Muitos desses caras cresceram numa época de esperança, e essa esperança foi frustrada quando todos os líderes deles foram mortos. Daí veio toda essa atitude de "Foda-se: vamos ser Hell's Angels agora". E depois voltamos para o ativismo político que foi instilado em muitas dessas gangues, porque eles estavam protegendo seu bairro. Juntar essa energia e transformar isso em algo positivo foi algo muito poderoso para mim.

Publicidade

Membros de uma gangue conhecida como Screaming Phantons. Foto por Perry Kretz.

O que mais te surpreendeu enquanto você pesquisava e fazia o filme?
O quanto esses caras eram organizados. As tradições disso também, como as linhas apaches (que eram linhas territoriais que você não podia cruzar) e tudo mais. Eles tinham essa lei e ordem. E isso valia para todo mundo: não era tipo "As gangues brancas fazem assim, as gangues negra e porto-riquenha fazem assado". Era uma linguagem e uma cultura padronizadas, criadas por eles mesmos. E eu não sabia que isso era baseado nos Hell's Angels. Mas era. Os senhores da guerra como os sargentos de armas, os gestapos como os soldados: isso é tudo terminologia dos motoqueiros. Eu não sabia disso. Com presidentes e vice-presidentes – era algo muito organizado de cima até embaixo.

Parece que a maioria desses caras ficou em Nova York e se tornou ativista.
A maioria deles canalizou essa energia de diferentes maneiras para contribuir com algo. No final das entrevistas, quando eu já tinha feito todas as perguntas básicas, eu perguntava: "Estou perdendo alguma coisa aqui? Tem alguma coisa que não estou perguntando e que você gostaria de dizer?". E todos eles disseram: "Sobrevivemos, cara. E estamos indo bem. Quando você envelhece, você tem responsabilidades – você tem filhos ou simplesmente não pode viver aquele estilo de vida para sempre. Sobrevivemos e fizemos algo positivo com nós mesmos. Você precisa mencionar isso".

A maioria das coisas que você vê sobre gangues, na TV ou em filmes, é que eles pintam esses caras como monstros, reforçando o medo e o estereótipo. Você ouve falar em gangues negras e latinas agora, sempre ligadas ao tráfico. Você tem de entender que essa é uma mentalidade que acompanha isso. Nessas comunidades, isso é uma experiência tribal pela qual os garotos passam. É realmente como você escolhe usar aquela energia.

Publicidade

No filme, vocês quase não mencionam a polícia de Nova York, em parte porque eles tinham medo de ir até lá. Você menciona que, se alguémmorria, a polícia aparecia com equipamento de tropa de choque só para pegar o corpo. Qual era o significado dos policiais na época, especialmente diante das críticas atuais sobre excessos no policiamento?
Esse foi outro jeito como as gangues preencheram essa lacuna. Eles policiavam suas próprias comunidades. Eles expulsavam os viciados. E, quando as pessoas tinham algum problema, elas iam até o líder da gangue local e diziam "Ei, temos um problema aqui. Alguém estuprou minha filha", ou algo assim. Eles eram a lei. Ouvi uma história de que eles encurralaram um carro da polícia derrubando a parede lateral de um prédio; depois, começaram a jogar tijolos e latas de lixo do telhado em cima do carro. Era uma terra devastada, o que mais você podia fazer?

As pessoas que defendem a polícia hoje sempre falam sobre os velhos tempos e dizem que foi a coisa das janelas quebradas que salvou tudo: que foi essa política de "qualidade de vida" que restaurou a paz e a ordem. Mas o filme mostra que não foi nada disso. Foi uma paz interna, não uma força externa. Por que isso é importante no diálogo nacional atual sobre a reforma na justiça criminal?
Esse filme foi um processo de oito anos. Acabamos de filmar há um ano e meio. Se o filme tivesse saído na época, isso não seria tão relevante, mas, agora, isso está muito de acordo com o que está acontecendo. O fato de que Bloods e Crips estão se juntando em Baltimore para fazer um tratado de paz… é a mesma coisa. Não foram eles que se mataram, mas é a mesma coisa: eles estão se reunindo em volta de uma morte para criar a paz.

Publicidade

As gangues de Nova York se reúnem para discutir uma trégua. Foto por Alejandro Olivera.

No presente, quando estamos vendo a violência entre gangues voltar às manchetes em Nova York, que lição essa história tem a oferecer?
Passamos o filme para um grupo do colegial numa parte barra-pesada do Brooklyn. Fizemos um debate depois, e os garotos foram superfrios. O moderador disse "O que vocês acharam do filme?". E todo mundo queria ser fodão, e ninguém queria responder. Mas essa professora estava sentada perto de um dos piores garotos da escola, e o moderador perguntou "O que vocês diriam sobre o filme para os seus amigos?". E o garoto, bem baixinho, disse "Isso muda a mente das pessoas". E a professora disse "Levante a mão, cara! Diz isso para eles!". E o garoto ficou tipo: "Não, não". E eu disse para mim mesmo "Cara, isso não está ressoando com esses garotos".

Mas, depois, a professora me puxou de lado e me contou essa história. Se isso chegou naquele garoto, alguma coisa estava acontecendo.

Quando você é um adolescente crescendo cercado de violência sem sentido, não é preciso uma marreta para fazer a diferença. É preciso só um empurrão. É a liderança – dar o exemplo. Você precisa mostrar a eles uma direção diferente e saber que eles têm a habilidade de mudar seu ambiente e eles mesmos. Todos nós temos esse poder, é só se responsabilizar pelas coisas.

Pense em como Nova York mudou. Essa é uma das cidades mais ricas do mundo, mas, naquela época, esses garotos estavam vivendo em escombros e na miséria. Sei que muitas dessas gangues têm relação com drogas, mas veja o que esses garotos fizeram com nada, literalmente vivendo em escombros. Eles transformaram violência em cultura. Então, qual é a sua desculpa? Por que vocês estão machucando uns aos outros? Qual o sentido disso?

Siga o John Surico no Twitter.

Tradução: Marina Schnoor