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Música

Aquele Dia que o Ol' Dirty Bastard Foi de Limusine Buscar o Cheque do Bolsa Família

Descolamos um trecho da biografia The Dirty Version, com um relato em primeira pessoa sobre aquela treta do rapper pegar o auxílio do governo mesmo depois do sucesso.

O membro do Wu-Tang Clan, Buddha Monk, juntou forças com Derek Hess para escrever a biografia definitiva do Ol’ Dirty Bastard, chamada The Dirty Version, cujo lançamento está marcado para o dia 4 de novembro, poucos dias antes do décimo aniversário de seu falecimento. O livro conta em detalhes muitas das histórias mais famosas do membro do Wu-Tang Clan, como a vez em que foi de limusine pegar o cheque do auxílio governamental, e também investiga a mente por trás de algumas das mais memoráveis músicas do rap do século XX. Era ele tão louco quanto a persona que adotava no palco fez você acreditar?

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O livro está atualmente disponível em pré-venda na Amazon, mas você pode ler abaixo o sétimo capítulo inteiro, chamado "Aquele bom e velho queijo quente do governo".

Dirty colocou seu cartão do programa assistencial do governo na capa do próprio disco. Era esse o tipo de coisa que Dirty fazia para chamar atenção, e informar aos fãs que com ele era tudo às claras. Na música "Dog Shit", do Wu-Tang, ele disse: "Got meals but still grill that old good welfare cheese" ("Tenho as minhas refeições, mas ainda faço aquele bom e velho queijo quente do governo"), querendo dizer que, mesmo tendo dinheiro, ele continuava fiel às raízes. Disse também em sua música "Raw Hide": "Who the FUCK wants to be an MC if you can't get paid to be a fuckin' MC? I came out my mama's pussy, I'm on welfare. Twenty- six years old, still on welfare." ("Quem CARALHOS que ser um MC se você não pode receber para ser a porra de um MC? Saí da buceta da mamãe e já estava recebendo dinheiro do governo. Vinte e seis anos de idade, tô ainda recebendo.") Bom, depois que o Dirty morreu, o pai dele deu uma entrevista, e disse o quanto esse verso o havia magoado e constrangido – contou que a família recebia auxílio do governo no início, mas que ele e sua esposa haviam trabalhado duro para tornar a família independente do benefício, e que não conseguia entender porque seu filho estava na MTV se gabando de ser um dos beneficiados.

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O lance é que Dirty tinha orgulho de receber o auxílio. Ele pôs o seu próprio cartão de beneficiado na capa do disco. Seus pais podem ter trabalhado até conseguir sair do programa de auxílio governamental, mas quando Dirty saiu de casa e se casou com Icelene, teve de voltar imediatamente para o programa. Então Dirty pôs seu cartão de identificação para cupons de alimentos e assistência pública na capa do disco dele. Aquele era o cartão dele mesmo, só que com o nome e endereço substituídos pelo título do disco. Foi a maior ideia de todos os tempos: um cartão de assistência governamental vendendo a ponto de ganhar ouro e platina. Dirty estava sempre no centro do que estava rolando. Ele foi o produto de um bairro em que as crianças cresciam sustentadas pelo dinheiro do governo. Lembro que, durante o primeiro mandato do presidente Clinton, ele estava prometendo acabar com o programa, ou pelo menos mudar o sistema para que a pessoa recebesse dois anos de apoio financeiro e um curso técnico, e depois disso se esperava que arranjasse um emprego. "Temos que acabar com a assistência governamental como um estilo de vida", disse ele no discurso do Estado da União de 1994, "e transformá-la em um caminho para a independência e a dignidade".

Mas a independência e a dignidade funcionavam de um modo diferente no lugar em que ele nasceu. Quando você crescia sustentado por vale-refeição, e o mesmo acontecia com a maioria das pessoas à sua volta, não havia vergonha em pagar pela sua comida dessa maneira. Então, quando Dirty teve a ideia de ir de limusine pegar o cheque do governo, todo mundo achou engraçado. Nós achamos a ideia engraçada, mas o Dirty colocou o plano em prática. Ele realmente pegou o telefone e ligou para a MTV, para que o lance todo fosse filmado. Ele nem pensou em como isso poderia prejudicá-lo, ou afetar sua imagem. A Elektra havia pago a Dirty um adiantamento de US$ 45.000 pelo disco, o que excedia o limite máximo de renda permitido aos beneficiados pelo programa. Havia, ainda por cima, o dinheiro das vendas de discos do Wu-Tang Clan. Mas Dirty ainda não tinha declarado o imposto daquele ano, portanto ainda estava recebendo o auxílio com base na sua renda do ano anterior. Ele estava indo na TV anunciar que trapaceava o programa do governo. Eu estava lá, dizendo para ele: "ou, Dirty, faz isso não. Estou te dizendo, você vai pagar por isso em algum momento, de alguma maneira".

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"Nem, cê tá nervoso demais, Buddha. Preocupa com isso não."

E eu: "mano, é o meu trabalho – e nem recebo por isso – ficar de olho aberto por você, e te impedir de sair fazendo merdas tipo essa."

"Por que a pessoa ia recusar dinheiro de graça? Por que não ganhar alguma coisa do governo, só pra variar?"

Dirty estava usando um boné de caçador azul-celeste, com orelheiras, tomando birita na limusine a caminho do lugar em que receberia o cheque, acompanhado de mulher e filhos. Icelene usava óculos escuros, chapéu branco e um casaco fofo. Eles levaram o pequeno Barson, Taniqua e a pequena Shaquita no carro, e descontaram o cheque de US$375 e pegaram seus vales-refeição.

Dirty perguntou: "Você tá com a câmera ligada? Tá ligada? Ótimo. É dinheiro de graça. Por que alguém recusaria dinheiro de graça? As pessoas que querem cortar o auxílio, cara, acho isso terrível. Vocês sabem como é difícil as pessoas viverem sem nada? Vocês me devem quarenta acres de terra e uma mula, de qualquer maneira. De verdade. Estou nessa coisa de rap para ganhar dinheiro. Saca o que eu tô falando? Tenho bebês em casa. É hora de cuidar dos meus bebês. Não achei que fosse funcionar. Juro. Mas funcionou – a gente ganhou os vales-refeição!".

No instante em que ele acabou de falar isso, eu tava balançando a cabeça, tipo: "Dirty, ah mano…".

Não que esta mensagem sobre ganhar dinheiro fosse qualquer novidade para um rapper. Os rappers nunca tiveram vergonha de ganhar dinheiro com música. O Wu-Tang disse que "o dinheiro comanda tudo à minha volta", mas antes deles já tinha o grupo EPMD, que significa Erick and Parrish Makin' Dollars (Erick e Parrish Ganhando Grana). Too $hort disse que, se não lhe pagassem, ele nunca faria rap. Biggie disse que, sendo uma criança negra favelada, você tem três rotas de fuga: "Ou você trafica pedra de crack, ou você dá umas enterradas fodas", ou abre caminho com o rap, como aconteceu com Biggie, com Dirty e comigo.

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Os críticos reclamam que o rap acabou se concentrando demais em exibir carros de luxo e joias caras – e concordo que essas coisas distraíram as pessoas das batidas e das rimas, e das histórias que os rappers contam – mas quando você vê como muitos desses rappers cresceram, entende que eles nunca sonharam, nem em um milhão de anos, que teriam dinheiro para comprar carros como aqueles. Por que eles não mostrariam para todo mundo? Dirty não ficava exibindo o dinheiro que ganhava; ele era honesto sobre de onde o dinheiro vinha. O povo de Dirty eram os afro-americanos e os índios – a América tinha ferrado com ele. Agora ele estava só roubando de volta o pouquinho que tinha condições de roubar.

A MTV News deu ao segmento o título de "Ol' Dirty Bastard Recebe o Pagamento". O impacto foi grande. Quando foi ao ar, eu e Dirty estávamos na Alemanha. A gente tinha acabado de fazer um show e de chegar na cidade seguinte, para preparar o próximo show. A Elektra Records telefonou pro Dirty e peguntou: "ou, você tá vendo televisão nesse momento?"

"Não. Por quê?"

"Porque o presidente tá falando de você."

Dirty disse: "O QUÊ? Buddha, vem aqui no meu quarto, vem aqui!"

A gente ligou na MTV News e eles estavam mostrando o vídeo de um discurso do presidente Clinton, ele prometendo mudanças no programa de auxílio do governo e falando sobre como os Estados Unidos não iam tolerar que as pessoas abusassem do sistema. Então é o presidente dos Estados Unidos falando, e daí eles cortam para o Dirty saindo da limusine, entrando para pegar o cheque do auxílio. Daí eles cortam de volta para o presidente, ele falando de como a gente tem que ser mais severo com as pessoas que recebem assistência pública.

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E essa porra simplesmente fudeu comigo e com o Dirty. Eu tava lá sentado falando: "Pô, nego, eu te disse pra não fazer isso. De agora em diante você vai começar a ouvir o que eu te digo, porque senão você fode essa porra toda".

O assistente social de Dirty viu o vídeo da MTV e cortou o benefício dele. Tente imaginar essa cena. O assistente dele estava talvez sentado em casa, tomando uma cerveja, e Russell Jones aparece na televisão indo de limusine pegar o cheque do governo.

Mas no bairro, porém, as pessoas adoraram. Quando voltamos para Nova York, a gente andou pelas ruas do bairro e todo mundo falava tipo: "ou, Dirty, acabei de receber meus vales-refeição. Eu recebo a mesma parada que tu!"

Eu disse, "Ih, caralho, você viu a epidemia que acabou de criar nas ruas?"

Dirty disse: "Isso é bom. Agora eles não têm mais que encarar como se fosse uma coisa ruim. As pessoas estão aí recebendo vale-refeição, encontrando algum jeito de arranjar esse dinheiro. Roubar dos ricos para dar aos pobres. O governo provavelmente deve esse dinheiro a eles, de qualquer forma. Ou, a gente só ajudou o nosso povo. E veja a coisa da seguinte maneira: para cada um que diz isso pra gente, é mais um disco nosso vendido. Eles acreditam no nosso movimento."

As pessoas do bairro entenderam o que Dirty estava fazendo, mas para os críticos do programa governamental, ele tinha apenas reforçado o estereótipo do trapaceiro, que usavam de plataforma para tentar acabar com o programa de benefícios. Os políticos que eram contra o auxílio governamental alegavam que os manos estavam recebendo seus cheques enquanto ganhavam um salário não-declarado com a venda de drogas, e que as mães que dependiam do auxílio estavam tendo filhos só para poder ficar em casa e receber um cheque, em vez de sair à cata de um emprego. Quando encarada com esse tipo de atitude, a piada do Dirty não parecia ser uma manifestação política de modo algum – só fazia confirmar os estereótipos negativos sobre os negros do bairro pobre, roubando dinheiro dos americanos que trabalham duro e pagam seus impostos. Claro, a piada de Dirty rendeu algumas vendas de disco, mas a que custo? Dirty sempre foi conhecido como rebelde e imprevisível, por causa de seu estilo de rima e da persona que adotava no palco, mas o cheque do governo marcou um ponto de virada para ele, no sentido de que pessoas que nem ouviam rap o conheciam pelo nome e estavam esperando para ver o que ele faria a seguir.

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Não foi coincidência que o vídeo seguinte de Dirty o mostraria vestindo uma camisa de força e confinado numa cela de hospício. Na mente do público, Dirty se tornara aquele rapper maluco que ia de limusine pegar o cheque do benefício social. Tornou-se um evento definidor de carreira, de um modo do qual acho que Dirty se orgulhava, mas ele queria que as pessoas conseguissem enxergar além daquele vídeo de cinco minutos, e vissem o restante de sua mensagem e de sua música – ele se orgulhava de ser o mesmo sujeito nos discos que era pessoalmente. Mas, depois que o segmento da MTV News foi ao ar, ele começou a sentir que as pessoas olhavam para tudo o que ele fazia como se fosse parte de uma encenação. Ele sentia que as pessoas começaram a olhar para a vida dele como um longo golpe publicitário, e não sobrou espaço para que ele fosse uma pessoa privada.

Dream Hampton, escrevendo no Village Voice, chegou ao ponto de especular a respeito da sanidade de Dirty: "Não tenho certeza de que Ol' Dirty tenha articulado com qualquer nível de clareza suas posições a respeito da reforma do programa de benefícios do governo. É coisa de louco esperar que venha clareza do autoproclamado fdp bêbado do hip-hop, eu sei. A questão é: será que a insanidade pode ser revolucionária, se ela vive dentro do corpo Negro de um fdp louco e imprevisível? Se não podemos confiar nos nossos loucos, eles podem ser dispensados?" Depois que Dirty andou de limusine na MTV News, os críticos ou queriam chamar ele de louco ou dizer que a coisa toda era um golpe publicitário. Ambas as respostas eram uma forma de menosprezo.

As pessoas usam essa palavra "louco" com muita leviandade quando falam de Dirty. É preciso reconhecer que ele fez por onde, dizendo que era louco ao se apresentar para o mundo na faixa "Intro" do Return to the 36 Chambers: "This fuckin' guy that I speak to you about is somethin' crazy. He's somethin' insane." ("Essa porra desse cara do qual tô falando pra vocês é meio louco. Ele é meio insano.") Mas o Method Man, em "Wu-Tang: 7th Chamber" disse: "I be that insane nigga from the psycho ward" ("Eu sou aquele nego insano da ala dos psicopatas"), e ninguém chama o Meth de louco. Era só um outro modo de se vangloriar. Dirty era louco no sentido de excêntrico e desenfreado, não de psicótico. O Dirty era engraçado, mas ele era sério também. Durante o segmento da MTV News, ele parou de cantar embriagadamente a música "Check It Out", do Friends of Distinction, para olhar diretamente na câmera e perguntar aos críticos do programa social: "Vocês sabem como é difícil as pessoas viverem sem nada?". Ele pode não ter escrito um manifesto político, mas o homem fez valer o seu ponto de vista.

The Dirty Version está disponível em pré-venda na Amazon.

Tradução: Marcio Stockler