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Música

A Emoção da Voz e do Corpo em Antony and The Ohnos

Como foi a disputadíssima apresentação da artista inglesa em homenagem a Kazuo Ohno, mestre do teatro butô.

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As luzes se apagam, os três sinais tocam, uma música incidental repetitiva e carregada dá um tom pesado ao ambiente. Depois de tempo o bastante para separar o mundo de fora do espetáculo, uma figura esguia e feminina de salto alto, muito alta, pintada de preto e branco e vermelho da cabeça aos pés, entra no palco inteiramente coberta por um véu de tule. O som tenebroso dos alto falantes acompanha lentos movimentos que aquela figura bizarra faz sob o véu de corpo inteiro. Aos poucos, uma luz de projetor se mostra em uma tela que toma o palco inteiro, enquanto a figura continua dançando. Trechos do filme de Chiaki Nagano, Mr O’s Book of The Dead, mostrando estranhas figuras japonesas em um vilarejo em ruínas, começam a passar na tela. Uma figura cambaleia num barranco, jogando pedras de uma cesta que fez com as próprias vestes. A música tenebrosa continua, cambaleia e cai no barranco. Esboça uma intenção de convulsão, fica em pé de novo.

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A figura é Kazuo Ohno, o padrinho artístico de Antony Hagerty segundo ele mesmo, e a voz mais linda que eu já ouvi ao vivo na minha vida. A dançarina Johanna Constantine deixa o palco lentamente, o filme continua e vai sumindo, a tela da projeção sobe, revelando um piano de cauda e, atrás dele, Antony começa os primeiros acordes de "Hope Ther’s Someone" e começa a cantar. O público que lota o teatro acompanha completamente mudo.

Não lembro ao certo como nem quando fiquei sabendo o que era butô — em falta de melhores termos, uma dança contemporânea expressionista japonesa, desenvolvida especialmente período pós-guerra. Provavelmente foi por meio do meu irmão, que durante vários anos foi bailarino de dança contemporânea, mas sei que foi no YouTube a primeira vez que vi em movimento, e era um espetáculo do Sankai Juku. Provavelmente esse. Na época, ainda não havia tantos vídeos assim da prática, mas fiquei sabendo que provavelmente por causa da forte cena cultural da colônia japonesa em São Paulo, que como costumeiramente gostam de nos lembrar é a maior cidade japonesa fora do Japão, o grupo em questão, provavelmente o maior expoente da dança no mundo, já havia visitado o Brasil em diversas ocasiões. Outro nome apareceu também na minha breve pesquisa de internet, dessas que disparam um interesse novo em nossas cabeças, Kazuo Ohno.

Capa do 'The Crying Light'

Antony Hagerty entrou em contato com o butô de maneira inesperada. Quando estudava na França aos 16 anos de idade, se deparou com um cartaz de rua com a figura dramática, um homem vestido de mulher, com as mãos voltadas para cima como que suplicando. Ao ganhar um dos cartazes do homem que os colava na rua, Antony colocou ele em cima de sua cama, onde ele diz que permanece até hoje, sem saber que se tratava de uma fotografia de Kazuo Ohno, a mesma foto que seria a capa de seu terceiro álbum, The Crying Light. Seis anos depois, ao ver o filme Just Visiting This Planet de Peter Sempel, Antony ficou extremamente emocionada ao ver uma figura andrógina se mexendo com a riqueza do movimento de uma criança. Ao voltar para casa, percebeu que era o mesmo homem da foto em cima de sua cama.

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O espetáculo Antony and The Ohnos foi montado por Antony para homenagear Kazuo Ohno e o filho de Kazuo, Yoshito Ohno. Na semana passada a trupe desembarcou no Brasil para duas apresentações cujos ingressos esgotaram imediatamente após a abertura das bilheterias, duas semanas antes, no site do SESC. A apresentação contou com quatro artistas. Na metade músical do palco, além de Antony com sua voz e piano, o músico Rob Moose acompanhava às vezes com violão clássico às vezes com violino as harmonias trágicas do inglês. Também conhecido por colaborar com nomes como Bon Iver e Sufjan Stevens, o acompanhamento de Rob, que trabalha com Antony pelo menos desde The Crying Light, cuja faixa título coincidentemente é uma homenagem a Kazuo Ohno. O acompanhamento de Rob Moose no espetáculo fez o papel correto de copiloto de Antony; se encaixava bem como acréscimo sem se sobrepor à voz de Antony — que era o principal motivo daquelas pessoas todas estarem lá afinal de contas —, completamente funcional, mas dando o toque adequado ao espetáculo. A metade da dança já era um jogo mais contrastante, de lados diferentes da dança contemporânea.

Ao ver o clipe de Epilepsy Is Dancing, é difícil não pensar na coreografia de Nijinsky para “A Tarde de Um Fauno”, na música de Debussy. Essa galera certamente conhece

isso daqui

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A dançarina e performer Johanna Constantine, que estrela o clipe de Epilepsy Is Dancing, trabalha com Antony desde pelo menos 1992, quando as duas junto com Psychotic Eve montaram a primeira peça do grupo Blacklips, que apresentava um novo espetáculo de teatro toda segunda-feira, sempre no Pyramid Club, importante clube para a cena drag de Nova York. Diz a lenda que foram nessas apresentações que Antony mostrou pela primeira vez suas canções, como seu primeiro hit “Cripple and the Starfish”. Os dois continuam se apresentando juntos, com Johanna frequentemente dançando e fazendo performances ao som de Antony. A formação de Johanna no bizarro mundo do teatro drag contrasta sensivelmente com a dança de Yoshito Ohno, e ao longo da peça ela fez apenas duas aparições: na abertura já descrita e quando uma segunda vez a tela de projeção desce com os quatro artistas no palco, novamente ao lado de trechos do filme de Chiaki Nagano com Kazuo Ohno. Nessa hora, o lado esquerdo do palco estava ocupado por Antony, Rob e Yoshito, e do lado direito, atrás da tela translúcida onde passava o filme, Johanna entrou no palco empunhando duas foices com as quais fazia uma bizarra e repetitiva coreografia que parecia que não ia terminar nunca mais. Mesmo com a forte presença de Yoshito do outro lado do palco e na frente da tela, era difícil não ficar olhando para aqueles movimentos macabros.

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Ao descrever sua paixão pelo butô, Antony costuma citar dois atributos da dança japonesa: o feminino e o infantil, e é fácil entender o fascínio dela por esses dois aspectos. Na hipersensibilidade da artista, a inocência e leveza da criança e a identidade feminina estão sempre presentes, talvez mais do que o tom trágico e triste que costuma ser associado às suas músicas. Yoshito trouxe ambas as esferas ao palco com suas intromissões mínimas, sutis, em que a batidíssima imagem de uma rosa vermelha se torna algo significativo de novo pela voz de Antony e movimentos de Yoshito, com seu figurino estranho, andrógino, alienígena. Sabe uma criança quando está com energia de mais e fica completamente ensandecida? Bombardeando o mundo com sua curiosidade destrutiva? Yoshito consegue encarnar isso em uma velocidade muito, mas muito mais lenta. Seu caminho gestual deixa cru o corpo infantil, vestido neste corpo de um velho japonês de 77 anos de idade. Já foi dito pelo seu pai, Kazuo Ohno, que a própria presença de Yoshito era um fato artístico; talvez o mesmo possa ser dito de todos os grandes praticantes do butô. Ao ver aquela figura diminuta no palco, eu certamente diria o mesmo de seu filho.

Com certeza, a dança não foi o principal motivo para as pessoas irem assistir Antony and The Ohnos, mas a voz e o piano de Antony. Existem poucas coisas que mostram melhor o peso da cultura artistica ocidental do que um belo de um piano de cauda e um vozeirão por cima dessa harmonia. Eu nunca consegui suportar ópera, sempre me soou fingido, um exemplo concreto da pretensão racionalista sobre as artes, de tentar fazer tudo ao mesmo tempo e no final das contas não conseguindo fazer nada direito. Talvez eu seja moderno de mais para isso, mas ao menos consigo ver o valor mais óbvio dessa arte na maestria de técnica vocal que ela ajudou em grande parte a desenvolver. Posto isso eu amo um bom e trágico piano e voz, explica meu amor por Cida Moreira, explica meu amor por Antony.

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O setlist era principalmente baseado no disco que Antony dedicou a Kazuo Ohno, The Crying Light, mas teve músicas de todos seus discos e uma impressionante versão de Can’t Help Falling In Love, famosa na voz de Elvis Presley. Uma vez eu ouvi que Milton Nascimento emociona até cantando “Parabéns a Você”, se for assim Antony cantando Elvis faz até as paredes chorarem. Durante as músicas, Yoshito entrava e saía do palco, como um espírito irriquieto, uma vez tendo voltado com um espelho de corpo inteiro do camarim e refletindo a luz dos refletores diretamente na plateia. Antony, acompanhado de Rob Moose, tocou entre outras; Hope There’s Someone, Crying Light (que definitivamente esclareceram para mim agora seus versos finais em I Was Born to Adore You / As a Baby in the Blind), You Are My Sister, e a que inesperadamente mais me tocou, Another World, que no ambiente do teatro preencheu toda a atmosfera com sua melancolia e desesperança.

O contraste da figura inocente de Yoshito, que ao final do espetáculo empunhava um pequeno marionete de dedo e interagia com a plateia, o piano e os cabelos de Antony, e a profundidade trágica da voz de Antony se mostraram um equilibrio maior do que eu esperava. No baixar da cortina, o público ovacionou de novo e de novo, esperando um bis que nunca veio.

Um rapaz que estava perto de mim e da minha mulher quando estávamos do lado de fora esperando um táxi reclamou que “não deviam ter ficado batendo palma entre as músicas, é um espetáculo não um show!” Outro disse “Nossa, aquela voz… alucinógena”. Se é alucinógena eu não sei, mas entendo a ânsia de querer descrever o efeito que a voz de Antony causa em nossos ouvidos. Podem até ter batido palma na hora errada, mas quando Antony abria a boca, todo mundo fechava o bico.