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Música

It’s Real: A Realidade Bem de Bairro do Real Estate

O Real Estate remete a coisas que dão quase pra desenhar. Mas é claro que sentimentos são difíceis – no limite impossíveis – de colocar no papel.

Músicas, artistas, discos, bandas, fases de banda, formações de banda, capas de disco, cabeleiras de cantor de banda. Essas coisas todas evocam sensações, sentimentos no fã de som. Alguns são bem difíceis de descrever mesmo, nos levam a gesticular com as mãos “bitcho esse disco é muito mais ASSIM, manja?” ou até, na falta do que falar, a meter uns “parece os Beatles”. “É memo?”. “Ah, parece vai”.

Já o Real Estate me remete a coisas que dão quase pra desenhar. Mas é claro que sentimentos são difíceis – no limite impossíveis – de se desenhar (os criadores daquele jogo Imagem & Ação sabiam muito bem disso quando colocaram toda essa categoria de sentimentos, sensações e afins na letra D, de Difícil, onde sua dupla sempre se encrenca), então eu vou contar uma historinha:

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Eu fui uma criança e um adolescente bem de bairro. Especialmente entre os 9 e os 13 anos (o que dá entre 1990 e 1994), antes que um a um todos começassem a caçar um emprego, o que eu e minha turma fazíamos era nos juntar e ir fazer algo pelo bairro do Ipiranga em São Paulo. Jogar fliperama (ou video game de locadora alugado por tempo, basicamente Mega Drive e Super Nintendo na época), tomar aqueles sorvetes de máquina que se formam a partir de líquidos coloridos, andar de bicicleta, mas principalmente juntar o time no sábado de manhã pra ir jogar um contra.

Essa é a máquina de sorvete. É verdade que sem a cor não seria muito fácil diferenciar um sabor do outro, porém todos são joia.

O nosso time era o Perdidos na Quadra, um nome que foi dado pela geração dos nossos irmãos mais velhos. Provavelmente foi inventado pelo Kleber, um sujeito cabeludo meio Axl Rose, debochado do tipo meio mongolóide mesmo, encrenqueiro, temido no bairro (imagine um cabeludo Axl Rose que era temido lá no Ipiranga e você consegue captar muito do que era o início dos anos 90), mas de bom coração. Deve ter sido ele porque ele que inventou quase todos os apelidos, que se formavam a partir de evoluções complexas. Por exemplo: o Sapo era um cara que tava sempre comendo mixirica, foi chamado de mixirica, depois tangerina > girina > girino > sapo; ou o Camarão, que era pinico > nico > N’Kono (goleiro da seleção de Camarões na copa de 90) > camarão. Nessa época eu era o Jorge Tadeu, que era o personagem do Fábio Jr. na novela e eu tinha o cabelo igual ao dele.

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Perdidos: um time bem montadinho.

Começamos a encher o saco do pároco local, o Padre Brito, pra deixar a gente jogar na quadra do seminário. A gente curtia muito o Padre Brito, ele era um velhinho bem padre mesmo, falava calmamente, sorrindo, com aquela voz serena de padre e, mesmo sem entender bem por que, a gente sabia que o que ele falava estava certo, então a gente respeitava. Uma hora ele resolveu deixar, e os nossos contras começaram a ser ali na quadra do seminário. A maioria era contra o nosso arqui-rival do bairro, o Time do Bocão. O Time do Bocão era meio desequilibrado mas não era ruim, tinha um goleiraço (o Rabisney) e um craque na linha (o Josinaldo). O Bocão mesmo não sabia nada de bola, mas ainda assim era o líder do time porque liderança é uma coisa mística. Rolava todo sábado o contra, era equilibrado, uma rivalidade bonita. O Perdidos também não era fraco, o Papel era muito bom de bola e o Torresmo um baita zagueiro. Eu jogava no gol, era um goleiro irregular.

Certo dia o Padre Brito resolveu organizar um campeonato, abriu inscrições. Se inscreveram o Perdidos na Quadra, o Time do Bocão e mais uns 6 times, por aí. O padre chamou todos para uma reunião, falou do Evangelho e dos propósitos de comunhão do campeonato. Primeira rodada, Padre Brito presente: o Time do Bocão e o Perdidos jogavam na sequência, um logo depois do outro, contra times que a gente não conhecia. Quando Bocão e sua equipe foram para a quadra aconteceu algo surpreendente: toda a nossa histórica rivalidade se transformou em um apaixonado apoio por parte do Perdidos & Amigos que estavam na arquibancadazinha de cimento. Eram os nossos antigos arqui-rivais jogando, nenhum forasteiro podia ganhar deles. Foi um sentimento espontâneo e grandioso, o Time do Bocão se contagiou, ganhou o jogo, comemoramos juntos.

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Entrou o Perdidos, na arquibancada Bocão e sua turma apoiavam ainda mais a gente. O jogo começou tenso, primeiro tempo truncado, terminou empatado em 2 a 2. No segundo tempo o Perdidos voltou inspirado, Papel e N’Kono jogando muito, abrimos vantagem. Quando estava mais ou menos 7 x 3 pra gente e nossos antigos rivais enlouqueciam na arquibancada cantando “Perdidoô ôôô ôôô”, o time adversário perdeu a cabeça e começou a dar pancada. Era o que faltava pro Papel revidar com provocação. Bola pra ele, ele para ela no joelho e fica olhando pro adversário, este chega dando uma bica na barriga dele.

Não é muito difícil adivinhar o que aconteceu na sequência: a turma do Bocão e nossos amigos entraram na quadra, começou uma confusão feia, pancadaria mesmo, o time adversário saiu fugido e no final das contas o Padre Brito, decepcionado, ciente de que esta missão havia fracassado, chamou a gente e falou, serenamente como sempre, que o campeonato estava encerrado.

Putz achei uma foto na internet. É exatamente essa a quadra! Aí onde está sendo preparada uma bonita festa de colégio a gente um dia saiu no murro na frente do padre. Que vergonha. (via)

***

O Real Estate pra mim evoca coisas como essas, coisas de bairro, lembranças de sentimentos muito reais, formados a partir de experiência direta e não de abstrações distantes, sociais, de jornal ou de histórias que foram ouvidas mas não realmente vividas. Uma realidade que não se esquiva, não se esconde e da qual não se duvida. “It’s Real”, como dizem naquela música.

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É possível perceber essa sensação de realidade imediata permeando vários aspectos do que a banda é e representa. As várias referências que apontam para um senso de comunhão com o lugar onde se nasceu e cresceu, comunhão com o chão, as árvores, os comerciantes, as ruas do lugar. Um lugar – pode ser um bairro ou uma cidade pequena – que você conhece como a palma da sua mão: você foi batizado naquela igreja, estudou na escola do fim da rua, jogou bola ali no beco, namorou na praça. Pela sua experiência própria, você aprendeu tudo sobre esse lugar. A experiência própria é a forma que todo mundo mais gosta de aprender as coisas. Aprende fazendo, vendo com os próprios olhos. [obs: este parágrafo foi em grande parte copiado do blog do ex-marechal iugoslavo Tito] Às vezes isso surge em uma letra, na forma de uma revisão, de um acerto de contas daquele tipo que vem após uma torrente de experiências novas, que colocaram o sujeito a uma distância a partir da qual agora é possível enxergar melhor o que aconteceu e tornar maior, posteriormente, aquilo que foi vivido.

All those wasted miles
All those aimless drives
Through green aisles
Our careless life style
It was not so unwise
No

[Todas aquelas milhas desperdiçadas
Todos aqueles passeios sem rumo
Por caminhos verdes
Nosso estilo de vida despreocupado

Não era tão tolo
Não]

O distanciamento é algo que parece chatear o Real Estate. Eles parecem achar que mudar, se movimentar demais, é algo que eles já fizeram e por isso agora conseguem enxergar, por contraste, a beleza do que já existia antes, do que sempre existiu e sempre existirá. Retornos estão por toda parte na obra deles, mostrando um tipo de amor ao que vai se confirmando como eterno, e junto com isso um desprezo por vanguardismos.

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Isso se mostra também nas formas musicais: um acorde depois do outro, sem dissonâncias, sem quebras de tempo. Nos arranjos os efeitos são sutis ou totalmente ausentes, guitarra limpa, palhetada no sossego, sem se afobar; se afobar é algo que eles aprenderam a não fazer mais. No meio dos álbuns tem sempre uma música instrumental que você pensa “vai ficar nisso? Não vai acontecer nada mais?”, e não, não acontece mais nada, foi só um dia comum mesmo, amanhã quem sabe.

É pouco tranquilão os cara?

Acho possível que muita gente se incomode, ache um saco que o Real Estate pareça não ter a mínima intenção de surpreender, de inovar, de chocar, ao menos não no sentido comum no qual se usa essas palavras atualmente. Mas o choque que eles causam é justamente sendo assim, permanentes, ordenados, no meio de um mundo viciado em mudanças a mil por hora. É como se o desdobrar do tempo pra eles servisse não para descobrir coisas novas, nunca antes vistas, mas pra confirmar coisas, pra aprofundar o que de certa forma sempre souberam. Se tentassem inovar, experimentar novos sons, novos elementos, eles perderiam o sentido, a razão de existir, e se tornariam banais.

Eu assiti a um show deles em um festival alguns anos atrás. No final o Bleeker, que na época ainda era um simpático gordinho de boné, falou: “Pessoal, daqui a pouco vai ter o Yo La Tengo ali no outro palco, eles também são de Nova Jersey”. Só faltou completar com: “Nós perdemos o último jogo de beisebol lá da rua pra eles caraio rs”.

Stan Molina garante que tudo (100%) neste texto é verídico.