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quadrinhos

O Visconde da Sacanagem

Responsável por perverter uma geração, o idealizador e editor da Circo Editorial, Antonio Mendes, me espera apoiado sobre o portão baixo da casa onde mora e trabalha.
Antonio Mendes

Eu era um caipira nerd adolescente, matriculado com bolsa de estudo num colégio católico em São José do Rio Pardo, quando entrei em contato pela primeira vez com uma Chiclete com Banana, no começo dos anos 90. Quem me passou sorrateiramente alguns exemplares da revista foi meu professor de História (manja aquele mestre gente boa, do tipo que sempre dá um jeito de ensinar para a gente coisas muito mais importantes do que os motivos da Revolução de 30?). "Se a direção te pegar com isso, não fui eu que te passei", avisou. Ele não queria encheção de saco por emprestar uma revista que a direção consideraria "pornográfica".

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A revista me pegou de cara. Da Chiclete, passei a escarafunchar nas bancas e nos sebos atrás das outras publicações da Circo Editorial: Piratas do Tietê, Geraldão, Circo. Eu já conhecia dos jornais o trabalho de Angeli, Laerte e Glauco, mas nas revistas eles se mostravam bem mais feios, sujos e malvados, andando na péssima companhia de autores diferentes de tudo o que eu já tinha lido. Lembro de Mara Tara chupando os paus dos incautos até matá-los. Dos Piratas do Tietê matando pacientes cardíacos de susto no Incor. De Geraldão lendo Freud em busca de dicas para comer a mãe. Lembro de Glauco Mattoso despejando merda, porra e chulé para falar de política. De Marcatti contando histórias de amor incestuoso e velhinhas esquartejadas. Lembro de Furio Lonza detonando Rui Barbosa e Euclides da Cunha. Das mulheres peladas de Edi Campana. Do Visconde da Casa Verde distribuindo aulas práticas de suicídio. Com as revistas da Circo eu me masturbei e tive meu primeiro contato com literatura beatnik, Fernando Pessoa, Harvey Peaker.

Aquilo entortou de vez minha cabeça. E a cabeça de muita gente. No auge, a Chiclete com Banana chegou a vender 150 mil exemplares—sem nunca atrair anunciantes. Ao lado do Pasquim, entrou para os anais como uma das principais revistas da história do humor brasileiro.

Responsável por perverter uma geração, o idealizador e editor da Circo Editorial, Antonio Mendes, me espera apoiado sobre o portão baixo da casa onde mora e trabalha, numa rua tranquila próxima ao Cemitério da Lapa, zona oeste de São Paulo, em uma tarde fria de outubro. Veste seu uniforme de trabalhador home office: calça jeans, camisa branca, chinelo de dedo e chapéu. "Você trouxe fotógrafo? Espera aí que já volto", pede, antes de desaparecer no interior da casa. Retorna dali a pouco, com a barba feita e de camisa limpa, e avisa para a fotógrafa: "Vem aqui que vou mostrar onde tem uma luz legal para fazer a foto". Editor, diagramador, diretor de arte, poeta e escritor, Toninho Mendes faz a própria produção visual.

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No cômodo atulhado de livros e revistas que Toninho usa como estúdio, a tela do computador exibe as páginas em que o editor estava trabalhando antes da nossa chegada. Dou uma espiada, esperando achar imagens de quadrinhos ou pornografia, mas dou de cara com… receitas de doces?! Sim, Toninho também diagrama revistas de culinária, entre trocentos outros trabalhos. "Estou numa fase muito 'católica'. É o pão nosso de cada dia", brinca Toninho. "Queria fazer só coisas que gosto, mas a realidade é outra."

Uma das coisas que Toninho gosta é da sua última empreitada editorial: o selo Peixe Grande, criado em junho com o objetivo de resgatar a história da pornografia, dos quadrinhos, do humor e da imprensa no Brasil. O primeiro lançamento já vendeu 1.000 exemplares da tiragem de 1.500: a caixa Quadrinhos Sacanas, que reedita em acabamento de luxo os velhos "catecismos", gibis pornográficos de traço tosco e impressão ainda pior que circulavam clandestinamente entre os punheteiros das décadas de 50 e 80.

"Nossa geração conheceu o sexo através dos 'catecismos'. É uma das coisas mais importantes da história da formação do brasileiro, mas que sempre foi desprezada ou tratada com sociologuês da USP", afirma Toninho, que teve seu primeiro contato com as revistinhas de sacanagem aos dez anos, época em que estudava em colégio de freira e ajudava o padre como coroinha. A sacanagem dos "catecismos" que a Peixe Grande busca resgatar "pode não ter importância estética, mas tem importância cultural", segundo Toninho. É uma putaria que "ajuda a entender o que é o Brasil".

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E vem mais por aí. Com seis meses de vida, a Peixe Grande lançou também Maria Erótica e o Clamor do Sexo, de Gonçalo Júnior, sobre a mão cabeluda da censura que tesourou o sexo das revistas durante a ditadura, além de Catecismo Americano, coletânea de quadrinhos pornô made in USA entre as décadas de 30 e 50, conhecidos como "Tijuana Bibles", e prepara o segundo volume de Quadrinhos Sacanas. Todos com impressão de luxo e tiragem limitada, vendidos pelo preço sugestivo de R$ 69. "Aí está um pouco do que eu sou, do meu espírito transgressor. Estou fazendo de uma forma luxuosa uma coisa que era feita escondida", afirma Toninho.

Transgressor. A palavra que define Toninho Mendes. "Essencialmente o que marca a minha vida é a transgressão. Sou um outsider por natureza", define, enquanto fuma um cigarro de palha atrás do outro, sentado sobre um banco de madeira na garagem de casa. E tinha de ser assim. A natureza de Antonio Mendes estava marcada desde seu nascimento, às 3 horas e 30 minutos do dia 30 de abril de 1954, em Itapeva, no interior de São Paulo. Muitos anos depois, num terreiro de umbanda, uma entidade diria a Toninho que a data do seu nascimento indicava que ele era da linhagem do caboclo Flecha Certeira. "Eu perguntei: o que isso significa? E ele respondeu com uma risada: 'Sempre acerta no alvo, para o bem e para o mal'." No horóscopo, a mesma data tem outro significado. Toninho é Touro com ascendente em Áries. Ou, nas suas próprias palavras: "Sou fogo correndo sobre a terra, que só para na água".

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Aos seis anos, depois de morar em Itapetininga e Miracatu, no rastro do pai que trabalhava em construção de estradas, o fogo da vida de Toninho veio parar sobre as águas do Rio Tietê, quando a família se mudou para São Paulo. "Para São Paulo, não. Me mudei para a Casa Verde", corrige. "Se eu tivesse ido para a Liberdade ou para o Canindé, nunca haveria uma revista chamada Chiclete com Banana. Minha visão de mundo seria outra."

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Imagens de arquivo cortesia de Toninho Mendes.

Na Casa Verde, entrou em contato com a malandragem, o jogo do bicho, as escolas de samba que o jogo financiava, a maconha. E foi na Casa Verde que conheceu o Rio Tietê, a quatro quarteirões de sua casa. Toninho via os barcos compridos do clube Espéria passeando pelo rio, viu pescadores que tiravam o sustento daquelas águas. Viu o rio vivo. E viu o rio morrendo. A cada dia, via mais montes de merda passando sobre o Tietê. Até fetos Toninho viu passando sobre as águas cada vez mais escuras e fedorentas do rio de sua infância. E entendeu que o rio sofria de gente. "Percebi muito cedo que os homens eram culpados pelo rio estar daquele jeito. Quem está podre são os homens, não o rio", detona.

"Que homens são esses que não sabem sequer o gosto & o cheiro da bosta que diariamente produzem?", perguntaria anos depois Toninho num livro-poema em que descreve sua relação com o rio, A Confissão para o Tietê, lançado pela primeira vez em 1980, pela Marco Zero, e reeditado pela Circo em 1992.

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A merda onipresente do Tietê e a descrença nos homens que a despejaram também definiram o jeito de ver a vida de um garoto morador da Casa Verde, Arnaldo Angeli Filho, dois anos mais novo do que Toninho. Ele e Angeli costumavam se encontrar na banca do Manelão, que vendia gibis ao lado das barracas de legumes e verduras da feira livre da Casa Verde, algo comum na época. "Eu e o Angeli tivemos uma identificação imediata", conta. Como Angeli, Toninho gostava de desenhar e era um colecionador compulsivo de gibis. Adorava as histórias de Mandrake, Super-Homem, Batman, Flecha Ligeira, e o herói de sua vida até hoje é o Fantasma. Os dois eram da mesma origem social (Angeli era filho de funileiro, o pai de Toninho agora trabalhava como motorista de ônibus), tinham bode da burguesia e faziam parte de um grupo de amigos que tinha uma vocação natural precoce para a delinquência. Na adolescência, tornaram-se um bando de escrotinhos que volta e meia eram presos por arruaça, "quebrando telefone público e o cacete a quatro".

Não demorou para que a dupla mergulhasse na névoa púrpura vinda de Woodstock. Afinal, era 1968. Trabalhando de segunda a sexta como office-boys, nos finais de semana vestiam roupas de franja com colares e braceletes e iam para a Praça da República "ser hippie". Na República, conheceram o poeta Roberto Piva, que apresentou Toninho a Rimbaud, Fernando Pessoa, Nietzsche, Murilo Mendes, Drummond. Nos shows organizados por Serginho Groisman no Colégio Equipe, bebeu com Nelson Cavaquinho, Cartola, Adoniran Barbosa.

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Como parte do pacote completo da contracultura, vieram as drogas: álcool, maconha, Perventim aplicado na veia, cocaína, ácido, cogumelo… Toninho se lembra de cada viagem. "Tomei 57 LSDs e fiz 14 viagens de cogumelo, dos 16 aos 22 anos", relembra, com a precisão de quem nasceu às 3h30 de um dia 30.

Lendo o Pasquim, Toninho tomou contato com o humor em quadrinhos e, por tabela, descobriu que o país vivia numa ditadura. Chegou a entrar na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, mas deixou a faculdade de lado para trabalhar. Chegou a arrumar um emprego na Folha de S. Paulo, mas preferiu trabalhar nos pequenos jornais de esquerda que brigavam com o regime militar. Em 1975, começou a trabalhar no Movimento como diagramador e no Versus como editor de arte. "Eu era o único funcionário remunerado do Versus, porque precisava daquilo para viver. Todos os outros eram voluntários."

Toninho também se diferenciava da maioria dos colegas de redação por se recusar a bater continência para qualquer partido político. "Eu era um cara que tomava LSD, gostava de rock e queria derrubar o governo", lembra. Nada a ver com militância de carteirinha. "Eu estava muito mais perto do anarquismo, da coisa libertária de discutir as ideias sem acreditar nelas." E teve a chance de dar uma aula prática de anarquismo libertário numa reunião realizada no porão do Versus, quando a redação debatia se deveria alinhar à Convergência Socialista, avó do atual PSTU. Toninho era contra ("eu sabia que o jornal perderia toda a loucura que tinha e ficaria uma coisa comunistoide, dogmática") e fez questão de mostrar sua opinião arrancando toda a roupa, subindo na mesa de reuniões, soltando um "nunca mais trabalho aqui", acompanhado de um sonoro peido. "Diz a lenda que eu peidei, mas não me lembro, tinha tanta coisa na cabeça…"

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De lá, Toninho foi trabalhar na Isto É. Havia rompido com o Versus, mas continuou amigo das pessoas com quem trabalhara, inclusive de chargistas como Paulo e Chico Caruso, Luiz Gê, Alcy e, claro, Angeli, que também passara por lá. Toninho chamou Caruso para participar da sua primeira tentativa de criar uma editora, a Marco Zero, em 1980, mas a iniciativa morreu no terceiro livro. Somente quatro anos depois Toninho voltaria a se aventurar com uma editora própria.

A aventura começou do pó. Numa "noite de pura cheiração" com um amigo que era um pequeno empresário e tinha um dinheiro da família, Toninho decidiu que iriam criar uma editora para publicar em livro os quadrinhos de gente como Chico Caruso e Angeli, artistas de jornais e revistas que pouco ou nada haviam publicado entre duas capas. O amigo pulou fora quando Toninho estava a meio caminho de lançar os livros Natureza-Morta, de Caruso, e Chiclete com Banana, de Angeli. Caruso completou o dinheiro que faltava para a publicação, e a Circo Editorial lançou-se oficialmente no aniversário de Toninho, em 30 de abril de 1984.

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Imagens de arquivo, cortesia Toninho Mendes

O salto ocorreu quando o jornalista Arlindo Mungioli procurou Toninho querendo investir no mercado de revistas de banca. O resultado chegou às bancas em outubro de 1985, com o primeiro número da revista Chiclete com Banana, que vendeu 28 mil exemplares de uma tiragem de 30 mil. Após duas décadas de censura, o público recebia de pernas abertas o humor de pau duro e sem concessões da revista.

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Logo o próprio Mungioli percebeu que não pegaria bem deixar seu nome associado à Chiclete. "O Arlindo era muito ligado ao comunismo, fazia parte do sindicato, e a revista começou a criar problemas com antigos amigos e com a família", conta Toninho. Duas histórias foram a gota d'água: uma de Paulo Caruso em que um militante colocava a boca numa granada em forma de pica para explodir inimigos do sexo e uma outra em que Angeli retratava um viciado explodindo após uma sequência de carreiras ("na família dele tinha alguém com problema de droga"). Para não se afastar da revista, o jornalista propôs uma solução: "Continuo te ajudando com a revista, mas meu nome sai do expediente".

Pouco mais de um ano após seu lançamento, a Chiclete já atingia tiragens de 150 mil exemplares. Logo depois, vieram os filhotes: Circo, Geraldão, Piratas do Tietê. E sempre com os culhões necessários para zoar com todo mundo. "A gente botou numa capa do Piratas do Tietê a moça do Leite Moça com peitinho de fora. Muita gente achou que a Nestlé ia fazer um barulho, mas a empresa ficou quieta", lembra.

Apesar do sucesso de vendas, as revistas nunca atraíram anunciantes. A Circo nem chegou a ter um departamento comercial, porque não valia a pena correr atrás de empresas que simplesmente não queriam associar seus produtos ao conteúdo da editora. "A única pessoa que colocou um anúncio na revista quase perdeu o emprego", conta Toninho. Aconteceu com um amigo dele, publicitário da Thompson, que resolveu publicar um anúncio da 775 na revista. "Reclamaram com ele: 'Nesse tipo de revista não se deve anunciar'."

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O próprio Toninho participava das revistas da Circo protagonizando as fotonovelas do escroto e fanho "Pequeno Lobatinho", e criando os textos de um heterônimo "espírito de porco", o Visconde Casa Verde, que escrevia sobre temas como "minhas melhores brochadas", com a colaboração de Furio Lonza e Glauco Mattoso. Como Visconde da Casa Verde, Toninho publicou em 1994 seu segundo livro, 365 Motivos Para Odiar o Brasil. O livro acabou sendo uma das últimas publicações da Circo, que no mesmo ano fechou as portas. A aventura havia retornado ao pó.

Morta a Circo, Toninho passaria os cinco anos seguintes sem editar quadrinhos, trabalhando como artista gráfico para empresas como Companhia das Letras, Moderna, Pueri Domus. Em 2000, criou o selo Jacaranda, que edita coletâneas de antigos colaboradores da Circo, como Angeli, Larte e Glauco, em parceria com a Devir. Também produziu edições de bolso dos mesmos autores para a L&PM, onde também aproveitou para ressuscitar o seu Visconde da Casa Verde, que assina a coletânea de anedotas Piadas para Sempre, dividida em tópicos politicamente incorretos, como "bichas", "cornos", "bêbados". Também trabalhou na Gazeta Mercantil, que faliu. "A Gazeta me deve R$ 300 mil até hoje", conta.

De todo o dinheiro que o sucesso da Circo gerou, Toninho conseguiu guardar muito pouco. "Passou um oceano pela minha mão, e eu não fui capaz de guardar nem um copo de água salgada para tomar um banho espiritual", desabafa. "Não consegui me organizar economicamente." Razões não faltam. O auge da Chiclete com Banana coincidiu com o pico da sacanagem macroeconômica, da inflação obscena com troca-troca de moedas da era Sarney à metida sem vaselina na poupança empreendida por Collor. "O caos econômico daquela época é o maior responsável pela Circo não ter dado certo", diz. Mas não o único. "Sou muito bom empreendedor e um editor visionário, mas não sou um bom empresário", admite.

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Além do mais, Toninho nunca se preocupou muito com o futuro: é um filhote legítimo da contracultura, que matou a maioria dos seus ícones na juventude. "Fui muito Torquato Neto: vivi todos os meus dias como se fosse o último. Só que descobri que o meu ciclo é muito longo. Vivi mais do que esperava, sob vários pontos de vista", diz. A consequência é que até hoje Toninho precisa trabalhar como um workaholic para pagar todas as contas do dia a dia: "Trabalho uma média de 12 horas por dia ininterruptas, sem saber o que é domingo nem feriado".

A casa da Lapa onde mora e trabalha é alugada. É ali que Toninho vive com sua mulher, Silvia, 42 anos, uma filha de outro relacionamento, Luiza, de 19 anos, e a enteada Nina, de 15, além de quatro cães e "seis ou sete" gatos. Tem outras duas filhas: Jandira, de 32, e Papoula, 35. Toninho passou a trabalhar em casa há quatro anos, desde que abandonou o estúdio que mantinha nos Jardins, por conta dos problemas de saúde que enfrentou devido ao "total desregramento" em que sempre viveu, na mistura abusiva de muito trabalho, estresse, álcool e nicotina (antes de adotar os cigarros de palha, fumava em média quatro carteiras por dia).

Tomando copos da limonada que ele mesmo prepara (tem ordens médicas de evitar o álcool), Toninho conta que há anos mantém vários escritos inéditos na gaveta. Um deles, assinado pelo Visconde da Casa Verde, é o Manual do Suicida Moderno, do qual um capítulo, sobre Corte dos Pulsos, chegou a ser publicado na Chiclete, gerando revolta até entre os leitores da revista. "Acho que o mundo não está preparado para um livro tão escroto", conta Toninho. E menciona vários outros textos inéditos, inclusive "poemas espirituais" escritos por Antonio-Mendes-Ele-Mesmo. Como um dos editores mais conhecidos do país não edita a si próprio? "Esse é o meu mistério", ri.

E há outras surpresas na figura de Toninho. Como as guias de orixás nos seus pulsos e pescoço, ou a espada de Ogum que leva pendurada no pescoço. E até o chapéu que leva o tempo todo em sua cabeça, mesmo em casa. "O chapéu é para proteger meu uri", esclarece (mais tarde, em casa, minha mulher, que é espírita, explica: uri, segundo as religiões afro, é um ponto da cabeça que serve para captar energias, boas ou ruins, do mundo exterior). É possível que o artista responsável pela publicação de tanta putaria seja uma pessoa religiosa?

É, sim. O editor de Quadrinhos Sacanas reza praticamente todos os dias. "Rezo antes de sair de casa, rezo para os meus orixás antes de uma reunião importante. Rezo para minhas filhas, para meus amigos", relata. É adepto de uma religião afro chamada Culto dos Orixás, e também vai a igrejas católicas para acender velas aos antepassados e a amigos que morreram. Toninho não vê qualquer contradição entre editar Chiclete com Banana ou escrever o Manual do Suicida e, ao mesmo tempo, tomar banhos espirituais de erva. "O fato de eu ser uma pessoa irreverente ou gostar de colocar as coisas em xeque não significa que eu não tenha uma baita fé na vida. Eu sou muito 'Maria, Maria'. E o fato de eu ter uma relação muito forte com o espiritual não impede que eu tenha uma relação de irreverência com a realidade, porque eu acho o mundo cretino."

É por achar o mundo cretino e não botar fé na espécie humana que Toninho curte humor. "O humor é uma maneira de expor à sociedade o seu próprio ridículo, de quebrar o respeito que as coisas têm por elas mesmas. Por isso não existe humor politicamente correto", detona.

E por isso não há mais revistas como a Chiclete. "O mundo ficou muito mais careta 20 anos depois da Chiclete. Hoje acho tudo muito sem proposta. Ninguém quer consertar o mundo. As pessoas no máximo conseguem pensar em cuidar do seu próprio rabo."

Do lado espiritual, a trajetória de Toninho se afasta de Angeli, velho cético, e se aproxima mais de Glauco, ele também um autor de tremendas putarias impressas que tinha um forte lado espiritual. Toninho frequentou o Céu de Maria, comunidade de Daime dirigida por Glauco, e tomou o chá com ele. Para Toninho, a tragédia em que Glauco e seu filho Raoni foram assassinados por um adepto da religião é consequência do cartunista ter adotado "uma profissão de alto risco, que é a de sacerdote". "Ele era um homem tão aberto que o mundo cabia nele, e coube essa tragédia", diz.

Pergunto a Toninho, o transgressor outsider por natureza, se ainda sobrou algum espaço para a transgressão. Ele para por um momento, olha para o lado, tosse a fumaça do seu cigarro de palha, para só então responder: "O negócio é o seguinte. Não tem muito o que transgredir, porque a maior transgressão que existe é o que ocorre hoje na política brasileira. Não tem ninguém mais transgressor do que um senador que rouba milhões e não acontece nada". O transgressor outsider se viu superado pelos transgressores profissionais.