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Música

O Todd Rundgren é um génio, mas, pá, quem é o Todd Rundgren?

Um legado musical que já entrou em erupção há muito tempo.

Todd Rundgren é um vulcão: quando menos se espera, eis que o seu legado musical entra em erupção. Fazendo jus a um músico excepcionalmente completo, os últimos anos voltaram a invocar o nome de Rundgren como um herói capaz de liderar várias bandas (Nazz, Utopia), produzir dezenas de discos importantes e compor as suas próprias canções. Reparemos, por exemplo, em como os Tame Impala perceberam que Todd Rundgren era a figura certa para remisturar “Elephant” — o mais célebre tema dos australianos —, mantendo a força daquela cavalgada à Marc Bolan (T-Rex) e atribuindo-lhe uma grandeza de rock para estádios. Ao trocar de mãos, “Elephant” passou a ser uma bandeira da capacidade que Rundgren tem para adaptar uma canção às massas, sem arruinar a sua sinceridade ou transformá-la numa parolice pura.

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Talvez tenha sido também por isso que os Yo La Tengo, instituição

indie as fuck

, decidiram gravar uma versão de “I Saw the Light”, um original de Todd Rundgren, para um sete polegadas em vinil, que acompanhava as primeiras cópias numeradas do mais recente

Fade

. É certo que nunca foi necessário usar armas para que os Yo La Tengo se apoderassem das canções alheias, mas há por aqui uma sentida homenagem de uma banda altamente versátil a um criador capaz de alternar sem problemas entre baladas, rock sem espinhas e delírios psicadélicos bem mais progressivos. “I Saw the Light” foi originalmente pensado como o single-fachada para o majestoso duplo

Something / Anything

? — e, se nesse contexto é um festival de harmonias vocais por parte de Rundgren, então perspectivado pelos Yo La Tengo passa a funcionar como um daqueles doces tropicais para namorar na praia (uma das especialidades do trio de Hoboken). Uma excelente canção tem as sete vidas de um gato.

Mas Todd Rundgren nunca se deu por satisfeito com a hipótese de ser apenas reconhecido enquanto escritor de canções. Não é portanto de admirar que essa sua faceta seja constantemente contrabalançada com as suas funções de produtor altamente participante em discos de Hall & Oates, XTC, Patti Smith Group, The Tubes e Meat Loaf (produziu-lhe o decisivo e muito rentável

Bat Out of Hell

), entre tantos outros. Além disso, Todd Rundgren era o produtor interno da Bearsville Records, a

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label

do poderoso manager Albert Grossman, para a qual também gravava os seus discos. Desde cedo, as experiências com a equalização do som levaram a que Todd Rundgren se apercebesse da relação entre as combinações de instrumentos e as suas qualidades sónicas. “Intro”, uma vez mais de

Something / Anything?

, encontra Todd Rundgren a descrever todo o tipo de formas como um estúdio pode influenciar a gravação do som. Fala de “hiss”, má edição e do som da fita quando chega ao fim. A voz que se escuta, em “Intro”, é a de um minucioso freak entusiasmado com o potencial lúdico de um estúdio e da enorme mesa de mistura, tal qual os grandes mestres da Jamaica. Afinal, Todd Rundgren encontrava-se pela primeira vez totalmente à vontade num estúdio (para gravar

Something / Anything?

) e muito mais interessado em utilizar o equipamento de forma “incorrecta” do que o contrário.

A formação da identidade musical de Todd Rundgren também não foi particularmente linear. Despertado pelas guitarras dos Rolling Stones, Beatles e Yardbirds, e igualmente estimulado pelo som de Filadélfia dos Gamble & Huff, The Delfonics, The O’Jays, Todd Rundgren nunca se acanhou perante o atractivo de conjugar estruturas rock com o colorido de arranjos de sopro e carradas de piano. Foi mais ou menos dentro dessa filosofia que criou

Runt

(1970) e

Runt: The Ballad of Todd Rundgren

(1971), os dois primeiros discos, em que o piano dá geralmente o mote e tudo o resto surge no seu encalce. Na adoração pelo modelo soul/ r’n’b de Filadélfia, Rundgren estava muito próximo de uma Laura Nyro, a brilhante

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songwriter

, que idolatrava assumidamente e que chamou pelo nome na homenagem em forma de medley que é “"Baby Let's Swing"/"The Last Thing You Said"/"Don't Tie My Hands" (parte essencial de

Runt

).

Mas nem tudo eram homenagens e, para Todd Rundgren, bastou ver os Beatles a fugir de um monte de miúdas, no filme

A Hard Day’s Night

, para que percebesse que ter uma guitarra nas mãos e um êxito era a ponte para uma rica vida sexual. Muito naturalmente, essa é uma motivação bastante pertinente para que um jovem comece a aplicar-se a sério no seu ofício. A verdade é que Todd Rundgren não se deu mal nesse objectivo e esteve durante muito tempo envolvido com uma das mais cobiçadas groupies da história: Bebe Buell. Estamos a falar da mãe de Liv Tyler (que esteve durante muito tempo convencida de que Rundgren era o seu pai biológico) e de uma das modelos mais vistas com as principais figuras do rock dos anos 70 (tal como comprova

o simpático Tumblr

).

Olhando de perto para as fotografias de Bebe Buell percebe-se o porquê de Todd Rundgren ter admitido, alguns anos mais tarde, que algumas das suas canções de amor tratavam afinal de tópicos como a atracção sexual e a sensação de posse. Os primeiros versos de “The Verb “To Love”” (parte de Faithful recuperada no disco ao vivo

Back to the Bars

) trazem essa mesma ideia para a frente da canção: “Some people tell me that love is a feeling or a possession / Somehow it seems so cold.” Depois disso, sobram ainda muitos minutos para que “The Verb 'To Love'” questione o que significa realmente o amor com uns uivos pré-“Purple Rain”, o épico que Prince dedicou ao pai.

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A década de 70 ficou também marcada por uma fartazana de drogas e os vestígios dessa abundância reflectem-se nos discos. Uma das novidades associadas às gravações do segundo álbum,

Runt: The Ballad of Todd Rundgren

, acabou por ser o facto do nosso homem ter começado a fumar marijuana, quando isso era praticamente impensável até aí. Mais tarde, o estimulante Ritalin terá levado a que o processo de escrita fosse acelerado e os relatos indicam que várias das canções de

Something / Anything?

(1972) surgiram em surtos de inspiração de 20 minutos. Se há algo que pode favorecer a fluidez de um disco duplo é a sensação de que as suas canções não foram forçadas ou feitas para encher chouriço. Apesar de ser um álbum-duplo,

Something / Anything?

nem sequer assume uma forte motivação conceptual, que, como se sabe, era a justificação mais natural para muitos dos excessos da década de 70, principalmente em termos de duração. Se há um conceito que guia

Something / Anything?

esse estará provavelmente ligado a uma vontade muito pessoal (e algo narcísica) de Todd Rundgren em demonstrar a sua prosperidade como escritor de canções.

O que podia facilmente ter resultado num falhanço artístico de gigantes proporções para Rundgren (e o suficiente para lhe ceifar a carreira), tornou-se afinal num

tour de force

carregado de todo o tipo de canções capazes de comprovar a impressionante dimensão musical do seu autor. Impressionante, neste caso, não só pelos géneros que percorre (nenhum deles é predominante excepto a pop), mas também pela total falta de pudor com que o faz. Bastaria, por exemplo, avaliar de perto uma sequência tão diversa como “Couldn’t I just tell you”, “Torch Song” e “Little Red Lights” (no segundo disco) para perceber como é possível condensar em pouco mais do que dez minutos um protótipo de power-rock FM, uma linda balada ao piano e uma canção capaz de honrar tanto a memória pesada dos Black Sabbath como o tom assexuado dos Bee Gees. A forma híbrida de “Little Red Lights” merecia por si só uma descrição mais extensa, do mesmo modo que

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Something / Anything?

poderia ser discutido durante um sem número de linhas, mas perseguir essa ideia era injusto para outros discos de Todd Rundgren que não ficam atrás do duplo.

Depois de ter atingido o seu auge criativo com

Something / Anything?

e o fabuloso tesouro psicadélico

A Wizard, A True Star

(1973), Todd Rundgren estava aborrecido e entrou num período de reclusão até que surgissem novos desafios. Demonstrando toda essa postura do ermita,

Faithful

(1976) foi lançado com um reduzidíssimo investimento publicitário muito por culpa também do presidente da

Bearsville

, Paul Fiskin, acreditar que os fãs comprariam o disco pelas garantias dadas no passado. Ainda que seja essa a história habitualmente vendida, o mais certo é que a Bearsville tenha entendido (e bem) que as muitas versões de clássicos, incluídas no lado um de

Faithful

, representariam publicidade suficiente. Verdade seja dita: um disco com versões bastante reconhecíveis dos Beach Boys, Beatles e Dylan, não necessita de muito mais para vender como pão quente.

É também por esse motivo que a primeira metade de

Faithful

nos deixa num constante dilema: se estas apropriações soam tão semelhantes, por que não ouvir então os originais? A intenção de Todd Rundgren passaria muito provavelmente por mostrar como alguns daqueles nomes o tinham “iluminado” com a inspiração necessária para chegar às suas canções incluídas na segunda parte do disco. Essas que formam um conjunto um pouco desconexo e capaz de provocar alguma fadiga (ainda por cima depois de todas as versões), embora altamente recompensador por dois momentos — “Black and White” e “Boogies (Hamburger Hell)” — em que Todd Rundgren rocka com a convicção dos grandes.

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Ultrapassada a reclusão e depois de um

Healing

(1981) mais confuso e esotérico, Todd Rundgren nem sequer sofreu muito com a adaptação à década de 80 e

The Ever Popular Tortured Artist Effect

(1982) parece, apesar do título, bastante confortável na pele de disco de canções

upbeat

imbuídas de um espírito tão próximo da new-wave como das super-baladas rock da época. Para alguém que geralmente surpreendia pela abundância, um álbum composto por apenas nove temas poderia parecer um esforço limitado, mas

Tortured Artist

vale muito mais pela qualidade do que pela quantidade. Pode igualmente dizer-se que cada uma das principais virtudes de

Tortured Artist

equivale a uma lição oferecida por Todd Rundgren: “Don’t Hurt Yourself” é a prova de como uma balada pode ser ultra-emocional sem ficar com as botas enterradas na pachorrice de tantas outras; “Bang the Drum All Day”, muito à custa de um teclado-carrossel, consegue por sua vez arrumar o ska bem-disposto dos Specials e a new-wave numa só maravilha de três minutos e meio.

Quem meter as mãos no vinil de sete polegadas, que inclui “Bang the Drum All Day” numa face e “Drive” na outra, fica com uma faca de dois gumes para dar início (ou balanço) a qualquer festa e terminá-la depois com uma balada rock que qualquer pessoa gosta de dançar quando está bêbada. Mas

The Ever Popular Tortured Artist

é muito mais do que as duas faixas que oferece a esse single e destaca-se como outro dos discos de Todd Rundgren a ter por perto.

Todos os discos mencionados e outros tantos encontram-se reeditados na Edsel com faixas extra e textos escritos por Paul Myer (especialista em tudo o que envolve Todd Rundgren).