religião

Por dentro do 'boom' global de exorcismo

Tanta gente está precisando ter seus demônios exorcizados que o Vaticano teve que fazer uma “convenção de treinamento de exorcistas”.
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Still de 'A Filha do Mal'. Foto: Photo 12 / Alamy Stock Photo.

Kennedy Ife estava tendo problemas para dormir. No dia 13 de agosto de 2016, o homem de 26 anos e sua família estavam num restaurante chinês não muito longe de casa em Hadley Wood, um subúrbio afluente do norte de Londres. Nos dias seguintes, ele começou a reclamar de dor de garganta, além de uma insônia persistente. Ele falou que precisava “dar um tempo” da igreja deles – o que preocupou seus pais profundamente religiosos, que frequentavam a Jesus Sanctuary Ministries, uma igreja Pentecostal carismática no sudeste de Londres.

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O comportamento de Kennedy foi se tornando cada vez mais perturbador nos dias que se seguiram. Em 19 de agosto, uma sexta-feira, ele ameaçou cortar o próprio pênis, depois gritou que estupraria uma menina. Isso provocou uma briga com seu pai, que terminou com Kennedy tendo que ser amarrado com braçadeiras. Mais tarde no mesmo dia, quando os ânimos esfriaram, ele teve permissão de sair para uma caminhada acompanhado de dois dos irmãos, Roy e Colin. Mas Kennedy logo ficou agitado, tirando a camiseta e tentando socar Colin, depois tentando dar uma cabeçada em Roy. Os irmãos ficaram chocados; essa era a primeira vez que eles viam um comportamento assim do irmão.

Voltando para casa, Kennedy teve que ser contido novamente. Amarrado na cama com braçadeiras, cordas e algemas, seus irmãos se revesaram ficando de guarda enquanto ele reclamava de uma serpente que estaria dentro dele (nesse ponto, eles dizem que Kennedy começou a gritar “marca da Besta”).

Dois pastores da Jesus Sanctuary Ministries chegaram para orar por Kennedy e tentar exorcizar o espírito maligno que acreditavam estar dentro dele. No dia 22 de agosto, uma segunda-feira, outro irmão, Harry, ligou para a emergência, dizendo que Kennedy estava com dificuldades para respirar. Quando os paramédicos chegaram, Kennedy já estava morto. Os policiais que chegaram logo depois encontraram os Ifes tentando uma ressurreição. “Kennedy, ordeno que você se levante em nome de Jesus”, foram as palavras que eles ouviram de Colin Ife ao lado do corpo do irmão.

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Mais tarde, quando estava sob julgamento, Roy Ife disse ao júri que não sabia que Kennedy estava sofrendo de um “episódio de saúde mental”. No interrogatório, ele disse que acreditava que seu irmão estava com dor de garganta. Mas, como o promotor descrente apontou, você normalmente não pediria a Jesus para limpar um esôfago dolorido. A corte ouviu que esse foi um caso de exorcismo que deu errado, e que os visitantes da igreja dos Ifes na verdade estavam tentando expurgar o espírito maligno do corpo de Kennedy. No dia 14 de março de 2019, sete membros da família Ife foram condenados por homicídio.

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Foto: Adam Korzeniewski / Alamy Stock Photo

A crença na existência de demônios é tão antiga quanto a própria religião, mas no final do ano passado virou notícia que os exorcismos estavam de volta com força total. Em 2017, o rito católico de exorcismo foi traduzido para o inglês pela primeira vez desde que foi padronizado no começo do século 17, e em maio deste ano, o Vaticano realizou uma “convenção de treinamento de exorcistas” em Roma, depois de um salto nos “relatório de possessão demoníaca pelo mundo”.

Observar o que causou esse “pico” gera respostas complexas. O que fica evidente é que a questão não é só preocupação da Igreja Católica, como um relatório de 2017 da think-tank focada em fé Theos deixa claro. O artigo “Cristianismo e Saúde Mental” aponta que o Pentecostalismo – o movimento de renovação Protestante com ênfase em conexões pessoais com Deus – “que é comandado principalmente por comunidades e igrejas de imigrantes, é muito aberto sobre seus cultos de exorcismo”.

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A ascensão do Pentecostalismo no Reino Unido não é uma ocorrência repentina, isso vem crescendo principalmente nas margens, em comunidades de classe trabalhadora de imigrantes. Em um relatório de 2006, o Pentecostalismo estava listado como o grupo cristão que crescia mais rápido no país, com cerca de 1 milhão de crentes, enquanto alguns acreditam que o número é muito maior. Nos EUA, esse número é de 20 milhões, com mais de 10% de todos os cristãos no mundo se identificando como pentecostais.

Para milhões de devotos – pentecostais, além de muitos outros – o mal não é uma metáfora, mas uma presença física ativa que deve ser combatida de acordo. Como uma matéria recente do The Atlantic apontou, quase metade dos americanos acreditam que possessões demoníacas são reais, com mais de 70% acreditando no diabo. No Reino Unido, esses números são bem menores, com mesmo pessoas que se identificam como cristãs estatisticamente mais inclinadas a acreditar em alienígenas que em Lúcifer.

O Dr. Andrew Chesnut é professor de Estudos Religiosos da Virginia Commonwealth University e especialista na cultura de morte católica e religiões latino-americanas. Ele rejeita meu uso da palavra “pico” para descrever a ascensão atual dos exorcismos, preferindo chamar isso de um “boom”.

“Tanto com exorcismos católicos quanto pentecostais, esse é o caso, sem dúvida”, ele diz numa conversa por Skype. “[Essa ascensão] se deve principalmente pela influência pentecostal, já que muito mais exorcismos são realizados diariamente por todo o globo por pastores sem treinamento especial, diferente da Igreja Católica, onde você precisa de autorização do seu bispo. [Esse é o caso] principalmente nos países do sul global, de maneira mais importante na África e América Latina.”

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O que antes era uma prática confinada às sombras se tornou um ponto central em algum momento dos anos 1970, principalmente devido à influência do movimento neopentecostal, com raízes na América Latina. “[Exorcismo] ainda é muito popular nessas igrejas, como na Universal do Reino de Deus do Brasil, onde os cultos de sexta à noite são reservados para exorcismo – mesmo que eles não chamem assim”, diz Chesnut. “Eles chamam de 'libertação'.”

Ele deixa claro que qualquer discussão sobre exorcismo precisa fazer um conjunto importante de distinções. Exorcismos católicos têm séculos de tradição e seguem uma série de regulações severas. Apesar de rituais informais acontecerem, eles são raros e geralmente acontecem a portas fechadas. Em teoria, só um padre ordenado ou bispo pode realizá-los, e só com permissão expressa.

Deixando as diferenças de lado, católicos e pentecostais compartilham exorcismo como, se não um dogma fundamental, pelo menos um dogma significativo. Há o gosto compartilhado pelo espetáculo e ritual nas duas tradições, mesmo quando sua substância difere muito. Há uma explicação para por que o “boom” do exorcismo continua amplamente confinado às duas cepas da religião, apesar de haver relatos recentes detalhando um aumento nos exorcismos islâmicos no Reino Unido. A ascensão dos exorcismos católicos pode até ser vista como uma resposta à ameaça do Pentecostalismo ao “mercado” no Ocidente e no “sul global”, onde o Catolicismo está num declínio catastrófico desde os anos 70.

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A Dra. Kate Kingsburi é parceira de pesquisa do Dr. Chesnut. Na Universidade de Alberta, ela é uma especialista no boom global de exorcismo, e me explica como as tradições pentecostais se diferenciam da tradição do clero católico.

“Os rituais muitas vezes são improvisados”, ela escreveu por e-mail. “Qualquer pastor pode realizar exorcismos, e mesmo membros leigos às vezes pode escolher realizá-los. Na falta de um código padrão rigoroso, exorcismos podem tomar uma variedade de formas e são geralmente muito mais dramáticos que na tradição católica, muitas vezes assumindo uma forma teatral para atrair o público.”

Esses exorcismos geralmente são casos públicos espontâneos com a emoção correndo solta – e têm gerado muitas polêmicas conhecidas. Kate menciona o caso recente do pastor pentecostal sul-africano Alph Lukau, que beijou uma menina durante um exorcismo: “Supostamente foi em nome de Jesus e para expurgar um demônio na boca dela. Incidentes assim podem causar tensão quando o clero católico fica sabendo, já que eles podem criticar tais práticas por protocolo processual impróprio”.

O Reino Unido testemunhou vários escândalos do tipo nos últimos 20 anos. Na virada do milênio, o assassinato de Victoria Adjo Climbié em Londres rendeu manchetes por todo o país e repulsa generalizada. Os guardiões dela acreditavam – supostamente por conselho de seu pastor de um ramo da Igreja Universal do Reino de Deus – que a menina de oito anos estava possuída por forças satânicas. Os detalhes horrendos não são importantes de recontar, mas o crime provocou mudanças radicais nas leis de proteção a crianças no Reino Unido.

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Em 2018, o Guardian publicou uma matéria com relatos de três pessoas que diziam ter sido obrigadas a passar por exorcismos, uma delas afirmando que “foi como ser estuprada”. Na matéria, “Sue” de 67 anos, dizia que passou por um ritual nas mãos de um médico num hospital de Londres. Outro homem de meia idade, “Chris”, descreveu ser fisicamente contido na juventude num grupo comunitário de uma igreja com ligações pentecostais, e sujeitado a um ritual de exorcismo para sua homossexualidade “demoníaca”.

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Um garoto colombiano chora durante um exorcismo em Bogotá. Foto: DPA Picture Alliance / Alamy Stock Photo.

Exorcismo é um conceito difícil para os não-religiosos. Para muitos, a palavra é simplesmente sinônimo de filmes de terror ou exploração de vulneráveis. Mas seria um desserviço pintar todos os usos de exorcismo com as mesmas cores.

A jornalista americana Barbie Latza Nadeua passou 20 anos na Itália, cobrindo desde o caso Amanda Knox, a crise de refugiados, até a atividade da máfia em Nápoles, e esteve na convenção recente de exorcismo em Roma. O livro dela de 2018 Roadmap To Hell é um trabalho de reportagem sensível e perspicaz, contando uma história de escravidão moderna, e um submundo dominado pela Camorra e gangues de drogas nigerianas recentemente transplantadas.

Na última década, ela escreveu, milhares de mulheres têm sido traficadas para escravidão sexual, principalmente da Nigéria, acreditando que estão viajando para a Europa para trabalhos em salões de beleza e na indústria da hospitalidade. Quando chegam a Itália, fica claro que a verdade é muito mais sinistra. Sob as amarras de dívidas arbitrárias da viagem (muitas vezes dezenas de milhares de euros), elas são mandadas para os perigos das ruas. Muitas vezes, uma maldição de magia negra é jogada sobre as mulheres na Nigéria, antes delas embarcarem para a Europa. A crença em JuJu é forte, e estar sob uma maldição pode significar infortúnio para entes queridos.

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Para aqueles incumbidos de ajudar essas mulheres a escapar da escravidão, isso apresenta um problema: um mal espiritual exige uma solução espiritual, como membros locais da Igreja Católica descobriram. Diante de um estado muitas vezes indiferente, que deixa essas mulheres num terrível limbo, o exorcismo se tornou um meio de prepará-las para sair dessas amarras. Isso é algo menos direto para mulheres não-cristãs, mas Nadeau relata que exorcistas napolitanos tentam seguir rituais de JuJu segundo sua lei, para convencer as mulheres de que estão revertendo a maldição.

“Se funciona para libertá-las, qual o problema?”, pergunta um cardeal inglês com quem Nadeau falou depois de testemunhar o exorcismo de uma jovem vulnerável chamada “May”.

O calor e drama do sul da Itália parecem muito distantes na manhã dublada de domingo em que entro nas ruas emaranhadas de Old Kent Road, no sudeste de Londres. Cerca de dez minutos a pé da rodovia principal, chego na Jesus Sanctuary Ministries, a mesma igreja frequentada pela família de Kennedy Ife – um prédio de tijolos comum atrás de um punhado de instalações industriais.

Tentei marcar uma entrevista com o pastor-chefe da igreja, Uzor Ndekwu, mas foi difícil realmente encontrá-lo. Entendo a hesitação dele em ser questionado sobre o assunto – o que poderia trazer publicidade negativa e suspeitas para sua igreja.

O Pastor Ndekwu não é o único relutante em falar sobre o tópico. Durante minha pesquisa, descobri que as pessoas podem ficar constrangidas em falar sobre seu envolvimento pessoal com o paranormal, particularmente em se tratando de exorcismos. É uma experiência íntima e muitas vezes assustadora, e frequentemente domínio dos vulneráveis – pessoas sofrendo de transtornos mentais graves, ou trabalhando por períodos de trauma profundo.

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Esse é um tópico pouco explorado na academia, apesar de um estudo de 2012 sobre “possessão espiritual” entre ex-soldados-mirins no norte de Uganda ter feito a ligação formal entre trauma e sintomas dissociativos, muitas vezes aparentes com supostas possessões demoníacas. Talvez sem surpresa, esse não é um tópico de discussão pública para porta-vozes católicos ou pentecostais.

Sem poder entrevistar um exorcista pessoalmente, conheci Gert Brouwer num grupo de assuntos paranormais do Facebook que se descreve como uma “Associação para Exorcismo e Demonologia”. Depois de semanas trocando mensagens, ele concordou em falar.

Gert nasceu e cresceu na Holanda, e ainda mora na cidadezinha de Breda, no sul do país, onde ele dedica sua vida profissional ao paranormal. A posição dele é incomum, ele diz, como praticante e recipiente de exorcismo. Desde a infância, sempre houve um senso de algo além do alcance das mãos; algo sutil e quase inexplicável. Então, aos 21 anos, ele teve sua primeira “assombração violenta”, quando encontrou um demônio em seu apartamento. A experiência o deixou abalado, mas ele também queria trabalhar para desvendá-la de um jeito que a terminologia secular não podia. Anos de estudo levaram Gert ao ponto em que ele se sente confortável descrevendo sua habilidade de “se comunicar com os desencarnados”.

Gert é cauteloso sobre realizar exorcismos, “já que 99% dos casos não são paranormais, só uma pequena porção deles são demônios reais”, e ele considera o cuidado posterior da pessoa tão importante quanto o ritual em si. Ele não dá muitos detalhes e destaca a necessidade de experiência e especialização no que – afinal de contas – é um tipo de profissão, apesar de dizer que é um autodidata.

Qual a medida dele para determinar “puro mal”, ou o que exatamente é o cuidado posterior, são questões não respondidas, e é impossível não sentir um vago desconforto – mesmo sendo difícil duvidar da sinceridade de suas convicções.

No meio de uma quarta-feira monótona, vou até a Igreja St. Patrick no Soho. A pequena congregação se espalha por uma construção estreita do século 19; uma mistura de pessoas passando na hora do almoço e turistas ajoelhados. É difícil entender as palavras do padre do fundo do salão, e sinto um constrangimento meio familiar; ser observado por crianças curiosas, ou como estar invadindo o silêncio das outras pessoas.

É difícil enquadrar a sonolência ali com pensamentos de demônios e seres humanos possuídos. Me virando para ir embora, acendo algumas velhas por hábito e volto para a tarde cinzenta.

@ffranciscodgf

Matéria originalmente publicada pela VICE Reino Unido.

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