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Drogas

O Conde Lima

As memórias do Maçana.

Há dois anos que o procurava. Ouvi a sua história pela primeira vez através de um amigo — que se mudou para o Interior Norte de Portugal —, e sempre me pareceu um relato evasivo, quase a roçar a lenda, fantasiado demais para ser verdade. Aos 18 anos, o homem a quem chamam de Maçana atravessou Espanha a pé, tendo por meta a fronteira francesa, esquivando-se assim de estourar o seu corpo em Angola. Foi abraçado pelo mundo boémio de artistas e mafiosos parisienses e testemunhou alturas marcantes da história dos anos 60 e 70. Voltou para se dedicar à vida de sapateiro e a um tipo de agricultura que lhe valeu uma ida a tribunal. Fui até uma vila perdida em Trás-os-Montes ouvir as suas memórias. VICE: Demorei algum tempo para te encontrar. És um homem ocupado.
Maçana: Não sou ocupado. Quer dizer, aos sábados costumo ir a Salamanca, mas também são só três ou quatro horas. E ontem, depois de vir de Espanha, um amigo meu, que tem uma garagem, lá me disse para ir com ele buscar umas peças. Porque é que te chamam Maçana? Significa maçã em mirandês.
É. Já o meu avô era Maçana, o meu pai depois dele e eu fiquei também. É nome de família?
Não, é alcunha. Não sei bem de onde é que vem. O meu avô também tinha uma, mas felizmente não a herdei.
O meu avô tinha uma cabecita que parecia uma maçã. Acho que foi por isso que lhe puseram o nome de Maçana. Que idade tens?
66 anos. Estás com um óptimo aspecto.
E é porque me deu uma trombose aqui há uns oito anos, senão estava aí como um gajo de 20. Mas um gajo de 20 anos não tem a preparação que eu tinha, acredita. Eu, com 50, fazia parte da equipa de futebol de Sendim. E jogava bastante bem! Moras sozinho?
Sim. Mais vale só do que mal acompanhado. Tenho o meu cão, o Coimbra, que não me larga. Nasceste em Trás-os-Montes?
Sim, nasci aqui em Sendim. Aos 18 anos fui embora. Fugi para não ter de ir para Angola. Foi na altura em que a guerra rebentou, nos anos 60. Agarrei e fui a assalto, andei 18 dias por esses montes a pé, até atravessar a fronteira francesa. Eu e muitos outros. Fogo.
Só me apercebi que tínhamos chegado a França porque falavam francês e eu já não entendia nada do que eles diziam. Fomos para uma quinta grande, tinha vacas e tudo. Levaram-nos para uma pocilga enorme.  E depois o que fizeram?
Éramos 120 pessoas. Chegámos lá e deitámo-nos com os porcos. Mais tarde apareceu um camião com passadores, e aí é que me apercebi de que era tudo organizado. Já lá estavam à nossa espera, e esse camião, em vez de carregar porcos, carregava portugueses para Paris. Quando lá chegámos, tínhamos táxis à nossa espera. Eu levava a morada de um cunhado que lá tinha. Dei a direcção ao taxista, paguei-lhe para ver se ele me deixava no sítio certo. E pronto, depois dali comecei a trabalhar. A trabalhar em quê?
Como calceteiro. Pelas minhas contas viveste o Maio de 68. Aquela altura deve ter sido incrível: os estudantes todos nas ruas, as manifestações, os confrontos com a polícia.
O buraco que tenho nesta orelha foi na Sorbonne que mo fizeram, na faculdade. Naquela altura, Paris era ocupada por estudantes e eu tinha muitos amigos na universidade. Andava com eles mas nem sabia o que se passava. Eu queria era confusão. Mas foste um activista? Participaste nas batalhas contra a polícia no Quartier Latin, quando os estudantes atiravam cocktails molotov e queimavam carros?
O Maio de 68 era toda a gente para a rua. Era estudantes, trabalhadores, tudo. Aquilo paralisou tudo. Os carros já nem andavam pelas estradas, só a polícia de choque, mais nada. Eu lá sabia o que era uma manifestação. Não sabia o que era política nem nada. Agora já percebo um bocadito, mas nessa época queria era ir para o barulho. Mais nada. Foi aí que começaste a curtir a noite, a vida boémia, que conheceste artistas, músicos…
Durante 15 anos não me lembro de ter dormido uma única noite. Dormia de dia. À tarde, levantava-me e ia ao cinema e tal. Então, deixaste de ser calceteiro. O que é que aconteceu?
Oh pá, deixei. Comecei a conhecer gente, raparigas, e aventurei-me. Comecei a frequentar as discotecas e conheci gente da noite, até que entrei lá no sistema dos artistas franceses. Acho que era por causa da minha cara. Não sei bem porquê, mas engraçavam comigo. Chamavam-me o Conde. Era o Conde Lima. Como é que arranjavas dinheiro para manter essa vida?
Oh pá, isso há muitas maneiras de caçar pulgas. Imagino. Tinhas casa ou dormias em casa doutros?
Não, tinha a minha casa. Conhecia várias pessoas. Conhecia colombianos que tinham drogas e desenrascava-me a fazer-lhes de “correio azul”. Correio azul? Assumo que isso seja algo ilícito. E as mulheres de Paris?
Ah, as mulheres… Se me levarem, levam-me, se não me levarem… Mas foste levado?
Claro. Namorei onze anos com uma argelina de origem judaica, a Nadia, e tivemos um filho. E o teu filho, onde está?
Olha, está melhor do que eu. É engenheiro electrónico não sei de quê e vive em França. Já me veio visitar algumas vezes aqui a Sendim. Contaram-me que frequentavas o mesmo bar que o Jim Morrison.
Todas as noites o via. O gajo estava sempre, sempre borracho. Nunca falei com ele, via-o lá com as suas barbas e toda a gente me dizia que ele era um mau carácter. Bebia mais do que uma garrafa de whisky ou vodka por noite. Qual era o bar?
Era o Rock 'n' Roll Circus. Há muitas histórias à volta da morte dele, algumas dizem que ele morreu em casa, na banheira. Ele morreu mesmo de overdose no bar?
Oh pá, deu-lhe qualquer coisa lá dentro e os gajos do bar, para não terem chatices, foram pô-lo a casa. Entendes? E foi lá que ele acabou por morrer. Mas viste-o mesmo na noite em que morreu?
Sim, vi-o passar, com quatro gajos a levarem-no. Disseram-me, “olha, vai ali o Inglês”. Chamavam-no o Inglês, não sei porquê, nunca falei com ele. Falando agora de vida em vez de morte. Uma vez salvaste a vida do Johnny Hallyday, não foi?
Pois. A mulher dele teve um caso e ele tentou suicidar-se. Quem era a mulher dele?
Era a Sylvie Vartan. O que é que aconteceu ao certo?
Isso foi em 68 ou 69. Quem fazia as letras das canções do Johnny era o Carlos — um homem forte, cantor também. O Johnny ao pé dele não era nada. Aposto que foi com o Carlos que ela o traiu. Pelo menos era o que se dizia. E o Johnny cortou os pulsos por causa disso — se não tivesse sido eu a chegar a casa dele e a chamar os bombeiros, ele tinha morrido. Morava a meia hora de minha casa e eu ia lá muitas vezes. Como era o Johnny Hallyday?
Era um gajo porreiro. O pai dele é que vivia como um vagabundo. O Johnny até lhe dava dinheiro, mas ele gostava de ser assim. Atraías artistas, mas também eras atraído por eles. Como o Georges Brassin, que te dedicou uma música porque lhe roubaste a casa.
Eu só fiquei a saber disso depois. Ele nunca soube que fui eu quem lhe assaltou a casa. Naquela altura, em Paris, as casas tinham portas de duas folhas. Eu abria aquelas folhas sem chaves, sem nada. Tocava à campainha e esperava. Se viessem à porta, perguntava pelo nome de uma criada portuguesa. Se não viesse ninguém, rebuscava a casa. Quando saía, fechava a porta e ninguém dava conta. Depois do roubo em que levei um quadro, o Georges Brassin dedicou uma canção ao ladrão que o roubou e perdoou-o na canção. Ele diz mesmo na canção que me perdoa. Mas como é que sabes que era a casa dele? Roubaste-lhe os instrumentos?
Vi as coisas dele, mas não tinha lá instrumentos. Só lhe roubei um quadro e jóias, mais nada. Já nem me lembro que quadro era. Isto foi nos anos 70. Por que razão achas que ele te perdoou?
Perdoou quem lhe roubou a casa e não lhe estragou nada. Regressaste a Sendim um homem diferente, urbano, de origem rural mas habituado a um estilo de vida cosmopolita e boémio. Como foi a readaptação?
Bem, a adaptação para mim foi fácil porque eu era daqui. Mas quando cá cheguei ninguém me reconheceu, nem o meu pai nem a minha mãe. Estive alojado na Gabriela, uma hospedaria de uns amigos meus, durante quinze dias. Andava pelos cafés e ouvia a conversa de uns e outros. Ninguém deu conta de quem eu era. E depois fui obrigado a dizer, “olha, eu sou o…” Porque é que voltaste?
Estava farto. Comecei a injectar-me e depois percebi que aquilo já não era vida. Pá, tinha um bocado de dinheiro e pensei, “ah, foge, vai-te embora”. E foi o que fiz, não disse nada a ninguém. Nunca mais. Dedicaste-te a quê?
Aos sapatos. Já tinha trabalhado como sapateiro antes de ir para Paris. Como já não ia à escola, o meu pai o que queria era manter-me ocupado — e Sendim era uma terra de sapateiros, tinha mais de cem. Eu faço umas botas ou uns sapatos tão bem feitos que nem se nota que foram feitos à mão. Foi assim que aprendi. E, depois de vir de França, comecei a fazer outra vez. Fiz umas botas para mim e depois comecei a receber pedidos. Ainda aceitas pedidos?
Recentemente, não. Já há uns anos que não faço regularmente. Só mesmo a quem eu vejo que merece. Antes de me dar a trombose, levava 40 contos por umas botas. Não era brincadeira. Uns sapatos custavam 30 contos, e isto há dez anos ou mais. Era manual, tudo manual. Tiveste uma sapataria?
Sim, tinha uma sapataria. Chamava-se Maçana. E o que é que fazes hoje em dia?
Trabalho na horta e no jardim do lar de Sendim. Trato de tudo. É o meu passatempo. Para mim, é uma terapia, acredita. Soube que plantavas cannabis no teu quintal.
Sim, tinha aí umas cem plantas. A guarda não me dizia nada porque sabia que era para eu fumar, mas um dia apareceu um guarda novo por aqui, e quando viu a plantação não esteve com meias medidas, chamou a Guarda de Bragança a minha casa. Levaram-me noventa e tal plantas e quatro quilos de cabeços que tinha em casa. Disseram-me que ia apanhar uma cana do caraças. Quando fui a julgamento, disse à juíza que só usava aquilo para consumo próprio, que já plantava há 15 anos e nunca tinha vendido a ninguém e ela mandou-me embora. Uns vizinhos meus até foram ao tribunal defender-me. Veio aí a televisão entrevistá-los e tudo. Tive de fazer dois meses de trabalho comunitário. Fiz umas calçadas, umas coisas em pedra e trabalhei no lar de terceira idade. Ainda hoje vou lá comer, desde que me deu o AVC, para não andar a comer por aí, percebes? Percebo, claro. Mas isso não era muita erva para uma pessoa fumar sozinha?
Era pois. Tanto que até ma roubavam. Uma vez, as mulheres da aldeia andavam à procura de ornamentação para o andor e não sabiam o que aquilo era, por isso levaram-me algumas plantas. As plantas no mês de Agosto ficam com um verde incrível. Eu sabia que as andavam a arrancar porque via aquilo cortado, mas não sabia quem era. Até que, num dia de procissão, fui até à praça e vejo lá aquela merda toda escarrapachada!  [Risos] Ninguém sabia o que aquilo era?
Não, elas pelo menos não [risos]. Pareces um homem feliz.
A mim não me falta nada. Tenho uma reforma mais ou menos e tenho amigos, é o que importa. Olha lá, esses óculos são brutais. São Ray-Ban originais?
Claro! São de carapaça de tartaruga, foi o Johnny que mos deu.