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Música

Cass McCombs e o Cosmos

Encontrámo-nos com o músico norte-americano e falámos de Bush, Obama, Trump e Malcolm X, bem como da importância das substâncias psicadélicas para compreendermos o nosso lugar no Universo.
Cass McCombs no Primavera Sound Porto 2016. Foto por Anaïs Afonso.

Este artigo foi originalmente publicado na nossa plataforma Noisey.

Cass McCombs desce pelas escadas de um restaurante no East Village, em Nova Iorque, com uns óculos cor-de-rosa gigantescos e voz suave diz "Olá". Os óculos parecem o tipo de coisa que decidirias usar ainda meio a tripar com cogumelos depois de te aperceberes que precisas de sair de casa e andar um bocado. Estamos aqui para falar sobre o seu novo disco, Mangy Love.

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Possivelmente o melhor cantor-compositor da sua geração, neste nono disco deixa para trás a toada meio anos 70 e adiciona à sua sonoridade umas guitarras que soam tão hipnóticas como metronómicas; músicas com balanço ("Run Sister Run") e outras que transportam um quê de melancolia nas suas discretas explorações da condição humana. Atente-se como encerra o disco com "I'm a Shoe", numa atmosfera que transpira Leonard Cohen por todos os poros.

Ainda assim, passado tanto tempo e com tantas canções observadoras e confessionais, o homem de 39 anos continua misterioso e atreito à partilha de informações pessoais. McCombs é um nómada. Continuo a pensar onde é que arranjou aqueles óculos cor-de-rosa - ou de quem - mas nem lhe pergunto. Apesar de o conhecer há oito anos, há uma certa força na sua personalidade calma que exclama: deixa que os mistérios sejam mistérios, por favor.

Encontramo-nos em St Mark's Place, onde a rapaziada da Universidade de Nova Iorque se mistura com skaters, punks, crusties e o pessoal da J-Crew. St Mark's, por acaso, é um daqueles sítios onde é possível comprar todas as drogas sintéticas semi-legais disponíveis no mercado, incluindo opiáceos falsos, cogumelos de mentira e erva sintética.

Noisey: Já experimentaste aquela marijuana sintética?
Cass McCombs: Ouvi falar de uma tal K2 ou lá o que é. Que merda é essa?

Normalmente é uma cena fabricada na China, um pó branco, ou algo assim.
O que é que isso tem a ver com erva? Não percebo.

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O efeito é semelhante e há quem se rebente todo depois de meter doses altíssimas enuma coisa que deveria ser apenas um charro. Imagina que fumas um e te bate mil vezes mais do que era suposto. É por isso que há aí uma malta a cair pelas ruas.
E a vomitar para tudo o que é lado, vi umas fotos do Bed-Stuy há dias. Um corpo, uma poça de vómito, outro corpo, outra poça de vómito.

Isso já não acontece na Califórnia. Mas a proibição da erva continua aqui em Nova Iorque…
Pois, temos agora essa renascença da erva em que é tudo orgânico. Eles falam com as plantas e metem música a tocar, como se fossem pessoas, como se as plantas tivessem alma e elas entrassem na sua consciência e tal. Não entendo essa cena sintética, mas imagino que uma coisa não tenha nada a ver com a outra.

Ainda fumas erva?
Claro.

Onde é que vives agora?
Na maior parte do tempo no Norte da Califórnia e aqui.

É bem bonito o Norte da Califórnia, quando se passa pelas pontes. Talvez curtisse morrer por lá, porque parece que estamos no céu quando se vê a cidade cercada por nuvens e tal.
É uma zona bem fixe, mas eu não consigo ficar num sítio durante muito tempo. Gosto da cidade e do campo. Como toda a gente, não é?

Há uma música no disco novo chamada "Rancid Girl", que tem uma das tuas letras mais engraçadas: "You've got a diet of Mike and Ikes and fresh mongoose / Your favorite movie: Every Which Way But Loose". É sobre alguém que odeias?
É tipo um riff dos ZZ Top, uma canção de amor de rock'n'roll, uma rapariga rock'n'nroll, todos conhecemos miúdas cool do rock. Sei que quis ser duro, mas é só mesmo amor.

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É sobre uma miúda que curte Rancid?
Um bocadinho. Adeline, Berkeley, punk rock, rock'n'roll, adolescentes, Telegraph Avenue.

Do que é que gostas nesses lugares e coisas?
Quero dizer que todos fomos adolescentes e quando envelhecemos tentamos voltar a essa época dos 14 aos 17, porque é quando tens sexo pela primeira vez, metes ácidos, vais a Nova Iorque pela primeira vez, seja lá o que for que acontece pela primeira vez. Ainda nem és uma pessoa a sério e estão todas essas coisas traumáticas a acontecer-te e ainda não tens forma de as aproveitares convenientemente.

A primeira canção, "Bum, Bum, Bum", fala de "sangue nas ruas" e a comunicação social está, hoje em dia, carregada dessas coisas horríveis. A música fala sobre isso?
Sim, claro.

Acompanhas as notícias? O que é que pensas de toda esta brutalidade policial, Donald Trump, Médio Oriente, sangue derramado e gente a tentar desunir os povos através do medo e da violência?
Todos acompanhamos as notícias e eu acabo por meter essas coisas nas músicas, mas não sou um organizador muito articulado. Só componho e é isso. Acho que tudo tem piorado, mesmo as divisões na música, géneros. Não consigo pensar numa época em que as pessoas se comprometessem tanto com o que nos afasta na música. A nível geral as coisas têm piorado, mas não acho que antigamente fosse melhor. Temos raízes violentas, por isso queria escrever sobre isso. Como é que podemos pensar num futuro tranquilo e bonito quando viemos de lugares tão violentos?

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Não creio que Trump vá vencer. Acha-lo engraçado? Entretem-te?
Não, ele está cansado e a cena dele já é muito batida.

O que pensarias se alguém o matasse?
O pacifista dentro de mim não quer apoiar uma merda dessas, mas o revolucionário em mim acredita no que for preciso. Por isso, não sei.

Era tipo matar Hitler antes da merda toda, pouparia muita dor-de-cabeça.
Não sei. Matar é errado?

Há muita gente que mata outras pessoas todos os dias e ninguém liga. Se há um propósito, acho que é justificado e por isso é que o fazem.
O pacifismo é [encarado como] uma coisa antiga, antiquada, e é por isso que ficamos presos nestas guerras. Votei em Obama porque ele disse que ia acabar com elas, acreditei nele, acreditei que ele estava a falar a sério por ter sido tão duro com Bush. Era tipo "vamos acabar com as guerras para sempre!".

O que achas dele agora?
As suas práticas são brutais e imperialistas. Guerras com drones e tudo, é uma loucura, mas ainda gosto do gajo. Quando ele fala, parece que está a acontecer uma conversa. É um truque bizarro. Mas não deixa de ser uma pessoa verdadeira.

Viste George W. Bush a dançar no funeral do polícia de Dallas que foi morto?
A dançar?

Estavam a tocar a "Glory, Glory, Hallelujah" e o gajo lá a dançar, de mãos dadas com Michelle Obama e com a sua esposa, meio vermelho, com cara de bêbado.
E mais ninguém estava a dançar?

Não. Acho que essa sempre foi a onda dele, dançar.
Fui ver a exposição de pinturas dele.

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Foste? Onde?
Na biblioteca presidencial em Dallas. Chegámos no dia da abertura e tocávamos nessa noite. Aquele Putin é especial, tem ali uma cena meio Edgar Allan Poe… há algo de estranho naquele quadro.

Quantos quadros tem a exposição?
A mostra chamava-se "A Arte da Liderança" e tinha aí uns 30, do Tony Blair, Bush Pai, Dalai Lama, Sarkozy…

Que materiais é que ele usava? Qual era o suporte?
Aguarela, óleo sobre tela. Mas um deles era dele casa-de-banho, de roupão ao espelho… [Risos]

Qual foi a tua interpretação? Conseguiste ver um bocado mais do homem?
Bem, vês os quadros e parece uma coisa de criança. Têm uma certa inocência, mas não consigo deixar de pensar em estar aqui no 11 de Setembro. transmitem uma certa vibe daquele dia e da importância que teve. Poderia ter sido a "melhor" coisa a acontecer-nos, ou algo que nos destruiria, dependendo da maneira como reagiriamos. Acho que escolhemos a segunda opção: destruímo-nos. Ele parece um comediante, outro Trump, um burro, e tens vontade de ser simpático com ele, até que te lembras do Afeganistão, Iraque, dos seus amiguinhos - Dick Cheney e os outros — senhores da guerra, imperialistas, por isso deixa de ser engraçado e fofo.

É verdade, as coisas não correram lá muito bem. Provavelmente um dos maiores erros na história da civilização e agora se as pessoas não votarem na Hillary, já que Bernie não chegou lá, vou ficar bastante chateado.
Há um outro mundo além destas eleições e da política. Acho que é importante pisarmos essa esfera, conhecermos a sua linguagem, para também nos podermos afastar e meditarmos.

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O mundo nem sempre gira em torno das pessoas. Temos essa ideia bastante egocêntrica do Cosmos, que se trata tudo de eleições e do próximo a liderar e isso é ridículo. E os planetas, estrelas, galáxias, supernovas e o caralho? Por isso é que é importante ingerir drogas psicadélicas de tempos a tempos; elas fazem com que consigamos afastarmo-nos dessa esfera sufocante.

Qual foi a última droga psicadélica que meteste? Ando com um bocado de receio depois de uns acidentes com líquidos.
É perigoso. Aqueles frascos e líquidos, quem já usou teve problemas.

Os cogumelos são mais seguros e ouvi dizer que fazem bem à depressão.
Acho que sim, sou um gajo bastante depressivo. De vez em quando como uns bocaditos e ajuda. Não entendo porque é que são ilegais. Tenho um amigo que cultiva uns e pelos vistos são bastante especiais.

Com que frequência usas?
Eu uso e paro de usar várias vezes, para não ter que usar sempre. É divertido tocar sob o efeito, mas não gosto de estar em bares, por exemplo, apesar de já o ter feito algumas vezes. É fixe para meter no meio do mato. Legalizem, que é o que nos vai salvar.

É um conceito difícil de entender pela maioria das pessoas. Os cogumelos são coisa de gente doida, mas invadir países é na boa.
É isso, mas banir um fungo que cresce naturalmente é que é fixe.

Como é que lidas com a depressão? Comecei a meditar e ajudou-me.
Também tentei, mas não cheguei a lado nenhum. Sou péssimo e tenho de praticar mais, mas o gajo que tocava bateria comigo na Secundária agora é instrutor de meditação no Oakland Zen Center e acho que é do estilo japonês.

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Adoro o estilo budista em que a mensagem básica é "Tudo bem, está tudo certo porque é tudo tão grande que não há nada que possas fazer". É bom se tiveres problemas com controlo.
O meu colega de quarto estuda uma cena diferente. É uma prática budista tradicional bem mais rigorosa, com votos de silêncio. Não entendo nada, mas ele parece-me estar bastante dentro da coisa. A única coisa que me diz é que aquilo não é para ser divertido, nem uma cena cool.

Um amigo meu participou num retiro silencioso. Disse-me que eu adoraria e deveria ir, mas acho que não. O que achas?
Porque não?

Um monte de velhos bizarros com todas as doenças mentais possíveis no meio do nada! Mas, mudemos de assunto. O que é que tens lido nos últimos dois anos? Houve algum livro que te tenha ajudado na composição do disco?
Revisitei vários livros que li quando era mais novo e tiveram algum impacto em mim, tipo a autobiografia do Malcolm X, o primeiro livro que me tocou além dos que lia quando era puto, Dr. Seuss, Judy Blume e sei lá mais o quê. Tinha 14 anos quando li Malcolm X e aquilo bateu-me. Meio que amadureci imediatamente. Senti que tinha tido uma visão depois de ler aquele livro.

Deu-te uma perspectiva, uma inspiração? O que é que sacaste dele agora?
Pensei na minha juventude suburbana no norte da Califórnia, em East Bay. E estava a ouvir Public Enemy e a música daquela época também.

Há muita gente a participar no teu novo disco, incluindo Rob Schnapf que fez alguns discos do Elliot Smith e o teu colaborador de longa data Ariel Rechtshaid, que trabalhou nos álbuns que gravaste com a actriz Karen Black [falecida em 2013, aos 74 anos]. Podemos falar dela? Como é que a conheceste?
Convidei-a para cantar a minha música "Brighter" e demo-nos bem. Estava a compor um punhado de músicas para ela e ela também tinha um monte de poemas e letras. Escrevia coisas e mandava-me. Enviava-me longos áudios a cantar e quando a gravação cortava ela ligava outra vez para continuar a cantar. Ela compunha e gravava desde o começo dos anos 70, talvez 60 e sempre quis lançar um disco.

Creio que isso aconteceu em 2007 ou 2008.
Não me lembro de nada, a minha memória é horrível.

Como é que ela era? Fiquei muito empolgado com essa parceria. Sempre fui fã dela e quando a vi no teu disco, pensei que era uma equipa do caraças. Como era a vossa relação?
Visitava-a muito e às vezes acompanhava-a a eventos e afins, ela sempre estava a desenhar, a cantar, constantemente a criar. Como um redemoinho, sempre a pensar. Ela tinha um controlo excelente da sua criatividade. Sabia exactamente o que queria; foi inspirador porque músicos ou artistas que conheço da minha geração parecem, por vezes, demasiado preguiçosos. Gosto de gente intensa, gente que me inspire.

Mangy Love foi editado a 26 de Agosto, pela ANTIe Cass McCombs toca a 3 de Novembro no Cinema São Jorge, em Lisboa.

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