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O artista que usa a motosserra para dar vida nova às árvores caídas

O gaúcho Hugo França aproveita esqueletos de árvores queimadas para criar esculturas mobiliárias e, muitas vezes, devolvê-las como obras públicas às cidades.

Crédito: Divulgação

Se você frequenta parques por São Paulo, já deve ter se sentado num dos bancos monumentais criados por Hugo França com a certeza de que se trata de um mero tronco de árvore. Não que isso seja uma ofensa ao artista e designer de 61 anos. Pelo contrário. Sua arte consiste em compor peças de mobiliário usando madeira morta sem atacar as formas orgânicas de troncos, raízes e galhos. Ele nada mais quer que o público enxergue e reconheça uma árvore em suas obras.

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Em São Paulo, há peças de Hugo França no Parque do Ibirapuera, Largo da Batata, Parque Burle Marx, Largo do Arouche e 25 itens no Cemitério Parque das Cerejeiras, no Jardim Ângela. Um resumo de sua produção, desde as primeiras criações, pode ser encontrado no Instituto Inhotim, em Brumadinho (MG). A amostra no museu mineiro é uma das mais significativas de França, composta de 130 obras, entre elas um banco gigante de 25 toneladas.

Crédito: Divulgação

O reconhecimento em território nacional veio depois da consagração no exterior. Suas obras estão presentes em pelo menos 20 países, da Coreia do Sul à Bolívia. Em Nova York, o artista gaúcho é representado pela galeria R & Company. Agora, ele retorna às origens com uma exposição em Gramado, na Villa Sergio Bertti, na qual aproveitou árvores locais para fabricar doze peças, a exemplo de uma mesa de mais de 5 metros feita com uma araucária de 370 anos. A mostra fica em cartaz até 4 de dezembro de 2015.

A paixão pela madeira teve início graças ao trabalho de índios Pataxó no sul da Bahia, para onde o artista se mudou após se formar em engenharia de produção na PUC do Rio Grande do Sul, em 1979, e trabalhar por dois anos em São Paulo numa empresa de computação. Com o sonho de morar na beira do mar, foi para Trancoso no começo dos anos 1980, num momento em que a região era uma aldeia sem luz elétrica e água encanada. Mas foi no mato que encontrou a verdadeira vocação. Ele se encantou com a maneira como os nativos encaravam a natureza, em especial a Mata Atlântica, e como construíam canoas se aproveitando do pequi vinagreiro, uma árvore típica da região.

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A palavra sustentabilidade, hoje tão aventada, e a preocupação com o desmatamento eram discussões distantes na época. Nesse sentido, o processo de produção de França é pioneiro. Ele aproveita esqueletos de árvores queimadas e destruídas para criar esculturas mobiliárias e, muitas vezes, devolvê-las como obras públicas às cidades. É o caso do Parque do Ibirapuera, onde eucaliptos derrubados pela chuva viraram bancos na popular área verde da capital paulista.

“Todas as árvores urbanas do mundo vão para o lixo. Isso é um absurdo. A madeira usada na cidade é industrializada, geométrica. Perde a forma e a textura. Minha ideia é criar um mobiliário que traz as formas orgânicas da natureza. Minha interferência é mínima”, diz França em entrevista ao Creators Project dentro do seu ateliê localizado no Itaim Bibi, em São Paulo. Além desse ambiente de trabalho, o designer tem um apartamento nos Jardins cuja decoração inclui uma coleção de banquetas e um berço de madeira em forma de navio. Para o curador e museólogo Fábio Magalhães, Hugo França “procura um sentido de sustentabilidade e critérios ecológicos em todas as etapas de produção”.

O processo, no entanto, é desgastante. A primeira complicação é encontrar sua matéria-prima predileta, o pequi vinagreiro, que está em avançado estágio de extinção. Em seguida, é preciso ter um pátio de resíduos onde armazenar o material coletado. Um galpão na Bahia e um ateliê em Louveira, no interior de São Paulo, cumprem essa função. Chega então o momento de esculpir e imprimir traços naturais em peças gigantescas, fazendo uso de motosserras. Depois, limpar, lixar e envernizar. Para essa produção, França conta com uma equipe e quatro “exímios operadores de motosserra”, invertendo o papel nefasto associado ao equipamento.

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“Antes eu me preocupava mais com a funcionalidade das peças, hoje dou mais valor à questão escultórica”, diz o artista. Eis o equilíbrio e a magia de sua produção. São bancos, mesas e poltronas cuja aparência de móvel nasce naturalmente aos olhos do público como a extensão de um tronco ou de uma raiz. Na fronteira entre a criação e o design, o crítico Fábio Magalhães o considera “uma pessoa singular ao elaborar formas que a princípio não são funcionais”.

Crédito: Andres Otero

Desde as primeiras criações, como uma chaise longue feita com a ponta de uma canoa, França trata o pequi vinagreiro, uma árvore da Mata Atlântica que pode atingir 40 metros de altura e até 1.200 anos de vida, com a paixão de um engenheiro florestal. Por ser oleosa, ela resiste mais ao apodrecimento e às queimadas. Cerca de 90% de sua produção têm como matéria-prima essa espécie.

Bernardo Paz, empresário do ramo da mineiração e criador do Instituto Inhotim – um conjunto de museus e pavilhões de arte contemporânea localizado no interior de Minas Gerais –, é um dos principais compradores das obras de Hugo França. Há 15 anos eles fecham negócios. Escritórios de arquitetura também fazem numerosos pedidos para atender os clientes. Em junho deste ano, uma de suas poltronas feitas de pequi, a Calunga, foi arrematada em leilão da Sotheby´s, em Londres, por R$ 95.000. Na mesma casa, a mesa Isoke, de sua autoria, foi vendida pelo preço de R$ 140.000. Estamos falando, portanto, de um mercado de luxo.

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A veia artística de França, apesar de ter brotado ao sabor do acaso, vem de família. Seu irmão, Rafael França (1957-1991), foi um dos pioneiros da videoarte e, nos anos 1970, integrou, ao lado de Mario Ramiro e Hudinilson Jr., o grupo 3NÓS3, responsável por uma série de intervenções e performances urbanas na cidade de São Paulo.

Crédito: Divulgação

Lá fora, seu trabalho é comparado ao do americano de origem japonesa George Nakashima (1905-1990), um dos principais nomes do design de móveis do século 20. “É uma honra. Nakashima usava de maneira bem mais delicada do que eu as formas orgânicas da madeira”, afirma o designer. Em relação aos conterrâneos, ele reconhece a semelhança com a produção de artistas como Frans Krajcberg, polonês naturalizado brasileiro que atua como artista e ativista ecológico no sul da Bahia.

Hoje, Hugo França se diz confortável circulando por diferentes países, ávido por conhecer “novos olhares e culturas”. Não pensa em passar o resto da vida na Bahia, mas sempre retorna ao local onde sua carreira decolou pelo menos uma vez por mês. O designer vai aproveitar o fim de ano em Trancoso para preparar as peças de sua próxima exposição, Linha de Tensão, programada para ocorrer em fevereiro de 2016 na nova sede do MAC, em São Paulo. “Será um questionamento da fronteira entre design e arte. As peças ocuparão a parte externa do museu e vão invadir o espaço interno como se fosse o design se tornando uma obra de arte lá dentro”, explica o designer que, com o tempo, passou a não se incomodar de ser chamado de artista.