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Música

DJ Marfox: um nível (ainda) mais acima

Da Quinta do Mocho para o Mundo. DJ Marfox fala sobre a sua carreira, o novo EP e de onde vem a música que está a conquistar plateias internacionais, a partir dos subúrbios lisboetas.
Foto por Marta Pina.

Este artigo foi originalmente publicado na nossa plataforma THUMP.

Agosto de 2014 e Marlon Silva, nome de "guerra" DJ Marfox, está a muitos quilómetros de casa. O produtor português actua em Queens, Nova Iorque, no Warm Up do evento musical de Verão "MoMA PS1". Nessa altura, Marlon tinha já construído uma reputação na Europa, mas não tinha a certeza de como é que a sua batida frenética - música electrónica afro-portuguesa, com origem nos subúrbios de Lisboa e na herança da imigração africana no seio da qual nasceu e cresceu - ia ser recebida pelo público norte-americano. Ficou surpreendido ao perceber que a sua reputação o precedia.

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"As pessoas vinham ter comigo e diziam-me coisas do tipo 'Man, eu conheço a tua música, tenho os teus MP3s", diz, em conversa mantida através de uma ligação por Skype cheia de cortes, a partir da sua casa na Quinta do Mocho, em Lisboa. Marlon Silva, 27 anos, fala em português - a tradução fica a cargo do seu manager, André Ferreira -, mas a sua personalidade "larger-than-life" trata de diluir qualquer problema decorrente da barreira linguística. E isso transparece no entusiasmo da sua voz, quando, por exemplo, descreve o momento em que sabe que conseguiu sacar mais uma faixa nova. "Tenho a noção de quando uma música vai resultar de uma forma instantânea", realça, com um sorriso de orelha a orelha. "É uma sensação maravilhosa".

No início dos anos 2000, Marlon, adolescente à época, viu uma actuação de DJ Nervoso, especialista em tarraxinha, numa festa e decidiu tentar produzir faixas. "Foi aí que experimentei pela primeira vez uma verdadeira sincronia entre a música e as pessoas na pista, em comunhão e integração total", diz, ao recordar a habilidade de Nervoso com o género angolano em que a percussão reina. "Se não tivesse testemunhado aquele momento, talvez não estivéssemos aqui hoje".

Silva cresceu numa família de 12 irmãos, na Quinta da Vitória, um dos bairros mais pobres do subúrbio de Lisboa. A mãe era pasteleira e o pai apontador na construção civil. Os dois imigraram da Ilha do Príncipe. Embora a família tivesse uma vida humilde, o produtor diz que os seus pais o encorajaram criativamente desde muito cedo. Quando era criança via o pai e o primo mais velho organizarem festas na rua, nas quais mais tarde tocaria diante de uma plateia de vizinhos e amigos, misturando o semba e a kizomba luso-africanos com qualquer música ocidental que estivesse a fazer sucesso na época. Frequentemente, apareciam equipas competitivas de dança, por isso quanto mais alto o BPM, melhor.

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Todas as fotografias por Marta Pina.

Marlon adoptou o pseudónimo DJ Marfox (uma referência ao seu jogo preferido da Nintendo 64, Star Fox 64), aprendeu a mexer no FruityLoops e juntou forças com os colegas de escola DJ Fofuxo e DJ Pausas, que na época faziam mixs para um grupo de dança local, o Máquinas do Kuduro. Unidos sob o nome DJs do Ghetto, o trio começou a organizar festas em lugares improvisados pela cidade e, depois, em 2006, lançou uma compilação homónima, com outros artistas da cidade. A maioria vinha da classe trabalhadora, usava software barato e acessível e fazia a sua própria versão da batida afro-portuguesa. "Na mesma rua, podes ter dois ou três produtores diferentes e cada um deles tem sua própria identidade", explica Marlon. E salienta: "Eles gostam de ser diferentes uns dos outros".

Os beats intrincados de Marfox, produzidos de forma amadora e disponibilizados no YouTube e em programas de partilha de arquivos hoje em dia votados ao esquecimento, como o eMule, renderam-lhe, quase de imediato, um culto de seguidores. Foi o suficiente para o levar a tocar sem parar em eventos e festivais por todo o País e pela Europa. O seu EP de estreia, Eu Sei Quem Sou, gravado pelo selo independente lisboeta Principe Discos, era um híbrido, carregado de confiança, dos estilos anglo-portugueses com house e techno; o título, portanto, parece mais do que apropriado. Segui-se uma série de outros lançamentos, incluindo o explosivo EP Lucky Punch, de 2014, pelo selo nova-iorquino Lit City Trax, do J-Cush, e remixes para estrelas indie, como Panda Bear, dos Animal Collective, e tUnE-yArDs (com o trio de rap brasileiro Pearls Negras).

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No seu último EP, Chapa Quente, lançado em Abril, Marlon não só volta à Principe Discos, mas à música que foi a banda sonora da sua juventude. Da melodia de flauta que permeia "2685", à bateria estridente de "Unsound", o EP inspira-se nos polirrítmicos quizomba e kuduro africanos, na música folclórica indiana e na colecção de jazz ocidental e pop brasileiro do seu pai. É uma miríade de influências que evocam o caldeirão cultural onde ele cresceu, com o acrescento das explosões de metais e a dissonância sci-fi que têm tudo a ver com ele — elementos introduzidos para captarem a atenção do ouvinte e a que o produtor chama de "ganchos de esquerda".

"Para mim, a qualidade mais importante desta música é que ela permite-me beber de outras fontes sonoras e integrar nela o que quero", sublinha DJ Marfox. "Podes ser influenciado e basear-te noutros tipos de música e usar o que achas adequado. Acho que essa é a qualidade mais fantástica e admirável".

Nos últimos anos, Marlon emergiu como um embaixador não-oficial de uma cena que vem crescendo no underground português há quase uma década, mas que está agora a conquistar o sucesso internacional. No ano passado, a Warp Records lançou a série Cargaa, um trio de compilações que apresentam uma selecção diversa de produtores portugueses em ascensão, incluindo o pupilo de Marfox, DJ Nigga Fox, cuja adopção do sufixo "Fox" é uma referência clara e directa à influência de Marlon; o colega lisboeta DJ Firmeza, que recentemente apareceu numa edição londrina do Boiler Room; e Nidia Minaj, nascida em Portugal, mas a viver em Bordéus, França, e cujo apelido é uma referência à sua estrela de hip-hop americana favorita.

Embora esteja contente que a "batida" tenha encontrado público fora das fronteiras dos bairros, Marlon insiste que pouca coisa mudou na Quinto do Mocho, o bairro proeminentemente de classe trabalhadora e pobre, com aproximadamente cinco mil habitantes, a que ele chama de lar. "As pessoas aqui parecem viver no seu próprio universo, no que respeita à sua vida quotidiana", diz. O isolamento estende-se aos artistas de Lisboa, o que talvez explique porque a música de Marfox e companhia tenha conservado uma certa abstração e aridez, que a impede de ser replicada por gente de fora.

"Acho que há um lado político nisso, porque estamos a falar de uma minoria de artistas que tem poucos recursos, mas que, por acaso, tem alcance internacional, por causa da música fantástica que fazem", justifica Marlon. "Este tipo de música só poderia acontecer aqui".

Max Mertens é editor do THUMP Canadá. Segue-o no Twitter.