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Entrevistas

Irvine Welsh escolheu viver e não se arrepende

Os tempos de "Trainspotting" já lá vão.

Este artigo foi originalmente publicado na VICE UK.

Claro que houve pioneiros: Keith Richards, Thomas De Quincey, ou Zammo. Mas foi Trainspotting que introduziu ao público britânico (e de todo o Mundo) as drogas duras. Danny Boyle fez um trabalho tão bom ao adaptar o romance para o cinema que o filme quase define uma geração inteira. Infelizmente, Transpotting chegou num momento em que os britânicos em geral não sabiam muito sobre drogas; isso explica o porquê de ter passado toda a minha adolescência a tentar convencer a minha mãe de que um bocado de haxixe não me provocaria uma overdose, nem sequer iria ficar a ver bebés a trepar paredes.

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Há alguns meses estreou outra adaptação para o cinema de um livro de Irvine Welsh: Filth, um filme de Jon S. Baird, com James McAvoy como protagonista (provavelmente teve que beber meia garrafa de whisky todas as noites para encarnar a personagem).

Actualmente, Irvine Welsh vive e trabalha em Chicago. Orgulhosamente escocês, o autor de seis conhecidos romances, quatro colecções de contos (entre eles o insuperável Acid House, de 1994) e uma série de guiões, mostra-se encantado com o êxito de Filth e mais que feliz por partilhar connosco o que pensa sobre Jimmy Savile, a heroína e a independência da Escócia.

VICE: Nunca tiveste intenção de ser escritor. Achas que é por isso que o teu trabalho chega a tanta gente?

Irvine Welsh:

Os escritores podem acumular muito conhecimento. Se leres só os clássicos, irás tentar escrever coisas que estejam no mesmo patamar, mas nunca será tão bom. Apesar disso, socialmente estás mais disponível, sais, bebes uns copos com os teus amigos, apanhas transportes públicos. Acho que tudo isso é importante.

Suponho que continues a fazer tudo isso.

Sim, claro, mas agora faço-o em Chicago. Também é importante sair com pessoas que sejam fixes e ao mesmo tempo interessantes.

Vi o Candyman. Foi filmado em Chicago…

Gosto muito desse filme. Foi filmado no Cabrini Green, mas depois destruíram-no. Era um dos maiores bairros de negros no norte de Chicago. A segregação racial dentro desta cidade continua, demoliram tudo e deslocaram todas as famílias para o sul. Odeio a distinção étnica dos Estados Unidos. Vivo num bairro de brancos e posso dizer que Chicago é uma das cidade mais multiétnicas do país, mas não o é realmente. Há um

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mapa enorme

 na Internet que mostra os EUA segundo as etnias presentes no país. Se olhares para Chicago, vês um buraco enorme. Provavelmente a África do Sul estava menos dividida durante o apartheid, que Chicago na actualidade.

"Se não houver trabalho, nem acesso à educação, nem nenhuma actividade desportiva, que resta para além da droga?".

Sempre foste um escritor com pendor para a política. Skagboys mostra o vício da heroína como uma consequência da decadência industrial do norte do Reino Unido. É um fenómeno que tu próprio viveste?

Sim. Se não houver trabalho, nem acesso à educação, nem nenhuma actividade desportiva, que resta para além da droga? A droga faz-te a cabeça.

As pessoas precisam de algo intenso, é isso?

Sim, têm necessidade de viver algo intenso. É isso (juntamente com o drama e a cultura em torno da droga) que os aproxima do vício. Damo-nos conta de que, por exemplo, o lugar de trabalho é um drama: há projectos a terminar, colegas com quem nunca se fala, promoções e sanções, casos amorosos… O local de trabalho é um conjunto de relatos. Se não tens emprego e não os vives no trabalho, vives na rua, na economia subterrânea, na merda, nos gangs, com armas e polícia à mistura.

E a pornografia? É um elemento importante dentro da tua obra. Como encaixas tudo isso?

Mais uma vez, acho que também está relacionada com o sentimento de alienação e pela vontade de levar uma vida intensa. O consumismo moderno criou uma espécie de zoológico estranho em que nos circunscrevemos, mas dentro do qual podemos permanecer. Transformamo-nos numa espécie de urso polar que nada em círculos num jardim zoológico. Está perturbado, porque não está no seu ambiente natural e a nós acontece-nos o mesmo. Todos procuramos a

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schadenfreude

— na pornografia há muita humilhação. Isso também acontece nos programas de televisão em que se procura talentos, como o

X-Factor

e todos os outros dessa espécie. O mesmo acontece na Internet — tudo isto faz parte de uma cultura que se perdeu pelo caminho e que já não sabe onde está.

Houve alguém que disse que baseaste o teu personagem pedófilo e necrófago, Freddy Royle (que aparece em Lorraine goes to Livingston, publicado em 1996), em

Jimmy Savile [um apresentadorpedófilo da BBC]. É verdade?

Sim, ouvi as histórias sobre Savile que contavam os auxiliares dos hospitais, mas não levava aquilo a sério. Toda a gente pensa que Savile era esquisito e um bocado maluco. Lembro-me que o meu pai via o

Top of the Pops

e dizia: "Há algo que não está certo na cabeça deste gajo". E eu dizia: "Sim, mas dizes isso de todos os que têm cabelo grande e se vestem de forma esquisita". E ele insistia: "Não. É mais do que isso." Parecia que havia muita gente a notar que algo estava mal. Para mim era apenas um britânico excêntrico, como muitos outros. O Alan McGee fala na sua biografia de um encontro com Savile e explica que também reparou que havia algo estranho nele.

Qual foi a tua inspiração para a personagem do Freddy?

Ouvi muitos rumores que diziam que Savile era necrófago e que tinha frustrações sexuais. Achei que se tratava de rumores sem fundamento. Mas os rumores são sempre interessantes, por isso criei o Freddy a partir dos rumores que me tinham chegado sobre o Savile, ainda que eu não acreditasse neles. Claro que agora acredito. Mas, como escritor, não me inquietou saber se eram verdadeiros ou falsos. O que me fascinava era que se tratava de um apresentador de televisão que parecia fixe.

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Achas que as pessoas nascem más?

Acho que as pessoas podem nascer com uma falta de empatia e com diferenças mentais. Mas, em geral, acredito em situações traumáticas que fazem com que as pessoas se tornem más. Nascer em circunstâncias desfavoráveis, ser agredido, não ser repreendido… Na idade adulta dizem-nos: "Ouve, já és um adulto, tens de fazer boas escolhas". Acho que é o justo. Escrevi o prólogo de uma nova edição de

Laranja Mecânica, de

Anthony Burgess. Kubrick baseou-se na versão americana do livro, que omite o último capítulo, que era muito british, muito pragmático. Mas a versão americana está equilibrada: existe o bem e existe o mal.

Ok. Achas que personagens como Begbie, de Trainspotting, se aproximam mais do público actual? Achas que os desempregados de então deram lugar aos actuais protestantes violentos de hoje?

Acho, sobretudo, que há muita apatia. Hoje, os desempregados ficam em casa, no sofá, a jogar videojogos e a ver a televisão. Pode ser que tenham deixado a escola, ou que se tenham licenciado, mas que não encontrem trabalho. Podem ter 30 anos e ser invisíveis porque, contrariamente a Mark e a Spud, não têm vida social. A malta visível que vivia na rua e que andava de pub em pub desapareceu. A maior parte dos pubs de Leith fecharam. Um gajo agora já não vê pubs com gente mais velha. Essa malta agora fica nas suas casas, vai ao supermercado e regressa para beber em casa porque é mais barato.

Porque é que te mudaste para Chicago?

Por razões familiares. A minha mulher é daqui; vivemos em Londres e Dublin. Tivemos sempre um pé em Chicago. Tenho mais trabalho aqui que em Leith.

"Há 15 anos, se metesse uma linha de coca pensava 'vou arranjar problemas'. Agora, se me oferecessem um risco diria: 'Se meto não vou conseguir dormir e amanhã vou ficar a sentir-me mal'".

Ainda és capaz de escrever sobre os temas que te interessavam antes?
Repara, tenho um apartamento em Miami e a criminalidade ali é muito elevada. A história do meu próximo livro acontece em Miami. Os narradores são norte-americanos. Miami inspira-me mais que Chicago. [Chicago] é uma cidade velha, com muitas tradições, enquanto que Miami é uma cidade de imigrantes e isso faz com que a minha voz literária seja tão pertinente como a de qualquer tipo acabado de chegar. É uma cidade louca, diferente de todas as outras que já visitei. Estás arrependido por teres escolhido a vida? Não tens saudades daquela época em que bebias como se não houvesse amanhã?
Cada coisa no seu momento. Há 15 anos, se metesse uma linha de coca pensava "vou arranjar problemas". Agora, se me oferecessem um risco diria: "Se meto não vou conseguir dormir e amanhã vou ficar a sentir-me mal". Já nem sequer bebo muito. Passei muito tempo a beber e a consumir; era quase como defesa por estar sóbrio. Quando um gajo envelhece começa a pensar da seguinte forma: "Não me faltam muitos dias, porquê perder mais dois?", Mas, em termos literários, esses anos de formação serão sempre os mais importantes para mim. Aqueles anos formataram-me para o resto da vida.