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António da Silva, um etnógrafo do sexo casual

Documentar as relações em vídeo.

A primeira vez que assisti a um porno gay foi quando peguei num CD-R do meu irmão, a pensar que era de música, e o meti no computador. Afinal era um vídeo com três marinheiros a fazerem coisas que o meu cérebro heterossexual acabou por recalcar nos confins da minha mente. A segunda vez que vi um porno gay foi há uns tempos, quando me mostraram o trailer do Mates. Estou a falar da curta-metragem sensação de António da Silva. Pelo menos, desta vez já não fui ao engano. O António apareceu na redacção para uma conversa e apercebi-me de que havia malta da casa que já o conhecia. Nenhum de nós adivinhou que este gajo, que anda a dar umas na internet, já tinha cruzado conversa connosco há uns tempos num restaurante clandestino. Pelo filme também não dá para perceber quem é ele — só se vêem corpos e meias caras, ainda por cima todos parecidos. Falámos da sua incursão no mundo do sexo casual e do peso da identidade sexual numa sociedade que só pensa em foder. E esse peso ainda é muito. Não é por nada que o António só disse à mãe uma semana antes desta entrevista: “Sou gay.” VICE: António da Silva não é o teu nome verdadeiro. Porquê esse nome?
António da Silva: António porque, tendo em conta o trabalho que é, acaba por ser um pouco irónico, porque tem uma conotação bastante religiosa. Mas o factor principal é o facto de ser o meu segundo nome. Normalmente temos quatro nomes e António e Silva são os meus nomes intermédios. Como se trata de um projecto muito pessoal, achei piada jogar com isso. As pessoas que entram no filme são teus amigos?
A maior parte é malta que conheci de propósito para o projecto, mas alguns eram amigos. E como é que foi dar umas em frente à câmara?
Hmm, não era essa a intenção, à partida. O objectivo começou por ser registar situações íntimas entre pessoas através da câmara, mas o feitiço virou-se contra o feiticeiro e, de repente, dei por mim a entrar nas cenas. Aí ,percebi que o potencial era muito maior. Ao início foi estranho. Questionei-me e tal, mas depois tornou-se normal e a coisa acabou por ficar muito mais interessante. O teu filme está a dar que falar.
Sim, todos os dias tenho mensagens de pessoas que querem ver o filme completo. Nos últimos dias, a minha conta do Vimeo explodiu: cerca de três mil pessoas acederam ao vídeo. Também há o interesse da imprensa, como vocês. Esta reacção foi uma surpresa para mim. Acho que ajudou muito o facto da estreia do filme ter sido na altura em que a Butt o mencionou. Foi uma questão de sorte, acho. De repente, a coisa está a multiplicar-se de uma forma surpreendente. Espero que isto seja bom. Tem havido imensas críticas e consigo, finalmente, encará-lo com mais distância, porque vejo pessoas a comentar o filme. E quando não estás a fazer isto, o que é que fazes?
Trabalho como realizador, faço curtas-metragens, só que o tema é diferente. O que é que os teus amigos, que não entram no filme, acham deste trabalho?
Sabes que ainda não partilhei com muita gente, mostrei a poucos amigos. Ao início houve muita rejeição, muita crítica, e eu próprio perguntava-me: “Por que é que estou a fazer isto? Tanta gente já fez coisas sobre este assunto, o que é que eu posso acrescentar ao tema?” Mas, a partir do momento em que encontrei o caminho e achei que tinha algo que valia a pena contar, comecei a mostrar o filme de uma forma mais finalizada e a reacção começou a ser bastante positiva. Tentar identificar-te no filme é como tentar encontrar o Wally.
Foi curioso ver essa questão da identificação. Há no filme um tipo de corpo, um género, que, basicamente, é o que eu prefiro. Por isso, os corpos são muito parecidos e as pessoas que me conhecem e frequentam o meu círculo de amigos pensam que me estão a reconhecer ou a outras pessoas, mas muitas vezes não estão. No fundo, nós somos todos muito semelhantes. Não achas que se estão a misturar muito as águas entre a cena artística e a pornografia?
Sim. Quer dizer, a borderline é a fórmula de hoje em dia. As coisas agora ficam no limbo entre a pornografia, arte, cinema e artes performativas — porque não deixam de ser performances que acontecem. Nesse sentido, sim, o filme está nesse cruzamento e é isso que me interessa. A minha intenção era não tornar a coisa muito “arty”, mas também não muito pop comercial. Interessava-me que fosse uma coisa fácil, para muita gente perceber, fácil de ver e entertaining, mas com substância. Apesar de a história ser muito simples, o que pode ser lido por trás disso é muito mais complexo. Foi a primeira vez que usaste sexo explícito num trabalho?
Sim, a nível pessoal foi o primeiro trabalho, mas já tinha feito alguma experimentação anterior nesse campo. Há um ano trabalhei numa companhia de porno, em Londres. Trabalhava como realizador. Foi o meu primeiro contacto com o meio, mas aí trabalhei com actores profissionais, estrelas do porno, mesmo. Neste caso não teve nada a ver com isso, apesar de o tema também ser sobre sexo. Só vi o trailer. Podes falar mais sobre o Mates?
São encontros imediatos. Nunca tive daqueles perfis online de engate nem nada disso, mas depois de ter acabado uma relação longa foi tipo “bem, deixa lá ver o que é isto”. Então comecei a usar o Grindr, que é uma aplicação GPS para smartphone, em que tu detectas pessoas online e a distância a que estão de ti. Podes ter um vizinho que está online, tens uma foto, e em cinco minutos podes estar dentro da casa dele ou ele na tua. E assim conhecerem-se de uma forma super íntima. Além disso, da mesma forma que apareceste muito rápido também desapareces num abrir e fechar de olhos. No Mates, acontece exactamente isso: começa com um chat: “Hi mate, how are you? I’m horny. What are you up to?” E trocámos fotos. A história é de quecas, com várias pessoas, e retrata o chegar ao sítio, despir, conceber o acto, ejacular, respirar um bocadinho e ir embora. Isto para mim era novo, mas é uma cena muito praticada. Fiz isto durante três meses e levava sempre a minha câmara. Achas que o pessoal gay é mais desinibido nesse aspecto de interagir nas redes sociais?
O gay tem a mentalidade do homem, somos muito físicos. Acho que os heterossexuais fazem exactamente o mesmo, mas com uma diferença: pagam. O que é uma estupidez quando há tanta coisa gratuita hoje em dia. Se fossem honestos era tudo muito mais fácil. E então pagam pelo que merecem: pagam por não serem frontais. Se o fossem nunca pagariam para ter sexo. Além disso, somos, possivelmente, menos púdicos. E a seguir ao Mates vem o quê?
Tenho imensa coisa planeada. Mas tenho de ser cuidadoso com este personagem, o António da Silva. Tenho que o definir melhor. Existem várias possibilidades, vários caminhos para ele. Ainda é muito cedo para entrar em detalhes, mas já filmei uma série de situações para dar continuidade ao personagem criado, num outro projecto completamente diferente. Segundo o feedback que tenho tido, o Mates consegue seguir um caminho algo diferente, que não se vê muito por aí. Ou seja, dentro do que nós entendemos por porno, tem algo que não é bem porno e pode ser outra coisa qualquer. O meu interesse também é esse: mudar a percepção do que hoje podemos considerar pornográfico. Não sei qual será o próximo trabalho, mas será nesse sentido. Ia perguntar-te isso a seguir. O teu objectivo com isto é mudar a percepção do porno, então?
É mudar o que entendemos por sexo. Este filme não deixa de ser um trabalho antropológico. É um trabalho sobre actos reais e que pode ter até uma componente científica. Acho que a nossa sociedade gira em torno do sexo, dá-se muita importância a isso, e enquanto tal acontecer não vamos andar para a frente e evoluir no sentido em que devíamos. Disseste que tinhas acabado de sair de uma relação. Isto surgiu como maneira de conhecer pessoas? Estavas com vontade de experimentar coisas novas?
Tenho desenvolvido trabalhos a partir de residências artísticas. Se quero fazer um trabalho sobre uma cidade vou para um local e investigo sobre o tema para experienciar a questão. Neste caso o que me interessava não era um espaço, nem os outros, era eu mesmo. Conhecer-me através dos outros. Foi um período em que decidi deixar a minha casa, deixar tudo, e passei a não ter casa. Um mês vivia num sítio, outra semana vivia noutro, às vezes com amigos, outras vezes arrendava quartos. Isso foi um bom método para ter várias experiências num curto espaço de tempo. Além disso, tinha o espaço das outras pessoas. Estando no tal online flirting, um dia ia a casa de uma pessoa, noutro dia ia a casa de outra e isso interessava-me muito mais do que trazê-los até onde eu estava, apesar de ser muito mais fácil filmar dessa forma. Mas procuravas ter prazer com isso ou foi só mesmo pela antropologia da cena?
Foi tudo. Naquela altura misturou-se tudo. Era prazer, mas também era muita frustração. Não sabia o que fazer da minha vida. Como disse há pouco, tinha acabado de sair de uma relação longa, sentia-me sozinho e, ainda por cima, estava sem trabalho. Fazia-o também para compensar o ego. Foi a maneira mais estúpida que encontrei para levantar a moral. Fazer novos amigos também, criar novas relações. Por falar nisso, ficaste com alguma relação ou manténs contacto com alguém que tenhas conhecido durante o projecto?
Sim, agora sim. Houve um período em que tive mesmo de parar e não ter contacto com ninguém. No início, começou por ser uma cena pessoal, depois passou para pessoal/profissional e chegou a um ponto em que era só profissional. Então decidi desligar-me das pessoas com quem tinha tido contacto e tentei isolar-me de tudo para poder editar o filme. Agora, aos poucos, começo a retomar o contacto com algumas das pessoas.  Más experiências, tiveste?
Boa questão, não tinha pensado nisso [risos]. Más experiências não tive. Se houve má experiência, para mim, foi olhar para o trabalho e ver a coisa como um período em que não estava bem. A experiência em si, no total, nunca é assim tão boa porque é preciso ter cuidado mesmo em questões de saúde. Tipo, cheguei a um ponto em que comecei a entrar em pânico a pensar: “Depois deste tempo todo, será que está tudo bem comigo? Tenho que fazer análises. E até que ponto é que eu também não me terei perturbado mentalmente?” Afinal de contas, isto é uma cena fria: conheces uma pessoa, vives o momento intensamente (a maior parte foi boas experiências), mas o desligar, parecendo que não, é bruto. É um bocado esquizofrénico. Em termos psicológicos, é preciso saber lidar com isso. De certa maneira, foi uma má experiência que se tornou numa boa experiência. Sexualmente experimentaste coisas diferentes das que estavas habituado?
Não, nisso sei o que quero. Só aconteceu ser confrontado com linguagens que não fazia ideia do que queriam dizer. Pessoas a perguntarem-me se eu gostava de GS — golden shower —, coisas desse género. Às vezes era eu que atiçava: queria ver até onde é que as pessoas iam, mas nunca cheguei a ser gato escaldado. Sei mais ou menos o que quero e também o tipo de corpo que procuro, muito idêntico ao meu. Aconteceu-te chegar ao sítio e a “mercadoria” ser completamente diferente?
Sim, mas não muito, porque chegas a um ponto em que percebes o mecanismo. Por exemplo, quando vês fotografias de uma pessoa que está sempre de chapéu ou corta sempre a foto sem mostrar a parte de cima da cabeça, já sabes que é careca. Os homens fazem muito isso e torna-se óbvio de que estão a esconder algo. Depois também há muitos perfis falsos, com fotos de outras pessoas. Nesses casos nem chegas a encontrar-te com ninguém, porque não é esse o objectivo da pessoa. Provavelmente só quer usar o perfil para te ver nu online. Essa questão da identidade sexual é talvez um dos assuntos centrais deste trabalho, não?
Pá, sim. Na semana passada cheguei à beira da minha mãe e disse-lhe: “Sou gay.” Não vale a pena esconder essas coisas no tempo em que vivemos. É um bocado como o gajo que esconde a careca nas fotos: não podia ser mais óbvio. Não é saudável. Depois vês pessoas que tentam reprimir a sua sexualidade. Vês, por exemplo, gays a transformarem-se em padres porque é a única maneira de serem aceites socialmente sem assumirem a sua orientação sexual. Isso não é honesto nem saudável.  Fotografia por Nuno Miranda
Imagens da curta-metragem Mates cedidas por António da Silva