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Entretenimento

O lento processo de admitir para mim mesmo que 'Uma Família da Pesada' é ruim

Uma Família da Pesada, é hora de terminar tudo entre nós.

Temos uma rotina tácita no meu apartamento, e não temos orgulho disso. Por volta das 23h30, eu e meus colegas de apê — todos culturalmente engajados e supostamente conscientes das causas sociais — nos vemos jogados no sofá, entre os escombros do jantar e de outro dia de trabalho, e, frequentemente, com um beck recém-enrolado nas mãos. A televisão ligada na BBC Three. Sintonizada nas cores brilhantes de Uma Família da Pesada. Sei que não estou sozinho. No mundo inteiro, adultos, pessoas crescidas com empregos, planos de operadora de celular e relacionamentos de longo prazo, desfrutam secretamente das piadas de estupro e flatulência que rolam na animação. Nossos rostos envergonhados iluminados por telas de LED, cansados demais para levantar a bunda do assento, mas não com sono suficiente para fechar os olhos. Brian e Stewie vão cantar uma música, olha! Não posso ir pra cama ainda.

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Quando éramos mais novos, vínhamos correndo do jardim, engolíamos uns nuggets de peixe e sentávamos de pernas cruzadas na frente da TV para ver Os Simpsons. Agora, arrastamos nossas pernas cansadas da rua, jogamos as sobras de ontem no micro-ondas lá pelas nove da noite, respondemos alguns e-mails, ligamos o ventilador e caímos sem amor nos braços de Peter Griffin. Giggidy, giggidy, goo.

Mas há esperança. Esse ciclo pode ser quebrado. Na semana passada, a BBC Three se tornou um canal pago cuja programação não contará mais com a transmissão de UmaFamília da Pesada. O programa volta à TV inglesa no dia 29 de fevereiro pela ITV2 [no Brasil, o desenho faz parte da grade do canal a cabo Fox], mas em sua breve ausência, vamos tirar um momento para refletir por que sempre voltamos a assistir a série.

Por que Uma Família da Pesada é popular? Já assisti muitos episódios e tenho certeza que não é "porque é engraçado". Nunca cheguei a rir em nenhum episódio. Se faço algum som, é mais tipo um gemido de desaprovação. É como se minha risada questionasse a própria existência enquanto sai da minha boca. Imagino que seja o mesmo barulho que farei se algum dia trocar uma fralda: "Tem um monte de merda e mijo aqui, o que é meio engraçado, mas, na verdade, fede demais e não quero mais olhar para isso".

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Acho que o apelo da série pode ser resumido a três coisas:

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1. Ritmo.

2. Familiaridade.

3. Cores brilhantes.

Primeiro: ritmo. Comparando Uma Família da Pesada com uma sitcom britânica típica de 2016, você consegue ver onde parte desse apelo pode estar. No atoleiro de hoje, as comédias britânicas ficaram presas num ciclo de silêncios sisudos e olhares constrangidos prolongados. O humor é sempre baseado nos amigos, mães ou pais dizendo a coisa errada na hora errada. Esses longos espaços desconfortáveis em episódios lentos de 30 minutos te dão muito tempo para perceber que o que você está vendo não tem graça. Mas Uma Família da Pesada faz suas piadas escrotas, e eles fazem uma caralhada delas. Família da Pesada contém, em média, 5,20 piadas por minuto. Com essa taxa, nenhuma piada permanece tempo suficiente [na tela] para você notar que ela não é realmente engraçada. E quando isso não funciona, eles vão pelo outro caminho e arrastam uma piada por tanto tempo que você sente que precisa rir para acabar logo com isso. Por exemplo quando o Peter luta com o frango , ou quando alguém cai. É o equivalente humorístico de sequestrar alguém até a pessoa concordar em sair com você.

Segundo: familiaridade. Há muitas referências a pessoas famosas em Uma Família da Pesada. Gente como Julia Roberts, Sting, Ben Stiller, Daft Punk, Bill Clinton, Barbra Streisand, tudo de Star Wars, o Conde da Vila Sésamo, Jennifer Love Hewitt, Hitler, Homem-Aranha, Bill Cosby, Sean Connery, um índio, Caco o Sapo, Jesus Cristo, gaivotas e Lindsay Lohan. E como você conhece isso tudo, ver essas coisas num desenho animado é hilário.

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Terceiro: Família da Pesada contém cores brilhantes.

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Mas o senso de humor que movimenta o programa é tóxico. Quando eu e meus colegas de apartamento admitimos que tínhamos um problema, começamos a fazer as contas. Contamos quantos episódios conseguíamos assistir até encontrar um que não envolvesse violência contra mulher. Chegamos a 14. Foram 14 episódios de Família da Pesada até um de 20 minutos no qual Meg, Lois ou outra personagem mulher não fosse nocauteada, assassinada ou levasse um tapa na cara.

Não há um único personagem menor de Família da Pesada cujo passado não seja referenciado constantemente de modo negativo. Seja as piadas antissemitas de Mort Goldman sendo ganancioso, o papel de negra petulante de Loretta Brown (dublada na Inglaterra por Alex Brookstein, uma artista branca) ou toda vez que um nativo norte-americano com um passado místico e vício em jogo aparece; nenhum assunto está fora dos limites, e a série se apoia nisso. Há muita televisão "ofensiva" hoje em dia, mas o desejo infinito de Família da Pesada de fazer piadas cegas e idiotas sobre os vulneráveis e sub-representados vai além da coisa de romper fronteiras, e começa a parecer uma predileção estranha dos roteiristas. Uma vontade bizarra de ser ofensivo só para ver se o microfone ainda está ligado. O cara do fundão da classe que percebe que todo mundo se vira quando ele xinga a professora. Mas estamos em 2016. Existe pornô. O Channel 4 apresentou um documentário sobre caras com escrotos gigantes. "Passar do limite" não é mais engraçado. Família da Pesada é o rebento definitivo e confuso da ideia de que ninguém tem o direito de se sentir ofendido. Claro, igualmente, ninguém tem o dever de ofender.

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Daqui mais ou menos uma semana a série estreia de novo na ITV2. Não estou dizendo que vamos preencher o vácuo com cinema neorrealista italiano, mas talvez seja minha hora de tentar um programa com menos piadas sobre como asiáticas dirigem mal ou musicais sobre testes positivos de AIDS . É isso. Não vou olhar para trás. Uma Família da Pesada , é hora de terminar tudo entre nós.

@a_n_g_u_s

Screenshot via  YouTube .

Tradução: Marina Schnoor

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