VICE entrevista: Pitty
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Noisey

VICE entrevista: Pitty

'Admirável Chip Novo' foi lançado há 15 anos e hoje nem a Pitty sabe por que você gostava desse disco.

De cara fechada, birrenta, sotaque baiano e um visual anti-roquerinha pop, ela veio bater de frente com aquele visual Avril Lavigne que a meninada dos anos 2000 estava começando a se acostumar. Pitty estreou assim: com raízes no hardcore e embriagada pela literatura, largando a Bahia do axé para dar vida ao seu som.

Em 2003, a fuga deu origem ao seu álbum de estreia Admirável Chip Novo, lançado aos trancos e barrancos no dia 7 de maio daquele ano, entregue à uma geração sintonizada na extinta MTV Brasil e conectada nos primórdios da internet. Pitty e sua banda formaram um público, bombaram na mídia e tão aí até hoje, com muita história pra contar.

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Quinze anos depois, Pitty, que também é Priscila, hoje é mãe, compositora, instrumentista e apresentadora de TV. Num restaurante chique em São Paulo, no nível da atual mulher fina que Pitty apresenta ser, mas logo passamos pra um bar, e ela de cara trocou de papel e se colocou como entrevistadora. No nosso papo, conversamos sobre seu primeiro lançamento musical, as letras, seu público, feminismo e maternidade. Saca só:

Noisey: E aí, Pitty?
Pitty: Deixa eu te perguntar, você ouviu Admirável Chip Novo agora?

Ouvi.
Como é ouvir tanto tempo depois assim?

É muito diferente. Eu tinha 11 anos, era uma criança. Saía da escola às 17h40 e fazia de tudo para chegar rápido para pegar o Disk MTV, porque o clipe de "Máscara" ficava sempre em primeiro lugar. Pulava na minha cama, cantando, gritando a letra inteira. Desculpa ficar falando…
Não, mas eu te perguntei, eu quero saber. Eu tenho uma curiosidade antropológica sobre isso.

Foto: Kel Lima/VICE Brasil

Para mim, hoje vem muito a questão da representatividade na sua música. Até por ser gay. Há 15 anos carrego uma música que me representa, e hoje representa muito mais pela pessoa que eu sou.
Será que já tinha uma semente naquela época que você sentia? Porque esse negócio da música é muito doido, cara, em 15 anos a gente muda muito. Coisas que a gente gostava há 15 anos é muito mais provável que [hoje] a gente tenha um pouco de vergonha. Então me interessa muito saber: por que dura? Por que faz sentindo para algumas pessoas ainda hoje?

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E é engraçado a sua resposta, porque nessa última semana, não sei se foi coincidência, mas eu vi muitas pessoas comentando na internet um bagulho tipo: "Caralho, parei para ouvir o 'Chip Novo' todo de novo e fazia tempo que não escutava e fez todo sentido". E eu fiquei curiosa disso, porque o mais provável é que as coisas passam e tudo bem.

Hoje eu entendo muito mais a música "Admirável Chip Novo" pelo contexto de mundo que se criou: internet, redes sociais, publicidade, George Orwell, Big Brother. Hoje é isso. Você falava numa época…
Outra coisa te pegava, talvez.

O que me pegava muito era o imperativo, foi um lance que eu sempre achei ofensivo a mídia falar com você no imperativo.
E é de praxe. Deve estar meio que no manual, mande que a pessoa faz.

É muito curioso, porque a escola não ensinava a gente usar o imperativo. O imperativo é deselegante. É indelicado. O que era uma ironia. Tá ligado que muita gente não se ligava e eu ficava meio, "Meu deus, é melhor não explicar", porque tem coisa que você não tem que explicar, só tem que sentir. Eu me lembro que quando escrevi a letra de "Chip Novo" era o começo da internet. Eu não tinha nem email, porque era um bagulho de gente rica. Era difícil. Primeiro porque você tinha que ter um computador. Computador não era acessível. Lembro que eu fiz um email do Inkoma, meu amigo fez, para receber contato das outras bandas e para eu ver esse email tinha que ir na casa do meu amigo rico.

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"A vida adulta é muito chata, é muito difícil. Você não tem dinheiro para porra nenhuma, só trabalha para pagar conta, caralho."

A minha primeira ligação no Disk foi para pedir "Máscara".
Que demais isso, que maravilhoso. Agora, sabe que você deu uma volta. Porque a geração anterior a sua entrou numa ojeriza com a MTV numa fase e é louco perceber como pra sua geração isso formou uma série de coisas, de gosto musical, de estética.

O Brasil em 2003 vivia uma euforia de campeão pós-Copa do Mundo, primeiro ano do mandato de Lula e salário mínimo de 200 para 240 reais. Como era a Pitty nessa época?
Nessa época, a gente não tinha a política de forma que a gente vivencia hoje. Existia grupos mais politizados, mas para além da política partidária, ou de números, existia uma coisa da política da libertação, digamos assim. As reivindicações, tanto das pessoas que estavam ali, junto comigo, quanto minhas e do meu grupo era mais uma coisa de existir, tinha uma coisa mais filosófica, existencialista. Era sociológica, claro, porque não tinha como deixar de ser, estamos falando de gente. Mas ela não tinha a ver com política partidária, saca? Tinha muito mais um lance de pensamento do que polarização. Não existia polarização. Não tratava disso dessa forma. Não do jeito que é hoje, era muito diferente. Um Brasil muito mais diferente, de fato.

O jovem de hoje talvez esteja muito mais impregnado com toda essa ideia que veio a partir das Jornadas de Junho, que se estendeu para todo mundo hoje, de esquerda, direita; de azul, vermelho; de PSDB, PT, enfim. As questões eram outras, tinha uma coisa de o direito de ser quem é, de poder falar o que pensa, de poder sair como quiser, de poder existir mesmo. Que um conquista, que eu vejo no Brasil de hoje, aos trancos e barrancos, todas as tentativas de retrocesso que a gente acompanha, mas eu acredito que a gente veja mais. Eu vejo as pessoas dentro das possibilidades de existir do jeito que elas são, porque a luta se intensificou e o grito também é maior.

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E isso talvez tenha começado lá atrás, dessa coisa de "eu não vou ter vergonha de usar o que eu quero", era um feminismo sem dizer, uma luta contra a homofobia sem dizer, uma luta contra o racismo sem dizer, mas eram essas as lutas, colocadas sem essas nomenclaturas, mas estavam todas unidas ali, sabe? Era uma coisa meio sem nome. Mas que eu acho que implica nisso tudo, em todo mundo que é hoje e que vivenciou aquilo. Eu olho para você e penso nisso, sabe. É fruto daquilo sem ter isso dito de forma tão explicita quanto a gente fala hoje. Hoje a gente fala em racismo, homofobia, feminismo e política. A gente deu nome pras coisas. Naquela época as coisas não tinham esse nome, embora elas existissem, num campo mais filosófico, literário.

Foi loucura botar um álbum na rua naquela época?
Na verdade eu conheço o Rafa [Ramos, da gravadora Deckdisc] desde adolescente, da época do hardcore. Ele tocou bateria em várias bandas de hardcore, no Jason, que é uma banda do Rio, e o Panço, que era guitarrista do Jason, tinha um selo. Mas o Panço lançou o primeiro EP do Inkoma. E foi aí que eu conheci o Rafa. Eles iam direto para Salvador tocar e as nossas bandas tocavam juntas. Era um circuito de hardcore e todas as bandas tocavam sempre no mesmo rolê. E por acaso ele é filho do cara que tinha uma gravadora e ele começou a crescer e a ter ideias. "Acho que posso trazer algumas coisas para lançar aqui, pai, e aí?".

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Lembro que ele me ligou e falou assim: "E aí, cadê? Você tá tocando, o que tá fazendo da vida?". Eu tinha acabado o Inkoma, estava fazendo facul de música, trabalhando em loja e compondo ao mesmo tempo no meu quartinho lá, com meu violão velho. Eu falei: "Man, tá caótico, mas eu tenho umas músicas aqui". "Manda", ele disse. Eu mandei. "Porra, mostrei pro meu pai e é isso, vambora, vamos fazer esse disco." Achei que era pegadinha, toda cachorro machucado. E foi.

Fotos: Kel Lima/VICE Brasil

Começamos a conversar sobre isso, mas foi através do Rafa. Ele era a cabeça jovem que estava buscando coisa nova. Nada foi do nada. Até conseguir levar os meninos pra lá, eles ficaram escondidos comigo no apê da Deck, porque não podia ter mais gasto. Eu contrabandiei a banda inteira. Não queria ficar sozinha lá e tinha feito até testes com outros músicos no Rio, e eu pensava: "Gente, não, essa banda tem que ser a galera de Salvador, tá estranho, tá esquisito."

E também eu me senti acolhida porque eram os meus amigos de longa data. Pessoas da cena. Gente que partilhou comigo o underground durante muitos anos e que fazia todo o sentido nesse momento estar cercada por essas pessoas – e algumas delas estão até hoje.

E foi o álbum de rock mais vendido de 2003.
Gente, eu peguei a rebarba, o fundo do tacho desse negócio de vender disco. Raspei o tacho e saí correndo, depois não tinha nem mais disco pra vender. Não se vende mais disco né, que louco.

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O consumo de música mudou.
Sim. Já era previsto. Não acredito no desaparecimento. Ela muda de formato, ela muda de acesso, de tudo. Agora vocês podem esperar a volta do K7, o bicho vai pegar. Vai rolar o " (Des)Concerto Ao Vivo" em K7 e tem um outro projeto que eu estou fazendo com umas minas e vai sair em K7 também.

Isso é muito doido porque a galera voltou a ouvir vinil, por exemplo. Ano passado, a maior venda de mídia física foi o vinil. Tem muito a ver com o lance de geração, cara. Tem muito a ver com o tipo de segmento. Galera que ouve emo trap está muito mais ligada no streaming do que qualquer outra coisa.

Você curte essa coisa de datas?
Eu curto. Na real, eu tentei fazer uma festa de 15 anos porque você botou a pilha. [Pitty só se ligou dos 15 anos do disco quando entrei em contato.]

Fotos: Kel Lima/VICE Brasil

Como foi crescer com essa geração durante esses 15 anos?
Maravilhoso. Quando lancei o Chip Novo eu tinha 24 anos, 26, 24, sou péssima com números. Acho que eu tinha 24 e tinha fã muito jovens, tipo você com 11, tinha uma galera assim e eu ficava meio sem entender, saca? Como assim essa galera curte o meu som, cara? Tô falando de livros que eles não leram, eu tô falando de referências, de coisas que eles não estão ligados. Como assim? Eu ficava muito intrigada, na verdade. Isso, às vezes, gerava um conflito de comunicação mesmo, porque eu falava uma coisa e a galera não pegava porque não tinha como e faltava em mim uma sagacidade de compreender qual era o link exatamente. Por isso hoje isso me interessa tanto.

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Teve uma fase oba-oba gigante, que eu acho que deu uma estouradona que aí misturou geral, popularizou prum nível de pessoas que você menos espera que conheça seu som, sei lá, recepcionista, dentista do teu pai. E também a galera do rock, teve essa misturada que dá uma bagunçada na cabeça do tipo: peraí, será que essas pessoas estão entendendo o que estou falando? Será que eu estou comunicando? Será que eu tenho que me preocupar com isso? Será que então não é só melhor fazer o que eu tenho que fazer e parar de ficar problematizando se qualquer coisa está sendo compreendida? Mas isso me importava muito porque eu tinha um medo de esvaziamento da parada, sabe? De perder o sentido e virar uma coisa estética, eu tinha muito medo.

"Era um feminismo sem dizer, uma luta contra a homofobia sem dizer, uma luta contra o racismo sem dizer, mas eram essas as lutas, colocadas sem essas nomenclaturas."

Depois isso foi mudando. A medida em que o público foi crescendo, nesses 15 anos o que eu vejo é isso, chegou num lugar que pra mim é de muito orgulho, porque quem está junto até hoje, a galera que cresceu e entende as referências que a vida mudou, porém ainda se conecta, acho que conexão é a palavra. E tem a galera do oba-oba que vai embora mesmo, que a galera do oba-oba cada verão curte uma coisa. Esse verão é roqueiro, no verão que vem é…

Tudo bem, faz parte do ciclo. Mas eu pensava muito mais em qualidade do que em quantidade de gente, eu sabia que a quantidade ia mudar, interessava a qualidade de quem fica. Isso hoje me dá muito orgulho, porque eu dialogo hoje, através das redes e pessoalmente nos shows, com os fã-clubes, dialogo com uma galera de 15 anos atrás. Que hoje tem 30 e ia no show com 15. Isso pra mim é demais, porque a gente foi junto. Porque continuou fazendo sentido. Outros ficaram no pelo caminho, mas esses eu olho e falo: "Puts, tem um negócio aí". Eu respeito muito isso, isso tem muito valor pra mim. Essa relação de longevidade e entendimento.

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O jovem de 15 anos hoje é o seu público?
Não muito, acho que a galera de 15 está ligada em outras paradas assim. E é pra ser assim, sabe? Mas hoje, quando eu olho, vejo uma diversidade muito grande. Vejo de 18 a 50, 60, de verdade. E acho isso legal. Nunca me preocupei muito em manter uma coisa. Eu só me preocupava em não esvaziar, em não deixar de fazer sentido. E é muito fácil, quando você faz parte dessa indústria, quando você faz parte dessa cena. É muito fácil seguir o caminho mais prático. Depende muito de quem te cerca também. Minha preocupação era sempre manter a base, o alicerce. Acho que quando a casa está num alicerce bom, ela fica. Pode vir o vento que for. O temporal que for.

"Equalize" era composição sua, sobre um segredo seu. Agora descobri que era sobre sexo.
Aquele clipe teve milhões de edições. O primeiro corte daquele clipe tinha uma cena que propus, que era simular uma masturbação feminina, que sempre foi um tabu também. Foi uma tentativa de mostrar uma imagem que não se mostra. E teve mil cortes, mil coisas e, cara, isso não vai ser entendido desse jeito, porque no final das contas você tem que se comunicar, não importa você criar um negócio na sua cabeça e não entender o mecanismo de comunicação daquilo, sacou.

Uma ideia que está só para você, ela é só para você, é uma coisa nanista. Tem essa onda do coletivo, de tentar entender como essa onda bate no coletivo sem você perder a sua qualidade, é muito louco. Mas "Equalize" tinha isso. E eu tinha muito pudor dela. Porque na minha vivência, do hardcore principalmente, falar de amor é uma coisa muito brega, cafona, nossos assuntos eram outros, sabe. Pintou essa música e o que eu ia fazer? E ela era linda. E eu neguei ela durante muito tempo, ela não estava nem no repertório. Tinha muito pudor: "Não, não, essa música não, porque vão interpretar errado, sei lá". Teve uma hora que eu relaxei.

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Isso se deve muito ao Rafa, porque ele me deu a segurança e falou: "Cara, essa música é linda, velho, as pessoas piram, as pessoas sentem um negócio, sacou. Relaxa, põe a música no mundo e para de subestimar o que as pessoas têm que sentir em relação aquilo".

Foto: Kel Lima/VICE Brasil

E aí, pra mim foi libertador, porque em relação a muitas outras músicas depois eu fiquei nisso: "Boto ela aqui, mas como cada um vai absorver não está na minha mão". É uma coisa de você delegar o poder e o controle. Com "Equalize" foi muito isso e eu briguei com ela durante muito tempo. Inclusive, aquela coisa de gravadora:

– Equalize vai ser o primeiro single do disco.
– O QUÊ? Nem fudendo, rescinde meu contrato agora, não vai!
– Ah vai, porque é a música que vai melhor tocar na rádio.
– Foda-se. Jamais. Eu não posso.

Isso eu tinha consciência e falava: "Eu não posso apresentar esse disco através de 'Equalize'. Porque 'Equalize' não é o que resume o disco, ela é uma excessão, ela não é a regra. É um capítulo a parte. Eu não posso mostrar o livro por esse capítulo". Esse dilema durou.

– Ah, então é "Teto de Vidro" o single.
– Não também. O single é "Máscara".
– Mas essa música tem cinco minutos, parte em inglês, guitarra para caralho, vai tocar em lugar nenhum essa merda.

Vamos bancar isso aí. Eu não tinha nada a perder também. Falei, vâmo aí, vamos nessa. E foi. Eu senti que isso ia ser uma comunicação errada. Você imagine, se a primeira música que você conhecesse do disco fosse "Equalize" e não "Máscara"?

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Como foi resgatar o seu diário e transformar isso em música?
Tive que apelar pra poesia e para um pouco de: tudo bem ficar pelado aqui. Porque quando você se bota nas letras, nas matérias, quando você se bota no que faz, você está pelado, não na situação, emocionalmente. De aceitar isso, sabe.

Diário sempre foi algo muito importante para mim. Acho que todo mundo devia ter a oportunidade de parar em algum momento do dia e escrever sobre o que sente, ou falar. Cada um com o seu método. Mas é uma espécie de terapia, a gente se escutar, se ouvir. Depois de muito tempo, quando eu peguei as coisas que escrevi, falei: "Gente, mas eu sentia isso, eu pensava isso? Caramba". Você se conhece um pouco mais.

Eu sempre tive diário, desde muito cedo. Tinha umas agendas cheias de papel de balas, [bilhete de] cinema que fui com o boy. E teve um dia que eu fiquei muito revoltada e falei: "Eu preciso apagar o meu passado e tudo isso não vale nada, importante é agora e o futuro" e queimei tudo. Queimei lá no Estúdio de Duda, no Madeira. Entre os ensaios do Chip Novo. Fiz uma fogueira com todos os diários antigos, queimei tudo. Me arrependi um pouquinho, mas tudo bem. E comecei de novo, comecei de sempre chegar no fim do dia e ter uma espécie de meditação também, na verdade. Escrever pra mim funcionava muito, e continua funcionando. O que me aconteceu? Como é que eu me senti, como é que eu entendi isso?

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Eu tenho caderno espalhado por tudo quanto é canto e eu encontrei um caderno da época da gravidez. Quando eu descobri que ia ter que ir pro hospital, eu comecei a ler e é tão louco você olhar o que você sentia num momento de uma coisa decisiva, por exemplo. Você olha para trás e fica tudo depois tão mais simples, facilita tanto. A gente sofre tanto por nada. Nossa, muito doido. E os diários tinham meio essa função, de autoconhecimento. Eu acho isso massa, até hoje. Às vezes eu penso, porra, fiquei o dia todo na correria e esqueci de escrever, faz falta. Acho que quando a gente olhar lá pra frente, a gente vai ver quem a gente era nesse momento. ver o que a gente sentia. Esse regaste. No Chip Novo foi muito importante pensar e olhar um pouco de fora esse sentimento personificado.

Foto: Kel Lima/VICE Brasil

Hoje vai entrar no papel também? Porque estamos fazendo um resgate.
Totalmente. Não sei, hoje eu não tenho mais regra. Antigamente era uma coisa meio religiosa, eu tenho que chegar em casa, tenho que contar sobre o meu dia, era um compromisso. Hoje em dia não é tanto. Hoje é bem mais solto, não posso falar sobre, mas tem outras coisas. O tempo é muito importante. A vida adulta é muito chata, é muito difícil. Você não tem dinheiro para porra nenhuma, só trabalha para pagar conta, caralho.

Só que adolescência é uma completa desordem. Eu não desmereço também, eu entendo a galera. Estive nesse lugar. É uma desordem completa, a gente não sabe porra nenhuma, é uma crise de identidade absurda, quem eu sou nesse mundo e essas pessoas, como é que eu abro? Adolescência é uma desordem.

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No VMB de 2003 você só cantou "Máscara". Foi indicada mas não levou.
A gente perdeu o prêmio de Revelação.

Em compensação, no ano seguinte você levou Escolha da Audiência, o principal prêmio da noite. Como foi?
Foi ótimo, pra que Revelação? Não, foi incrível. Foi um ano muito intenso, um ano de muita construção mesmo, de carreira, planejamento, de tudo, de muito show. Eu lembro que nesse ano, cara, eu fiz uns 328 [shows], sei lá. Quantos dias tem o ano?

365.
Pronto. Devo ter feito isso. Foi uma relação louca, no nível de entra na van e vai. Não era glamour. Não era hotel cinco estrelas, uau. Está super divulgando, super temos que construir o público, temos que ralar, vamos pra estrada. Um ano de muito trampo. Foi um trabalho que, acho, recompensado. Não acho que foi do nada e com paciência. O que eu te falei, coisas com alicerce vêm melhor.

Foto: Kel Lima/VICE Brasil

Você bateu o recorde de mais prêmios do VMB, 16 ao todo.
Já me disseram isso aí.

Onde estão?
Lá em casa, espalhados, em todo canto. Representa uma conquista de uma época, mas também não tenho um grande romantismo em relação a isso. Penso muito no agora.

Não temos mais a MTV.
É, outras formas de comunicação.

Quem cumpre esse papel agora?
As redes. Hoje a gente não depende tanto da mídia tradicional, existem outras formas de se comunicar. Está tudo mais pulverizado, mas também mais segmentado. Você não tem mais só um canal que te despeja aquela programação, você tem várias opções. Você não se filia a um canal, tem vários canais. Por um lado isso é bom por outro você tem uns revés naturais da parada. Mas eu não acho que nada é melhor ou pior, acho que é o que é. Agora é assim? Então, vamos lá, lidar com o que é, saca?

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Não tenho nostalgia nenhuma. Eu achava foda essa coisa do VMB, valorizava muito os profissionais que fazem videoclipe. Isso é um lance massa, porque quem faz videoclipe, sempre fez porque curte, nunca por grana, clipe nunca deu dinheiro. Então, direção de arte, fotografia, categorias técnicas eram muito importantes pros profissionais que faziam isso. Era um momento de visibilidade do trabalho deles, essa era uma diferença grande, põe crédito ali. Ter um prêmio de direção de arte, você imagina o que era isso para um profissional? Era tipo melhor jornalista, valoriza muito o trabalho da pessoa.

Mas a gente tem outros prêmios, estava me lembrando do Women's Music Awards, que é um prêmio que tem empreendedora do ano, do caralho também, quem ganhou no ano passado foi a Eliane Dias, por exemplo. Esse ano vai ter de novo. As coisas vão mudando, o importante é a gente poder ter essa oportunidade de ter os trabalhos sendo valorizados, como tinha na época do VMB, antes de virar só o gatinha do ano. Porque depois ficou um pouco isso, essa é a real. Mas houve uma época que tinha uma coisa voltada pra música. Que eu acho que a gente pegou a raspa do tacho. Depois ficou muito reality show. Já não interessa mais pra mim. Mas quando você tem essas premiações que valorizam o trabalho das pessoas que fazem arte, porra, muito massa.

"Deixa ele lá que é o lugar dele. Ta aí, debutando, daqui a pouco já pode beber, pode ser preso. Ele tem o lugar dele e eu continuo tocando essas músicas no show com muito prazer e com muito significado".

Perguntei para outras mulheres que não cresceram como seu público e muitas comentaram que se interessaram pelo discurso e depois foram ouvir seu som.
Mulheres de agora? Que se ligaram de outra coisa que não foi necessariamente o som? Saquei. Possível. Acho que pode ser uma introdução até melhor do que através de uma crítica, de um veículo ou qualquer outra coisa, porque vem de outro lugar, vem da coisa da ideia e entendimento de ideia é um bonde muito poderoso, é uma cola muito poderosa. Acho massa.

E mulheres que eram o seu público comentaram que se identificavam com você. Tinha percepção dessa identidade?
Sim. Era legal, porque minha relação com o feminino sempre foi muito conflituosa na verdade, muito difícil, tive que construir essa relação. Quem me vê falando hoje, sobre feminismo, sobre relação com o feminino talvez não saiba mas a minha relação foi construída. E aí, bebê, entra até Freud, porque envolve mãe e o caralho a quatro. Mas minha relação com o feminino foi conquistada, não veio de graça. Não mesmo.

Foto: Kel Lima/VICE Brasil

Hoje você é mãe. Como é criar uma menina, uma criança nessa composição de mundo?
Cara, sem muita noia. De forma natural, sem tabu. E criando uma pessoa livre para ser o que ela quiser. E tentando dar a oportunidade para ela para que ela faça isso. Para que ela possa ter escolha. Nem sempre as pessoas podem ter escolhas. Você poder dar ao seu filho o direito de escolher é muito importante. Acho que isso. Eu deixo ela ser o que ela quiser. Brincar com o que ela quiser, falar o que ela quiser. Não crio ela sendo menina nem sendo nada, eu crio ela para ser uma pessoa livre. Em determinado momento ela vai ter que lidar com essa questão de gênero, com essa questão de raça, social. Ela vai ter que lidar porque o mundo é feito disso. Mas agora, nessa fase, ela ainda não tem que lidar com isso, então eu crio uma pessoa que possa se expressar.

Quer que ela chegue ao Admirável Chip Novo sozinha, ou você vai mostrar pra ela?
Rapaz, eu nunca pensei nisso. Nunca pensei nisso. Eu acho que eu vou deixar ela chegar, sabia? Porque quando a gente mostra é diferente. Vou deixar ela chegar. Caralho. Como vai ser quando Madalena ouvir isso? Gente, que louco. Na época que eu escrevi eu nunca pensei que ia ter outra pessoa escutando. Nunca pensei nisso. Nossa, obrigada, você me trouxe uma questão que eu vou ficar pensando.

Foto: Kel Lima/VICE Brasil

Ainda põe Admirável Chip Novo para tocar?
Eu escuto quando toca. Quando está passando, mas pra mim, eu mudei muito e eu já gravaria totalmente diferente, então não gosto de ficar escutando porque fico pensando tudo o que eu faria diferente. Eu sou muito perfeccionista e chata nesse sentido, sempre acho que pode ser melhor.

Era o melhor que eu poderia ter feito naquele momento. E é o que temos. Deixa ele lá que é o lugar dele. Ta aí, debutando, daqui a pouco já pode beber, pode ser preso. Ele tem o lugar dele e eu continuo tocando essas músicas no show com muito prazer e com muito significado porque fui buscando reinventar essas músicas ao longo desse tempo todo. E hoje em dia nos show elas têm outro arranjo, mas elas são aquelas músicas. Mas eu fui respeitando também o tempo de vida dessas músicas, não querendo que elas sejam a mesma coisa, porque eu não sou aquela pessoa. Mas ao mesmo tempo respeitando a resistência e a história daquela composição, tentando encontrar esse equilíbrio. No show até hoje eu encerro com "Máscara". É isso, é de volta ao começo.

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