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Música

Dissecando a Loucura: O Scarface Fala Sobre a sua Biografia, ‘Diary of a Madman’

São 240 páginas em que o ex-frontman do Geto Boys diz tudo da sua impressionante carreira no rap e suas estadias em hospitais psiquiátricos.

Todas as fotos são uma cortesia do William Morrow/Impressões do HarperCollinsPublishers

São nove da noite no Brooklyn e o Scarface está explicando para o Eric B. – da venerada dupla de rap Eric B. & Rakim – como chegar no Dumbo, em Nova York.

“Estamos aqui na 37, bróder”, ele berra no seu headphone com bluetooth, vestindo um moletom com capuz escrito “Brooklyn” na altura do peito. “Aqui não é que nem o centro do Brooklyn!”

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Entre uma ligação e outra, o Face me conta sobre sua biografia, Diary of a Madman, livro que acaba de lançar e que entra na pequena lista de rappers que decidem contar sua vida. Quando o Eric B. aparece alguns minutos depois, usando um casaco listrado e um sapato de couro bem capenga, ele abraça o Face, que proclama com a alegria de um fã desde criança: “Eu te amo Eric, você é meu chapa!”

É uma noite de celebrações carinhosas para o Face, que acabava de promover o lançamento do livro na Powerhouse Arena, em Nova York, para uma multidão de fãs eufóricos – alguns esperaram até uma hora para conhecer o icônico MC, pegar um autógrafo e tirar uma selfie. No fim da noite, ele está sentado em uma mesa redonda no segundo andar da livraria, falando sobre a obra e a vida louca que o inspirou. Ele parece, acima de tudo, aliviado.

Continua abaixo.

Face, nascido e criado em Houston, finalmente teve tempo para respirar depois de uma carreira hiperativa que o fez quebrar barreiras no hip-hop sulista enquanto ganhava fãs no rap pelos Estados Unidos. Entre os parceiros do poeta cerebral das ruas estavam Jay Z, Nas, e um jovem Kanye West. Ele também foi um dos poucos artistas a trabalhar tanto com o B.I.G como com o 2Pac, um testamento ao seu inegável talento que está marcado por histórias visuais entorpecentes e uma voz imperdível e áspera como o asfalto.

Agora com 44 anos de idade, 11 álbuns solo e sete com os Geto Boys, Face é sem dúvida “o rapper favorito do seu rapper favorito”. Faz sentido essa ser a citação principal no verso do seu novo livro.

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Em alguns aspectos, Madman, obra que Scarface co-escreveu com o jornalista Benjamin Meadows-Ingram, é a história de um herói desconhecido que vendeu milhares de discos e inspirou muitos dos mais renomados compositores de hip-hop, e ainda conseguiu fazer um nome. Também é uma visão sincera da mente do "madman" e de um passado assombroso. Em 240 páginas, Face relata suas viagens durante a infância até a ala psiquiátrica, as tentativas de suicídios, os tiroteiros na cidade pequena em que morava e a dor de se despedir dos amigos que partiram cedo demais.

“Ele trouxe à tona umas paradas que eu queria muito enterrar”, diz Face sobre trabalhar com o Meadows-Ingram para desenterrar suas memórias mais dolorosas. “Tive que descomprimir depois de falar com ele, porque ele estava irredutível quanto a conseguir essas histórias. E foi tudo em prol do livro e a forma como foi escrito, mas puta merda, ele foi fundo.”

Durante todo o lançamento, Face tirou sarro do Meadows-Ingram por causa de sua insistência, até o chamou de “demônio” em algumas ocasiões, sugerindo que o escritor com aquela voz calminha frequentemente tenha ido longe demais até conseguir se contentar.

Meadows-Ingram, ex-editor da Vibe e da Billboard, cresceu ouvindo o Face e sempre admirou sua influência na música para além do sul do Texas. Quando começou a trabalhar no Madman, Meadows-Ingram diz que tentou deixar sua abordagem jornalística de lado para contar a história deste herói do jeito que ele queria.

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“Para conseguir contar uma boa história, é preciso fazer as perguntas difíceis”, o Meadows-Ingram disse durante uma entrevista em conjunto com o Face. “É obviamente uma relação diferente quando se trata de alguém da mídia, é um pouco mais antagônico. E aqui, eu queria fazer as perguntas difíceis, mas é a história dele. Quando você é jornalista, está em busca de uma história maior. Com isso, estávamos colaborando de verdade.”

A colaboração entre os dois, feita surpreendentemente por meio de longas entrevistas pelo telefone, foi fluida em sua maior parte. Ainda assim, Face admite que foi sofrido se abrir e colocar para fora seus demônios, por medo de como ele seria interpretado.

“Tem umas merdas que eu não quero ouvir, umas merdas que não queria ver escritas naquele livro”, diz. Mesmo agora, com o Madman nas livrarias e recebendo críticas positivas, o rapper tem dificuldade de encarar o passado. “Não quero nem ler esse livro porque eu sei: neste livro está aquela vida.”

A vida a qual Face se refere é repleta de pontos altos fantásticos e pontos baixos trágicos, apimentadas com uso abusivo de drogas, criatividade prolífica e oportunidades perdidas, tudo em prol de uma carreira na música que se iniciou em 1991 e continua até hoje graças a colaborações com Rick Ross e The Game. Com a sua carreira no rap como o foco central do livro, Scarface disse que biografias de hip-hop – as quais Ja Rule, LL Cool J e o Common exploraram recentemente – são importantes porque dão aos fãs uma “visão íntima da vida de um artista.”

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“Quando você ouve minhas músicas, se sente de um jeito, mas ao ler o que escrevi…”, Face diz, “isso faz com que a gente fique um pouco mais íntimo”. E o Meadows-Ingram concorda. “Este é um livro que deveria mesmo existir, e acho que isso provavelmente é verdade para muitos artistas.”

Porém, mesmo com a transparência íntima presente no Diary of a Madman, o livro ainda tem algumas omissões evidentes, por exemplo quando Face fala superficialmente sobre sua relação com sua ex-mulher e seus filhos. A decisão de deixar essa parte da saga do artista meio vaga, os autores disseram, foi de propósito.

“A intenção era tocar no assunto de forma rápida”, comenta Face sobre sua vida de casado. “Todos nós sabemos que eu mandei mal como pai. Vou ser um avô muito melhor do que fui como pai, e é assim que prefiro deixar esse assunto. Vou melhorar. Mas sempre digo que a música controlou a minha vida totalmente. A música me fudeu. Entreguei minha vida à ela.”

“Nós tivemos essa conversa”, disse o Meadows-Ingram, que compreendeu o fato de Scarface ficar apreensivo no começo, e estava ansioso para focar na história do rapper em vez de em suas relações fracassadas. “Ele ficava tipo, ‘olha, nós falamos sobre aquela parada, mas precisamos tirá-la de cena’. E saca, não vou brigar para manter nada.”

No entanto, uma narrativa que vem à tona no livro é a parceria complexa do Face com James Prince, o rapper sulista que também é empresário e fundador da Rap-A-Lot Records de Houston. Apesar de ter descoberto o rapper no fim de sua adolescência e ter dado a ele a oportunidade de se tornar um artista profissional, Prince, durante toda a longa carreira do Face, se tornou uma espécie de detentor, tirando a máxima vantagem de uma amizade que em grande parte foi unilateral. Em uma seção do Madman, Face fala sobre quando perguntava aos representantes da Rap-A-Lot sobre os royalties de um de seus diversos discos de platina, e o pediam para assinar um outro contrato de extensão em troca do dinheiro que já era dele por direito. Em um outro momento, ele lembra de perseguir os funcionários da label para conseguir uma cópia do seu contrato e ouvir que de alguma forma ele devia dinheiro para a gravadora em meio ao seu sucesso global.

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O próprio Prince agora está, obviamente, em meio a um problema parecido com uma gravadora, embora de uma natureza totalmente diferente. O filho de James, Jas Prince, descobriu o Drake, que pode estar ativamente tentando optar por sair do seu contrato depois de não ter sido pago por seus royalties. Apesar do Face alegar que não sabe de nada sobre a situação do Drake, ele diz que a indústria de música é um antro de abuso, vindo até mesmo das pessoas mais próximas.

“É um negócio repleto de cobras, cara”, diz, lembrando que mesmo quando um contrato alega que o pagamento do artista será baseado nas vendas, os números podem ser reavaliados em caso de sucesso inesperado – tipo, vamos supor, como foi o caso com seus discos de platina distribuídos pela Rap-A-Lot. Como ele menciona no livro, a única vez que Face acredita ter valido de alguma coisa na indústria de música foi quando fez o The Fix, seu único disco lançado pela Def Jam.

“Legalmente falando pode estar certo, mas moralmente está totalmente errado”, diz. “Não queremos ir até lá praticar e pregar nossa lealdade uns aos outros se ninguém é leal quando o assunto é ser devidamente pago. Isso não se trata de alguém específico, mas sim das gravadoras e ponto final. Se fizemos algo juntos, deveríamos aproveitar juntos, certo?”

No livro, Face fala sobre como se sentiu preso à Rap-A-Lot durante grande parte da sua carreira nas gravadoras, mas hoje em dia ele mantém um “grande amor e respeito [por James Prince].”

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Essa dicotomia – saber que algo não deu certo, mas se manter otimista em desafio a este fato – está presente no Diary of a Madman, e quando se chega ao fim do livro é difícil imaginar que alguém que passou por tanta coisa ainda consegue encontrar paz consigo mesmo. Face disse que a verdadeira conclusão do livro o ajudou, de várias formas, a lidar melhor com seu passado e olhar para o futuro com um novo propósito.

“Toda essa merda que rolou, é como se fosse o peso do mundo sobre os meus ombros”, diz, acalorado. “E isso passou. Essa bola de energia de estar puto, desapontado e não ser capaz de falar com alguém sobre o assunto, isso passou, porque eu falei… E isso te livra dos nódulos das costas e da dor de cabeça.”

Ao longo da noite, Face menciona a ideia de que agora ele está vivendo sua terceira vida. As duas primeiras, que estão documentadas no livro, passaram tão depressa – e foram embaçadas por uma enorme quantidade de fumaça de maconha de quando ele se autodenominava “hippie” no final dos anos 90 – que ele se sente sortudo de ter passado por tudo isso. Em sua nova existência, ele planeja encontrar uma pausa e dar atenção para todas as coisas que ele perdeu nos dois primeiros rounds.

Ele pausa por um instante e cobre o rosto com as mãos. Imagino que está pensando sobre as segundas ou terceiras chances que teve, e agora com esses anos nas costas, está claro que esta lenda do Texas – um homem que comoveu tanta gente com sua verdade transparente – finalmente se tornou livre do “madman” que ele costumava ser.

“Não sei o que tem de tão decepcionante em estar vivo”, ele me diz, “mas vou dizer que quanto mais estou vivo, mais curto estar aqui. Realmente acredito que Deus me poupou, e sou grato por isso. Imagina se eu tivesse morrido quando tinha sete, 12 anos de idade.”

E o Meadows-Ingram concorda: “O mundo seria muito pior.”

Dan Buyanovsky é jornalista e mora no Brooklyn. Siga-o no Twitter.

Tradução: Stefania Cannone