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Música

Giga Bye: Em 2014, Perdemos o iPod Classic e Nosso Jeito de Ouvir Música Mudou para Sempre

Enquanto a Apple jogava o iPhone 6 e o Apple Watch na mão do público, sem estardalhaço, tirava de linha o modelo de 160GB do iPod Classic.

Foto via Amazon

Em setembro, enquanto a Apple jogava seus dois produtos mais recentes – o iPhone 6 e o Apple Watch, que teve uma recepção meio duvidosa – no colo do público, acólitos de Steve Jobs vasculharam o site oficial da empresa e notaram uma ausência na lista de produtos: o fato é que a Apple, sem estardalhaço, tirara de linha o modelo de 160GB do iPod Classic. O fato se anunciava há algum tempo, com publicações como Stuff Online proclamando que o iPod estaria morto ainda este ano e servia apenas como um último recurso para os "acumuladores de música" e poucos mais. Esses acumuladores se recusaram a aceitar a descontinuação do gadget, chocados com o fato de que a maior capacidade de armazenamento disponível para o iPod seria 64GB. Sites responderam com "réquiens", "despedidas" e "RIPs" normalmente reservados para funerais com honras de estado, e não para aparelhos de mp3. O Guardian noticiou que os vendedores da Amazon haviam reagido à diminuição dos estoques do item triplicando seu preço em relação ao valor de varejo original, com toda a inevitabilidade de um item de varejo despreciado se transformando numa raridade de nicho de uma hora para outra. Nos últimos poucos dias, publicações como o Daily Mail o chamaram de "o item mais procurado desse Natal", com os preços em leilões chegando a US$1.000.

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O desaparecimento do iPod Classic foi tratado com uma aflição e um hiperbolismo que revelam o controle de que a Apple desfruta sobre o mercado consumidor, e a lealdade à marca de que a empresa dispõe (colocando as cartas na mesa: estou digitando isso em um iPhone – então: sujo, conheça o mal lavado). Mas, fora a Applemania, a descontinuação na verdade pode ser classificada como o fim de uma era, e um reconhecimento de que os nossos hábitos como ouvintes de música mudaram radicalmente na última década. Por mais que o iPod tenha sempre sido visto como o aparelho que mataria o disco, o iPod Classic, com capacidade de armazenamento suficiente para conter discografias inteiras, era ironicamente a ferramenta do purista dos discos, do historiador da música, do obcecado por manter bibliotecas musicais. Seu fim é parte de uma mudança mais ampla nos hábitos de audição, na direção de uma configuração de imediatez e rotatividade constante.

Em 2001, quando o iPod surgiu, a ideia de mídia portátil era um novo conceito para muitos consumidores. Tocadores de CD capazes de ler discos de mp3 já haviam sido criados, e outras empresas já vinham vendendo mp3 players há vários anos. Contudo, o iPod chegou para mudar o jogo, alavancando o poder de mercado da Apple para solidificar as capacidades de armazenamento do projeto: "1.000 músicas no seu bolso", proclamavam as propagandas do modelo básico de 5GB, seu status de luxo enfatizado pela imagem de 50 Cent usando o aparelho, cercado por mulheres lindas em uma mansão, no clipe de "P.I.M.P.". Quando o iPod Classic chegou, em 2007, esse armazenamento foi visto com ainda mais apreensão: o iPod estava matando o disco com sua capacidade de conter mais do que o equivalente a um disco e sua função de shuffle – pouco importa que os CD e Minidisc players tivessem essas capacidades há anos.

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O argumento era de que o iPod era em grande parte responsável pela dispersão dos discos em singles e banquetes estilo ouça-o-que-quiser. A cultura havia mudado a ponto de que a era do disco desaparecera, substituída por uma rápida proliferação das maravilhas do download de uma música só. "Acho que o disco vai morrer", o consultor de mídia Aram Sinnreich disse ao New York Times em 2007, acrescentando: "os consumidores que têm iPods desde a época em que o armazenamento ainda estava na casa de um só dígito vão cada vez mais gravitar na direção dos artistas que adotam [playlists]".

Hoje em dia, o argumento da Morte do Disco, claro, foi na direção da gratificação quase imediata oferecida pelos serviços de streaming. Se é que alguma coisa, o iPod virou um dos últimos meios tradicionais para o disco. Will Dunn, editor da Stuff Online mencionada acima, observou que o iPod Classic oferecia uma "experiência de audição de música livre de distrações", não havendo nele anúncios oferecendo assinaturas, e dados, e cobranças por serviços, tornando muito mais fácil ouvir músicas num esquema disco-a-disco, de acordo com o Guardian.

Na mesma velocidade em que o iPod inaugurou uma era em que podíamos carregar por aí coleções inteiras de discos quando quiséssemos, ele se tornou antiquado, e nossos hábitos mudaram de acordo. Com o smartphone veio a capacidade de levar no bolso um mundo inteiro de música digital – um arquivo praticamente infinito – através de serviços de streaming baseados em nuvens, mudando nosso jeito de curtir a música no cotidiano. Mas essa transformação significa que novos fatores controlam a nossa experiência do consumo da música, como, por exemplo, o que está realmente disponível. A atual treta entre Taylor Swift e o Spotify, por exemplo, é um golpe naquele lance de "1.000 músicas no seu bolso", já que nem tudo o que você quer ouvir está ao alcance dos dedos. Nós atualizamos constantemente os discos armazenados em nossos aparelhos, e procuramos músicas com base na imediatez. Nossas capacidades de atenção não mais se estendem a ponto de termos aparelhos diferentes para diferentes propósitos, o que extinguiu o mercado de mp3 players quase da noite para o dia. Com os smartphones, enxaguamos e repetimos o procedimento várias vezes; o conceito de opção do consumidor não é mais válido, porque qualquer coisa menos do que tudo é inconveniência demais.

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O desaparecimento silencioso do iPod dos modos de consumo de música ainda não foi abordado em termos musicais. Para início de conversa, ainda é muito cedo; talvez vire um ponto de interesse quando o mp3 player se tornar um veículo da nostalgia, assim como os cassetes foram em 2014. De qualquer modo, ser fã de música implica em dar prioridade ao novo em detrimento do velho – tomar consciência dos mundos hiperacelerados e tendentes à perda de memórias da música e da tecnologia parece um desafio dos diabos. Este ano, houve consolo em chamar atenção para as antigas utopias da tecnologia e da música, desde os fantasmas do vídeogame de Fatima Al Qadiri até o single e clipe "90s Music" de Kimbra, do retorno da visão de mundo profundamente mutilada do Aphex Twin até unidades quase incestuosas de líderes de ranking do pop house recauchutados na Inglaterra.

Recentemente, me peguei revisitando dois discos muito diferentes, que definem a música pesada deste ano pesado de maneiras muito diferentes, embora ambos se concentrem na rapidez com que a nossa cultura acelera pelos avanços e impulsos tecnológicos: The Future's Void, da EMA, e The Mother of Virtues, do Pyrrhon. No primeiro vemos Erika M. Anderson fervilhando, vazando e gritando por paisagens reznorescas e golpeando guitarras, mas é um disco que não deixa de ser estranhamente acessível, graças ao dom de Anderson para criar melodias astutas. Virtues, o segundo disco da banda nova-iorquina de death metal progressivo, é um negócio ríspido e denteado, com uma atitude desconcertante nos riffs e no rugido rasgado do vocalista Doug Moore.

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The Future's Void é principalmente a respeito da posição flutuante em que hoje em dia se encontram a privacidade e a capacidade de agir. Como Anderson observou numa entrevista à The Quietus em março, "tinha dia em que o que mais me preocupava era não ter tantas curtidas no Facebook quanto outro músico". O disco está cheio de uma versão modificada dessa preocupação moderna, abrindo com uma menção aos satélites do Google que vagam pelos céus e terminando com nossa heroína clicando num post de blog sobre uma celebridade morta, porque lá estão os detalhes macabros. Em meio a isso tudo, crianças californianas se sustentam com os royalties de selfies, a história se repete ao forçar um desastroso maquinário "pneumático", e Anderson se imola na supervia da internet enquanto presta homenagem às odisseias cyberpunk de William Gibson. A era digital assusta Anderson, e o medo é palpável.

Ao mesmo tempo, a capa de Future's Void e o clipe de "Satellites" a mostram usando o headset de realidade virtual Oculus Rift, uma das inovações tecnológicas mais creepy do ano. Quando The Verge perguntou o que ela achava do headset de realidade virtual, foi isso o que teve a dizer: "o futuro parece um apartamento escroto com lixo espalhado por todo canto e um monte de telas por todo canto, e um Oculus Rift graúdo e desagradável". Ela mantém uma certa distância da vida digital cada vez mais acelerada – essa distância mantém a sanidade, mesmo quando se é obrigado a entrar no mesmo movimento. O dar de ombros é quase audível. Não há muito que ela possa fazer.

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The Mother of Virtues é fascinante de ser ouvindo junto com o disco de Anderson, com seus matizes eletrônicos (tanto em som quanto em perspectiva), funcionando como uma abordagem do mundo bizarro sobre o mesmo assunto. A tecnologia segue seu caminho, substituindo a velha guarda, e modificando as nossas atitudes no processo – ou, como o vocalista Doug Moore diz: "o murmúrio das conversas é remasterizado digitalmente" enquanto a sociedade se perde, olhos vidrados nos smartphones. Não é incomum que o death metal peneire os destroços do nosso mundo, mas normalmente os assuntos não são computadorizados. O momento mais alarmante desse disco não é uma proliferação de imagens sanguinolentas e gratuitas, ou misoginia só por um desejo infantil de chocar, como acontece muitas vezes no gênero (neste ano, a cultura internética hiperacelerada na verdade foi boa para fiscalizar e nos alarmar a respeito da misoginia), mas sim a seguinte letra de "Sleeper Agent": "Reality is wilting around me / and my wetware is drying up". ("A realidade está definhando ao meu redor / e meu wetware está ressecando". Wetware é um termo da ficção científica usado para descrever as funções do cérebro humano em termos de programação de computador, assim como para se referir à ideia de implantar sistemas de computador sob a sua pele. Na medida em que o mundo do software vai ficando mais sofisticado, o nosso wetware – nossos cérebros – parece cada vez mais insubstancial em comparação.

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Francamente, escrever sobre esse tópico pode ser constrangedor. Muitos de nós ainda não encontramos maneira de discutir avanços tecnológicos de um modo que não fique parecendo diálogo de Johnny Mnemonic. Mas a aceleração da tecnologia, o medo de que os computadores estejam substituindo as nossas ideias – os algoritmos do Pandora e do Spotify são assombrosamente bons em prever de quais coisas podemos gostar – são questões intimamente ligadas ao funcionamento do nosso hábito de ouvir música, ao nosso uso desse produto de luxo. O iPod chegou com o potencial de mudar a maneira como reagimos à cultura, e mudou mesmo. Agora ele se foi, bem mais rápido do que imaginávamos, e todas as outras coisas estão andando num ritmo mais rápido também. Se antes a perspectiva de possuir toda uma biblioteca musical em nossos bolsos parecia fantasiosa, hoje fantasiosa é a simples ideia de possuir uma biblioteca musical. A ascensão dos serviços de streaming não precisa significar a morte do disco, assim como a ascensão do iPod não precisou – afinal, a capacidade de armazenamento cresceu muito mais – porém, quanto mais tudo acelera, mais o controle do que está armazenado é tirado de nossas mãos, mais nos deparamos com escolhas infinitas, e menos provável fica que nos importemos com o disco ou com a biblioteca musical.

Não podemos desacelerar, e vale a pena pensar sobre isso.

Daniel Montesinos-Donaghy tem medo da diminuição progressiva da nossa capacidade de atenção, mas não o suficiente para sair do Twitter.

Tradução: Marcio Stockler