É por isto que o Primavera Sound é tão especial
Fotografias por Ágata Xavier

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É por isto que o Primavera Sound é tão especial

Houve muito por ver por inteiro, houve muito por ver com mais atenção, mas mergulhar num Festival como o Primavera Sound é também isso, perder coisas boas ou ceder à distracção boa dos amigos que não vemos há muito.

Nos Ride, a massa sonora sempre esteve ao serviço da canção perfeita. As harmonias vocais sempre foram cintilantes. E se os monumentos esculpidos por Mark Gardener e Andy Bell deram corpo ao shoegazing e criaram numa geração uma legião de fãs devotos, nunca se ficaram apenas por aí. No caminho para um fim abrupto - e que sempre foi muito definitivo - prenunciaram a britpop, mas em bom. Depois desapareceram. A imensa e relativamente invisível horda de seguidores manteve-os sempre naquela prateleira da colecção reservada para mostrar só a quem merece e a influência nas gerações vindouras ficou sempre por creditar devidamente.

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Até agora. 2015. 19 anos depois do fim, 25 depois de "Nowhere", 23 depois de "Going Blank Again" (e de uma VHS comida até ao osso do concerto na Brixton Academy), nada mudou. Nem um grão de intensidade se perdeu. Para praticamente todos os que ali estavam, naquele momento, em frente àquele palco no Parque da Cidade do Porto, o tempo não voltou para trás. nada mais errado. Colmatou-se a lacuna, simplesmente. Não é de saudosismos que esta reunião dos Ride trata, mas antes de fazer justiça a um legado. Esta música não podia estar só em prateleiras de melómanos fervorosos, nem em conversas de armanço ao pingarelho. Não podia ser só a nossa banda da adolescência que poucos conheciam, mas que nunca deixámos de ouvir e nunca vimos ao vivo. Estas canções são hoje o que eram naquele arranque alucinado dos anos 90. Por isso estivemos ali todos de olhos fechados no desvario sónico de "Dreams Burn Down", de braços ao alto logo no arranque com aquele portento piscadélico que é "Leave Them All Behind", de corações cheios com "Vapour Trail" e "Drive Blind", de lágrimas nos olhos com "OX4".

Foxygen

Por isso o Primavera foi, é, tão especial. Em poucos outros festivais - em Portugal seguramente em mais nenhum (nem no irmão mais velho Paredes de Coura…apesar de quase) - se poderia estar a cumprir um sonho de mais de duas décadas ao lado de putos que nem a essas duas décadas chegaram e que não só estão cantar as músicas como estão a pedir a todos os santinhos para que venha a "Polar Bear". Não estão com aquele ar enervante de carneiro-mal-morto-de-quem-se-está-a-marimbar-para-o-mundo a perguntar aos amigos "quem são estes?". Tão pouco têm cartazes de "hugs for free" e o raio que os parta. Não. Estão em delírio a cumprir um sonho que não pode ter mais de meia dúzia de anos, mas que, por isso, não é menos importante que o nosso. Não sei como é que lá chegaram, em que casa de que tio deram com "Nowhere", nem o que lhes despertou a paixão. O que importa é que estavam lá.

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Na realidade, o que importa é que o Primavera Sound, seja no seu berço catalão - mais preenchido, mas também mais passível de dispersão e fisicamente muito mais exigente - ou na sua extensão portuense, é um Festival à parte. O ruído comercial que se acomodou na generalidade destes eventos é aqui diluído pelo bom gosto e, ainda assim, ecletismo dos cartazes. Pela mestria e primor da organização, pela invisibilidade de um trabalho de bastidores sem mácula. É claro que o sol ajuda, que a gastronomia tripeira faz milagres e que a convivência entre gerações que em comum têm "pouco mais" que o gosto à séria pela música é crucial para que tudo flua. Mas também é certo que lá atrás há muita gente boa a fazer por isso. A dar tudo, vá. Lamechices, dirão. Mas lamechices com sentido, porque há muita coisa cravada para sempre na memória. Porque há enchentes históricas no NOS Primavera Sound Porto, 77 mil pessoas nos três dias, e mesmo assim não há queixas. Porque há pais que levam os putos e isso só pode ser bom para o futuro. E, essencialmente, porque só houve concertos muito bons e concertos absolutamente fabulosos.

Na sexta-feira, os Belle & Sebastian montaram no Palco Super Bock o festão da noite, com um "alinhamento de sonho" (expressão inútil no caso dos escoceses, em que qualquer escolha de cantigas é única e sempre imbatível). E os momentos "pele de galinha" do ano estiveram todos lá. Naquele arranque de "Dog on Wheels", na ligação umbilical aos fãs de primeira linha, com a Lara a pintar os lábios a um Stuart Murdoch em topo de forma durante "Lord Anthony", na dança emocionada da pequena multidão (e da Maria Miguel) em palco a acompanhar a perfeição pop de "The Boy With The Arab Strap", nas lágrimas da Sara depois do fim em apoteose com a pujança épica de "Sleep the Clock Around"… Foi para isto que lá fomos, para vivermos estes momentos de ansiedade ao máximo - como o Emanuel dos Sensible Soccers (tão bem que estariam no cartaz) e as suas palpitações de sincera expectativa antes do Ariel Pink aparecer no Palco Pitchfork e nos enredar a todos no seu freak show intergaláctico, onde cabe tudo e mais um par de botas e um baterista cantor em biquini e chapéu de Trinitá. E no Sábado, Jesus Cristo no Sábado…se ainda havia alguém que não estivesse plenamente convencido, qualquer dúvida foi estilhaçada sem apelo nem agravo. Ainda o sol dava aquela contra luz perfeita que milhares de fotogramas captaram ao subir a colina do palco principal, e ali no cenário do lado uns rapazotes doentes, à beira do precipício, montavam uma algazarra difícil de catalogar. A história do rock selvático, drogado e perigoso mesmo à nossa frente no movimento de ancas e na descarga sonora de dois putos que dificilmente algum dia o vão deixar de ser. Para cima do palco levam mais uma malta aguerrida e um coro de gajas. Está lá tudo. Jagger, Gillespie, os Zeppelin, Vicious, James Brown. São os Foxygen, mas daqui a duas horas podem já não ser. Vivem no limbo e isso, felizmente, nota-se. Viva. Três Vivas. "Long live rock n' roll".

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Belle & Sebastian

Siga pra bingo. E mais logo aguenta-te à bronca com o Dan Deacon em modo "Foxygen dos beats demoníacos". Ainda a madrugada mal começou. Que bomba senhores. Dupla bomba, porque logo depois, no campeonato geriátrico do vigor pós cinquentas - onde à tardinha Einsturzende Neubaten e Babes in Toyland também marcaram os seus pontos - caiu o Carmo e a Trindade. É quase inconcebível que um concerto dos Underworld em 2015 possa resultar num momento tão grandioso. Não há em circulação, fora ou dentro do palco, um por cento das drogas consumidas em meia hora quando há 20 anos os galeses se apresentaram pela primeira vez ao vivo ali para os lados de Gaia, num antro techno chamado Rock's". E, no entanto, ninguém diria. "Born Slippy" é um hino de geração, porque "Trainspotting" é um filme de geração. Mas haverá assim tantos que ainda hoje peguem em "Drumnobasswithmyheadman", apesar do intocável estatuto de clássico, e o metam a tocar em casa? Haverá assim tantos (de nós) que passados anos pensassem que os gajos ao vivo pudessem soar urgentes e não mumificados? Vivos e não apenas carcomidos? Pensaram algum dia estar ali, agora, em descontrolo dançante absoluto? Rotundo não. Mas estivemos! E soube tão bem caraças! Ao ponto de chegares ao fim, olhares para o anfiteatro atrás de ti cheio de braços no ar e pensares que não faz mal nenhum se há umas horas não foste ver o Thurston Moore a esbardalhar o palco ATP como se não houvesse amanhã, porque não conseguiste largar o embalo pop velhaco de Baxter Dury com o sol a bater-te na cara, a cerveja a escorrer como água lisa e os sorrisos à tua volta a aquecerem tudo o que mexe. Não faz mal nenhum. 2016 não tarda. Houve muito por ver por inteiro, houve muito por ver com mais atenção, mas mergulhar num Festival como o Primavera Sound é também isso, perder coisas boas ou ceder à distracção boa dos amigos que não vemos há muito, da preguiça solarenga, do ir buscar um copo e encontrar gente de quem tínhamos saudades e com quem queremos estar um bocado. Do que vi aos solavancos, não me esqueço, claro, da Patti Smith, dos Giant Sand, Death Cab For Cutie, ou Viet Cong. Dos que não vi de todo, com pena, mas com a certeza de que fica para a próxima, até porque os relatos são de mel, aponto na agenda os Twerps, Ex Hex e o Kevin Morby, que tem dois discos de sonho e que se me fugiu entre um par de conversas à hora mais importante. Até breve.