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Noisey

Tom Araya vendeu sua alma para o Slayer, mas será que valeu a pena?

Uma entrevista sobre a morte, sacrifício e família com o cansado Deus do thrash.

Tom Araya soa cansado. Ele está em um quarto de hotel em algum lugar de Idaho, passando seu tempo entre entrevistas telefônicas e programação de TV diurna até que seja hora de voltar pro ônibus e riscar a próxima data no itinerário de verão de sua banda. Para falar com ele, tenho que ligar na recepção e dar um nome falso, então esperar – torcer – pra que a ligação seja completada. Minha primeira tentativa fracassa, mas na segunda vez que tento falar como um dos mais famosos músicos de metal do mundo, dá tudo certo e um caloroso sotaque californiano me cumprimenta. Faço uma nota mental na hora para mandar uma mensagem pro meu pai (“Acabei de entrevistar o cara do Slayer!!!”) e então pergunto ao lendário baixista/vocalista como vai seu dia.

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Tudo rola numa pegada meio Quase Famosos, apesar de Araya não se passar por Harry Houdini. Ao se hospedar em um hotel, ele usa o nome de um artista marcial de especial significância para ele. Tom e sua família toda são faixas pretas; eles começaram a treinar juntos há seis anos, quando ele e sua esposa começaram a educar seus filhos em casa e precisavam encontrar uma atividade física divertida para todos. Atualmente, ele é o único integrante do Slayer que poderia, de fato, te matar – apesar de que quando disse isso, ele ativou o modo papai sensível e me deu uma leve chamada de atenção.

“Bem, a gente treina por questões de autodefesa mesmo. Você está ali para ajudar a proteger e é essa a ideia por trás de tudo. Não é para ofensiva, e sim para defensiva”, explica. “O mestre nos disse, ‘você dá às pessoas duas chances, depois disso, na primeira você diz ‘não’, mas na segunda? Duas semanas no hospital!’”

Continua abaixo…

Ele dá uma risadinha gostosa depois deste último comentário, e ri fácil e com frequência ao longo de nossa entrevista. Apesar de seu icônico uivo e sua pose de durão no palco, Araya é conhecido por ser um cara bonachão – um contraponto good vibes ao guitarrista malvadão e todo camuflado da banda, Kerry King, ao franco baterista original Dave Lombardo ou o finado mago da guitarra do Slayer, o festeiro Jeff Hanneman. O contraste entre Tom Araya, o patriarca deboinha e Tom Araya, deus metálico, é interessante. Ainda mais quando se leva em conta o vasto escopo da carreira do Slayer. Ele entrou na banda em 1981, pouco depois de King e Hanneman terem fundado a banda, e viu sua criação passar de um bando de moleques que viviam e respiravam NWOBHM e punk, vindos de uma garagem úmida de Los Angeles a uma das bandas mais influentes e atemporais do heavy metal: deuses anciões que conseguiram cinco indicações ao Grammy (levando dois prêmios), venderam milhões de discos e tocaram para multidões ensandecidas em alguns dos maiores palcos do mundo. Se o Metallica é a mais bem-sucedida banda de metal, o Slayer não fica muito atrás – e ao contrário dos seus amigos da Bay Area que viraram titãs do thrash e tropeçaram ao longo dos anos, o Slayer nunca deixou a peteca cair. Claro, erraram aqui e ali, mas nunca nos decepcionaram e verdade. E é por isso que eles ainda lotam arenas 29 anos depois do lançamento de seu disco mais adorado, Reign in Blood, e por isso também muitos anseiam por ouvir seu 12º álbum, Relentless, ainda este ano.

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Apesar de toda babação do público absurdamente devotado da banda, a pegada de Araya é mais tranquilona do que pedante. Ele não sabe o que é grindcore, mas ama Hank Williams (e curte muito The Strokes). Ele tem sido franco quanto à sua fé católica, gosto por música country e como preferiria estar em casa com seus filhos; é um cara família acima de tudo, e por vezes, você se pega pensando em como ele chegou onde está hoje.

Araya pega um avião para visitar a família sempre que pode, e é o motivo pelo qual o Slayer tem tantos dias de folga durante turnês. Ele faz o máximo para estar em casa às 11h em dias de folga; se ele não consegue um voo ou não dá tempo, não vai. Parece-me que um avião do Slayer tipo o Ed Force One do Iron Maiden seria tremendamente útil, mas depois de três décadas, a banda ainda não chegou nesse nível. “Eu viajo comercialmente, mas as pessoas pensam ‘ah você deve ser rico!’”, exclama. “Não sou não. É mais um sacrífico que estou disposto a fazer porque quero ir pra casa, não quero ficar na estrada na porra de um quarto de hotel”.

A essa altura, o Slayer é mais que uma banda – uma máquina, uma indústria com base em músicas rápidas e coesas sobre morte e poder. São negócios, e um emprego em tempo integral para quem está ao seu redor, do agente ao pessoal do merchandising e os quatro homens que formam seu núcleo sangrento. Uma máquina sem piedade, e acima de tudo, implacável – “sem remorso”, até, se levarmos em conta o nome do seu novo disco. E está envelhecendo. Araya entrou na banda em 1981, quando tinha 20 anos de idade. Agora estamos em 2015, e depois de 34 anos de dedicação ao Slayer, ele parece cansado – resignado quanto ao seu destino como um dos reis do heavy metal, ainda empolgado com o futuro, mas carregando consigo o fardo do arrependimento.

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Após falar tão francamente com ele sobre sacrifício, família e morte, não consigo deixar pensar se ele acha que vender sua alma para o Slayer valeu mesmo a pena.

Noisey: Você está no metal há mais de três décadas, tendo sobrevivido ao Pânico Satânico e certamente testemunhado muitas mudanças no estilo do gênero e sua percepção. Você acha que um dia o metal será aceito pela sociedade comum?
Tom Araya: É, tem aquele metal novo rolando aí, grindcore, acho…? Com esses nomes loucos que são tipo frases curtas — Pierce the Veil, Asking Alexandria, todas são assim — e percebi que meio que passou batido pela gente. Porque esse metal novo aí chegou no mainstream, é mais aceitável, ao contrário do que fazemos e fizemos, porque toca na rádio.

E você sente como se eles tivessem roubado o brilho de vocês, de certa forma?
Bem, não [risos]. Eles não roubaram nada, acredite. Eles gostariam de pensar que sim, mas não fazem nada que me impressione assim. Não rolou nenhuma banda, nenhuma dessas bandas novas que me fez falar “uau, que que é isso? É do caralho!”.

Sério?
Faz muito tempo desde a última vez que passei por isso. Eu escuto essas bandas, as conheço porque meus filhos as escutam. Minha filha segue as últimas tendências, o que há de novo na música. Ela pergunta “o que você acha?”. “Ah, é legal. Bem produzido. Como é o resto do disco?”. “Não sei”, ela responde. Bom, você tem que ouvir o resto do disco! Não pode ouvir uma ou duas músicas. Pra mim, o lance é o álbum. Se uma banda é boa mesmo, tem que ter um puta disco. Toda faixa ali tem que ser tipo “pô cara, isso é muito bom”. Isso não acontece muito nos dias de hoje.

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As pessoas estão mais numas de gratificação instantânea agora.
É uma sociedade descartável, bicho.

Claramente vocês deram duro no disco novo, Repentless, para garantir que atinja os padrões de qualidade da banda. Parece também ser um disco de transição. Você acha que o Slayer precisa provar algo novamente, já que Jeff não está lá dessa vez?
Que nada, não precisamos provar qualquer coisa, porque demos início a este processo uns quatro anos atrás. Já é de tempos. Começamos com a ideia de que precisávamos de um disco – bem, nossos agentes diziam “já está na hora de lançarem um disco novo” e nós respondemos “ah, beleza” [risos]. Daí começamos a bolar as ideias e juntar em músicas novas, e quatro anos depois rolou um monte de coisa. Kerry compôs um monte de coisas, e Jeff também estava trabalhando em outras, mas estava bem limitado porque estava bem difícil pra ele tocar guitarra. Jeff sempre estava compondo, então ele tinha um monte de demos e coisas que gostava, e começava a cortar e colar tudo pra tentar fazer dar certo.

Logo, a gente tinha muita coisa já, mas eu estava meio apreensivo, porque Jeff e Kerry criaram tudo pro Slayer. Todos contribuímos com as letras, mas as músicas em si eram com eles dois. Então você tem aí metade do Slayer, musicalmente falando, metade do Slayer, e fisicamente dois terços da banda, uma porcentagem bem alta. Dois terços ainda é muita coisa, e como eu disse, estava um pouco apreensivo porque ambos compunham de forma diferente, logo, seria algo assimétrico, entende? [risos] E no estúdio, a relação que eu e Kerry temos é bem diferente da que tinha com Jeff. A relação entre mim e Kerry é mais preto no branco.

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É um lance mais business?
É isso aí. Ao longo de nossa história, a relação entre mim e Kerry foi diferente da que tive com Jeff. Tive que pensar muito como seriam as coisas, porque no estúdio com Kerry sempre foi bem diferente. Com Jeff, era tudo muito aberto, e as paradas rolavam, rolava uma magia. Já Kerry não deixava a magia rolar, saca? Era tudo muito seco. Fiquei apreensivo com relação a este disco, então sentamos pra conversar, nos comunicamos, compartilhamos aquilo que sentíamos, falei sobre como queria seguir adiante se íamos terminar o disco. Apertamos a mão um do outro e dissemos “vamos lá fazer este álbum”, e assim foi.

Fiz o que fiz, tínhamos um excelente produtor que ouviu o que eu estava fazendo e gostou demais daquilo, e que disse: “Não, isso aqui está ótimo, não vamos mudar nada”. Kerry conseguiu tirar uns truques da manga e compôs uns sons mais lentos e pesados; ele compunha coisas mais pesadas antes, não é como se nunca tivesse feito, mas as músicas pesadas meio que se criariam em estúdio. No começo você pensa “caralho, como vai ser esse som?” e no final foi tipo “beleza, isso é bom, isso é Slayer”.

Você crê que a perda de Jeff teve um impacto emocional na forma como você compôs?
Jeff fazia muitos dos riffs mais pesados e melódicos. Aquilo era o Jeff no ápice, mas ele também sabia fazer coisas mais rápidas, saca? E penso que Kerry sentiu que precisávamos daquilo no disco, porque era o lance do Jeff. E ele mandou bem demais com aquelas duas faixas.

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Qual sua faixa favorita do disco?
Tenho algumas. Nunca é só uma. “Repentless”, a que divulgamos recentemente, toquei-a de diversas formas que ficaram boas pra mim, soavam bem e quando chegou a hora de escolher a versão final, o produtor disse: “Gostei muito de como você tocou aqui, qual seu take favorito?” Eu ouvi e disse: “Gosto de todos, mas esse aqui é o que tem a pegada certa”. Aí ele me olhou e disse “foi desse que gostei”, e é o que acabou no disco. É raivoso e agressivo e bem na cara.

É o tipo de coisa que vocês precisavam lançar agora.
É. Estava ouvindo a música e pensando “essa faixa capta isso”, então depois descobri qual era a dela: Kerry a escreveu através dos olhos de Jeff. As letras são baseadas na forma como Kerry crê que Jeff via a vida. Ele vislumbrou o que Jeff passou nestes últimos anos no Slayer, e quando o vi dizendo disso, a parada bateu tipo: “Meu Deus, entendi. Escolhi a certa!” [risos] Escolhi a certa porque ela era cheia de atitude e raiva, captava nossas emoções, entende?

Você tem medo da morte?
[Longa pausa, então um suspiro] Não, não temo a morte. Não. Meu medo é o que acontecerá com a minha família quando eu partir, e deixá-los para trás, porque isso é meio o que acontece quando você morre – você está deixando pessoas para trás e indo para outro lugar. Você está seguindo adiante. Quero estar presente para eles pra sempre, mas sei que isso não é possível. Passei por isso quando meu pai morreu uns anos atrás. E minha mãe faleceu recentemente, em abril deste ano. Você pensa que estas pessoas continuarão com você pra sempre. Você não percebe a perda que é não ter mais pai ou mãe ao seu lado. Não creio que as pessoas consigam compreender isso até que aconteça com elas, quando seus pais já não estão mais por perto. Há uma espécie de segurança quando se sabe que estão vivos, daí de repente você não tem mais pra quem correr e gritar “Papai! Mamãe!”.

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Por que você acha que o heavy metal é tão obcecado com a morte?
Não sei. Nós, pessoalmente, não éramos obcecados com morte; quando começamos a banda, falávamos de diabos e demônios, e ainda escrevemos sobre isso, mas a um nível mais social. E foi assim que amadurecemos enquanto banda. Quando começamos, era tudo tipo: “Ah vocês são uma banda satânica, vocês adoram o Diabo”. Nós não adoramos o Diabo, mas começamos assim. E então passamos a falar mais sobre os males da sociedade, sobre os seres humanos e como somos maus.

Somos a coisa mais assustadora que existe.
Somos mesmo.

Vocês já abordaram questões sociais e culturais em sua música. Que assunto você acha que foi o mais complicado?
Acho que o mais desafiador rolou quando Jeff me disse que estava compondo uma música chamada “Jihad”. [risos] E eu respondi “bicho, o que que você tá fazendo?” [Risos] E ele me diz: “Não cara, eu quero escrever sobre isso, mas na perspectiva do terrorista”. Daí ele escreveu a maior parte da letra, e como havia me dito sobre o que queria fazer, fiz meu dever de casa também, li livros e assisti a documentários sobre o que pegava com a Al Qaeda e anotei umas ideias. Aí nos encontramos e começamos a trabalhar no disco e eu falei “ei Jeff, já tem a letra da música?” e ele respondeu “opa, aqui as minhas ideias, o que você acha?” E li aquilo e pensei que era demais, e disse: “Tem alguma coisa pro final da música?”. Ele disse “não, ainda não”, então falei “bom, eu rascunhei umas coisinhas”, então peguei literalmente o que havia rascunhado e cantei. Não seguia ordem nenhuma, não reescrevi, eram só umas anotações. Acabou que aquilo virou o final da música e gravei em um take só. O produtor disse “vamos tentar de novo” e não conseguimos reproduzir. Não conseguimos.

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Tem coisas que são únicas mesmo.
É essa a magia do estúdio. Quando você só vai lá e faz, e pega tudo num take só. Deu certo e é uma excelente música e não tivemos nenhuma reação negativa quanto a ela. Era essa minha preocupação, gente falar merda, rolar controvérsia. Levamos mais porrada por causa de “Angel of Death” do que por conta dessa aí [risos]. Não vou falar mais nada porque não quero treta, mas é assim é que é nesse ramo.

Com certeza você já passou muito tempo na indústria. Como separar o esquema de negócios da diversão, isso de tocar ao vivo e compor e pesquisar? Ainda é mais legal que um emprego comum ou dá na mesma?
É mais ou menos a mesma coisa, mas ainda com mais jeitão de negócio, porque o Slayer existe há tanto tempo que virou uma entidade por si só. Virou algo com vida própria, fornecida por nós. Então temos que dar duro para nos certificar de que continue respirando e é aí que parece mais um emprego mesmo. A parte mais divertida é no palco.

Você sempre parece estar se divertindo muito lá em cima.
É isso. É a melhor parte do que faço na banda. O resto todo é um saco. Porque você tem que ir do ponto A ao ponto B, e quando se faz isso todos os dias da sua vida, chega uma hora em que você não quer mais. Era assim que Jeff se sentia. Jeff estava num momento em que estava simplesmente cansado, como todos nós. E ele sempre esperava pela invenção do teletransporte – ele sempre comentava como seria ótimo ser teleportado para o palco, fazer o show e então voltar para casa [risos]. E eu só falava “cara, seria foda!”.

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Pra acabar com a enrolação.
Justamente. Acabar com toda a perfumaria. Porque todo mundo tem essa ideia de como é a vida. Como você citou Quase Famosos, e foi desse jeito durante um tempo, mas odeio dizer isso, chega a um ponto da vida em que você tem que crescer. Odeio dizer isso, mas você tem que crescer porque você não é mais aquele bêbado engraçado… Você é aquele bêbado terrível.

Não é tão legal aos 45 anos.
Pior ainda com 50 [risos]. Então você tem que amadurecer e se respeitar. Acho que é isso, né?

E passar um tempo com a família no karatê e não tomando doses.
Sempre que sobra tempo, é pra isso que se vive. O resto – aguento, deixo pra lá. Se não tivéssemos que fazer nada disso, acho que a vida seria ótima, mas como eu disse, depois de tantos anos, a essa altura do campeonato, é diferente, e as pessoas não entendem isso. Depois de 33 anos viajando – uns 29, na verdade, de turnês e viagens – depois de um tempo, só cansa. E todo mundo diz “poxa, deve ser divertido! Você viaja! Você vê isso e aquilo!” E, cara, se você estivesse no meu lugar, pensaria de outra forma.

Você passa seus dias em um ônibus, faz uma parada, vai trabalhar, volta pro ônibus.
Isso. Engraçado, estivemos na Europa há pouco tempo para divulgar o novo disco. Passamos três dias em Londres, um em Paris, um na Noruega e dois ou três na Alemanha. As pessoas pensam “nossa, deve ser legal. Passearam em Paris?” e eu olho pra elas e digo “vê esse quarto? Dá uma olhada nele”. E elas olham. “Esta é a minha Paris. Linda, né?” [risos] É isso que respondo quando me perguntam algo assim. “Passeou por Estocolomo?”, e aí mostro o quarto. “Gostou? Esta é a minha Estocolmo. Linda, não? Gosto das cortinas. Olha só o sofá. Maravilhoso”. E aí abro a janela e digo: “Esta é minha pintura, minha imagem. É isto o que vejo”.

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Posso te falar como é cada aeroporto dessa porra de mundo. É triste poder fazer isso, deixa eu te contar.

Você pelo menos gosta de viajar nas férias?
É a única ocasião em que gosto de viajar. A única hora que gosto de aeroportos ou viajar é quando vou a algum lugar com a minha família.

Sua vida familiar parece ser um refúgio pra você.
Eu costumava trazer todo mundo nas turnês nos EUA, no Ozzfest ou sei lá, quando tocávamos sete semanas no verão. As primeiras duas turnês foram ótimas, e depois disso tive que arrastar todo mundo [risos], era mais uma coisa de tê-los por perto do que levá-los comigo. Eu gostava mesmo de ter a família por perto, faz com que essa porra… Faz com que eu consiga. Se estou num hotel com minha família, cago e ando pro que acontece. A gente sai e dá uma volta. Aí tem o show, vou lá e toco. Volto pro ônibus com minha família. Vejo TV, jogo algo, que seja. E isso tornava tudo tolerável, mas não tinha percebido que minha felicidade os deixava miseráveis.

Porque turnê sem subir no palco é só viajar sem parar.
É – subir e descer do ônibus. “Acorda aí, chegamos”, quando tinham acabado de dormir. Meus filhos tinham menos de sete ou oito anos quando começaram a viajar comigo. E agora tem 16 e 19. E nas últimas três ou quatro turnês não vieram junto. Eles são como eu. Eles entendem que eu preferiria estar em casa do que na estrada. Eles sabem porque eles mesmos não querem cair na estrada, querem ficar em casa. Eles tem amigos e todas as suas coisas lá, pra que cair na estrada?

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Eles sabem o que passo agora. E olham, pra mim e dizem “você tem que ir” e eu respondo “eu sei”. É essa a atitude. “Nós não temos que ir, você sim”. E eu digo pra eles “queria vocês comigo” e eles dizem “a gente não se diverte, pai. Não é legal”. Como eu disse, viajamos muito de ônibus, avião, trem e carro, e em determinado momento eles diziam que gostavam de estar ali comigo, mas não era mais divertido. E eu disse que tudo bem.

Bicho, por quanto tempo você vai continuar nessa?
Não faço ideia. Quando cansar de ser o velhão no lugar [risos]. “Quem é aquele esquisitão no canto?” [Risos] Porque estou quase lá. O velhão no bar, com um monte de jovens ao redor e todos olham pro velhão e pensam “quem é esse doido?”

Creio que no seu currículo só conste “Slayer” – não é como se você fosse arrumar um emprego qualquer quando se aposentar.
É, gosto de pensar que me dariam um cargo no Burger King ou algo assim e precisar de uma graninha extra porque o cheque da previdência ainda não caiu [risos].

Espero que ainda faltem uns anos pra isso, pelo menos.
Bom, acabamos de lançar um disco, então vendi minha alma por uns bons quatro ou cinco anos.

Você poderia ter vendido em locais piores, com certeza.
Com certeza, mas acho que dizer isso a alguém coloca tudo em perspectiva. Sempre falavam coisas do tipo “você vendeu sua alma!” e na vida, você meio que faz isso mesmo. Depende do que você tem feito, mas tem umas coisas que exigem um sacrifício de boa parte da sua vida. Isso, pra mim, é vender a alma. Abrir mão de parte da sua vida para fazer algo. Quando concordei em fazer este disco, sabia que teria que fazê-lo e então uns três anos ou quatro de turnês.

Quantos anos você tem agora?
Estamos em 2015? 54. Tive que parar pra pensar porque não me sinto com essa idade, tive que parar pra pensar: “Mas que ano é hoje?” 54. [Risos] Um amigo me disse que idade não é nada mais do que um estado mental. Quando olho no espelho até penso: “Acho que estou ficando velho!” Mas é uma mentalidade, não me vejo como velho. Quando você vê gente da minha idade ou mais velha, é que elas se sentem mais velhas e agem como mais velhas. É isso que te envelhece.

Então você vai bater nos 60 quando chegar a hora de um novo disco.
É, isso é assustador.

Isso aí exige uma dedicação bruta.
Demais. Dei boa parte da minha vida. Você acaba perdendo muita coisa. As pessoas nem percebem, mas perdem muito. Eu tenho irmãos e irmãs, então tenho sobrinhos e sobrinhas que nasceram e tiveram seus aniversários e agora são adultos. E eu perdi muito disso. Até mesmo com minha própria família – estou casado há 20 anos. Tenho uma filha que acaba de completar 19 anos, e um filho que acaba de completar 16, e não os vi crescendo. Estive próximo durante o 1º mês de vida de meu filho, mas só fui vê-lo novamente andando, fazendo barulhos e falando. O mesmo com minha filha; depois que ela nasceu, viajei e quase não a vi por dois meses. Quando a vi, ela já falava e andava. Por isso queria levá-los na estrada comigo, queria pelo menos poder vê-los crescendo e fazer parte de sua vida de alguma forma.

Acho que a recompensa é que você pelo menos fez muita gente feliz nos últimos 30 anos…
É, mas não acho que seja uma troca justa.

Não parece mesmo.
Não é, não é nada justo. E é isso que ninguém entende. É um lance que ninguém comenta, menciona nem nada, e é o mais triste. Todos têm medo de falar.

Ninguém quer destruir a ilusão do deus do rock indestrutível.
Somos indestrutíveis, mas também somos seres humanos que tem suas vidas.

Bem, espero que você consiga voltar pra casa logo.
Só ficaremos aqui mais umas 12 horas – hoje é um dia de folga. Passaremos um dia em Las Vegas, o que creio que signifique ficar deitado vendo TV, filmes, comendo…

Parece bom!
Parece ótimo! Só queria que meus filhos estivessem aqui comigo.

Kim Kelly é editora do Noisey. Siga-a no Twitter: @grimkim