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DJ Kl Jay. Foto por Anna Mascarenhas. 
Música

“O Brasil é o país mais racista do planeta”: uma entrevista com KL Jay

Um papo sobre as comemorações de 30 anos do império Racionais, strap, fake news, alimentação e inferno astral.

KL Jay é o DJ mais importante do Brasil. Ao longo de sua carreira ele aliou técnica impecável com sensibilidade rara a sua posição como membro do Racionais MCs de forma absurdamente declaratória: trouxe os novos artistas e sons dos mais variados estilos e gêneros, e se posicionou politicamente com veemência. Quem não se surpreendeu com uma discotecagem na Sintonia ou nas inúmeras festas que capitaneou pelas pistas brasileiras ao longo dos anos? Como não lembrar com gosto da pérola 500 anos durante seu período como apresentador do Yo! MTV Raps? Como não lembrar que em seu primeiro disco solo, KL Jay na Batida Vol III, ele já trazia uma MC feminina como protagonista?

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KL Jay é a maior expressão brasileira da máxima “o DJ é um educador”. A oportunidade de questioná-lo rapidamente numa conversa telefônica já é uma benção. O DJ contou sobre a turnê de 30 anos do Racionais e porque tocar ao vivo músicas que estavam engavetadas há décadas; a parceria com o Tidal, que apoia e disponibilizou a discografia do grupo em streaming de alta qualidade pela primeira vez; astrologia e jejum. Saca só:

VICE: Primeiro quero perguntar sobre a parceria com o Tidal, como você vê e qual a importância pra você.
KL Jay: O Tidal é a plataforma do momento, é do Jay Z. A gente é fã dele, faz rap como ele. Tudo a ver, é a mesma frequência.

O Tidal tem toda uma onda de mais audiófila, de qualidade de som, pra você como DJ e produtor isso foi um fator importante, pra além do aspecto do rap?
Sim, e não só isso, é uma coisa nova e é autêntica. A audição em alta qualidade foi uma puta sacada.

Tá tendo nos EUA uma coisa muito forte de mulheres cantando rap, a Cardi B ganhou prêmio importante, e teve uma declaração que muita gente achou infeliz do Jermaine Dupri dizendo que as rappers agora são todas strippers, chamou de strap. Você sempre discotecou muitas artistas, sempre gravou rappers e cantoras. Como vê o momento e como viu isso ao longo da sua carreira?
Olha, muitas mulheres tão cantando melhor do que os homens. Muitas. A Cardi B é uma delas. O Jermaine Dupri falar isso das mulheres strippers cantando soa invejoso da parte dele. E soa como uma fraqueza masculina. Não cabe nos dias de hoje falar isso. Antes o machismo era mais escrachado. Eu nunca fui machista, sempre quis ver as mulheres cantarem, as mulheres tocarem. Eu gosto de mulher, gosto do feminino. Acho sensacional as mulheres no topo e elas cantam rap mesmo, pesado, agressivo. Não é que nem muitos homens que não cantam mais não, tão fazendo firula.

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Você sempre chamou artistas mulheres nos seus discos solo. O que você acha que falta no Brasil pra ter mais estrutura pros novos talentos?
O país não ajuda faz muito tempo. A economia não ajuda, é tudo caro pra caralho. Produzir, masterizar, colocar pra tocar, prensar disco e o país é preconceituoso pra caralho também. O Brasil é o país mais racista do planeta. Se você for ver mesmo, na realidade, é o mais preconceituoso. Fica tudo mais difícil, as rádios não tocam as músicas, tocam quando ficam muito pop demais, pra fazer um trabalho de divulgação é caro. A gente tá abrindo territórios, devagar.

Você acha que por conta da questão econômica e do racismo estrutural, de rap não ser visto como música até muito recentemente no país, também falta produção especializada, no sentido de direção artística?
Não. Produtor bom tem um monte, e tem muita gente boa fazendo rap. A gente não tem o mesmo nível que eles [nos EUA], mas a gente faz uma música de alta qualidade. O Brasil tem mais um ponto: não incentiva a cultura, a arte. Mas produção artística tem.

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DJ KL Jay. Foto: Cabra.

Um tempo atrás o papo na imprensa era que todo mundo podia ser DJ. Tenho a impressão que isso mudou, que a profissão e a especialização voltou a ser valorizada: DJ que sabe mixar, virar, selecionar, entender a pista.
Uma hora a verdade aparece. Essa frase aí que qualquer pessoa pode ser DJ é a mesma coisa que falar que qualquer pessoa pode tocar piano. Os meios de comunicação hoje em dia são muito fortes. Eu mesmo vi vários vídeos de DJs mentirosos sendo desmascarados. Nunca me preocupei com isso, sempre me garanti. Essas pessoas que se auto intitulam DJs e não são duram um ano, por elas mesmas elas somem. O DJ hoje é mais respeitado.

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Extrapolando um pouco sobre verdade e mentira, e falando de Racionais, que sempre teve que lidar com o que hoje me dia se chama de fake news. Desde o Guina.
Quando você é verdadeiro você sabe que é verdadeiro. Naturalmente você vai sobreviver, naturalmente as coisas vão se mostrar. A mentira não dura tanto tempo. A gente sempre prezou ser autêntico, ser verdadeiro. O que falarem de nós, foda-se. Quem sobrevive são os verdadeiros, são os autênticos. Por mais ataques que sofra. A gente passou por tudo isso, e ainda passa, até hoje tem notícia falsa sobre a gente, fofoca, e estamos aí.

Vocês vão lançar conteúdo exclusivo com o Tidal e teve a exposição na Redbull. Imagino que nesse momento vocês inevitavelmente olharam pra trás e repensaram as coisas. Você reviu alguma coisa importante, repensou algo? Como foi o processo?
Racionais fez muita coisa. A gente fez muita coisa e não pensa direito, vai fazendo. As coisas vão acontecendo, e quando você vê construiu um castelo, construiu uma fortaleza. Racionais escreveu o nome na pedra. A gente não vai fazer rap até o final da vida, chega uma hora que naturalmente vamos diminuir o risco. Diminuir o ritmo, aliás, e o risco também, porque é profissão perigo. Posso dizer não só como integrante do Racionais, porque analiso o Racionais muito de fora, vejo o Racionais muitas vezes, como se eu não fosse do Racionais. O Racionais tem uma posição que não vou dizer que é confortável, mas construiu um império musical e um império de atitudes, um império de uma ideologia, um império de verdades, então agora é ficar mais calmo e usufruir. Não sei se respondi a sua pergunta, mas 30 anos é foda, a gente fez muita coisa e a gente tá aqui.

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O que eu quis dizer com isso é o seguinte: me dá a impressão de uma satisfação muito grande, de um entendimento de olhar pra trás e dizer “beleza, tem o peso de ser os quatros pretos mais perigosos do Brasil, mas isso é uma coisa boa”. É isso?
É, missão cumprida. Plantamos várias árvores, varias, vamos colher os frutos agora. E continuar plantando, só que mais devagar.

E fazer outras coisas?
É, tem trabalho solo nosso, tem outros artistas pra gente lançar também, pra gente ajudar. E fazer menos shows.

Tinha uma conversa de filme biográfico de vocês também, né?
A gente tá nessa contenção, nesse projeto, mas filme é uma coisa demorada, vários processos, varias entrevistas. Tá engatinhando ainda.

Já começou a turnê. Algumas declarações do Brown no palco nos shows de Curitiba e Rio de Janeiro repercutiram. O que é pro pessoal que ainda não viu esperar desses shows, como são esses shows? Você sente que tem muita gente nova que nunca viu o show de vocês na plateia?
A gente canta músicas desde o primeiro álbum até o último. É uma mistura de celebração e de relembrar. Por exemplo, quando a gente canta “Voz Ativa”, “Pânico na Zona Sul”, eu não sei os demais, mas eu volto lá quando tinha 19, 20 anos de idade, com eles. A gente tira onda, é um puta sonzão — os músicos são muitos bons. A gente preza pela excelência musical, Racionais, não é brincadeira. A banda tem uma puta consistência, é um funk pesado como tem que ser. É o mínimo pra oferecer depois de 30 anos.

Fazia muito tempo que vocês não tocavam música do Holocausto Urbano ao vivo ou tô enganado?
Fazia, a gente praticamente parou de cantar. Mas cabe fazer com a banda, e nesse momento da celebração de 30 anos.

Você acredita em inferno astral?
Acredito, claro. Todos nós vivemos isso. A matemática das estrelas não falha.

A alimentação é uma coisa muito importante pra você, tem uma rotina nesses dias de show?Eu quanto menos comer, melhor. Por exemplo, na minha rotina de vida acordo e bebo água. E chá. Só vou comer a noite e se quiser. Uma salada, coisa leve. Pouco carboidrato. Gosto de beber um uísque também, um gim. Não é muito também, de vez em quando. Mas é isso, comer coisas saudáveis, alimento vivo e acabou. O grande segredo é o que a gente põe pra dentro do corpo. Eu como pouco, uma saladinha, de vez em quando de final de semana um restaurante, uma massa. Mas é o seguinte: show do Racionais o quanto menos comer melhor porque não fica pesado, não fica com sono, fica ativo, esperto. E eu sou o cara que começa o show, não posso errar, tenho que estar muito concentrado. Antes do show não bebo e não fumo nada, zero. Responsabilidade.

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