Da noite pro dia: por que o STF arremeteu em favor da ocupação Vila Soma?
foto por Marcela Bragaia (Advocacia Popular)

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Da noite pro dia: por que o STF arremeteu em favor da ocupação Vila Soma?

A situação da maior ocupação do estado de São Paulo se encaminhava prum novo Massacre do Pinheirinho.

Na calada da noite desta quarta-feira, em um último suspiro judicial, o corpo de advogados populares da Ocupação Vila Soma , a maior ocupação do estado de São Paulo , localizada em Sumaré, no interior, conseguiu uma vitória muito significante para a luta pelo direito à moradia no Brasil. Uma reintegração de posse marcada para acontecer no dia 17 de janeiro – próximo domingo – na área onde vivem cerca de 2.500 famílias, foi suspensa, mais uma vez. "Tendo em conta o risco considerável de conflitos sociais, exemplificados por episódios recentes como a desocupação da área do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), bem como a de um antigo prédio na Avenida São João, em São Paulo (SP), entendo que o imediato cumprimento da decisão poderá catalisar conflitos latentes, ensejando violações aos fundamentais daqueles atingidos por ela", despachou Ricardo Lewandowski, Ministro e Presidente do Superior Tribunal Federal (STF).

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Vista aérea da Vila Soma. Foto: Lucas Jacinto

De acordo com a Medida cautelar na Ação Cautelar 4.085/São Paulo , Lewandowski defende que a ação militar dentro do Vila Soma poderia causar dano irreparável às vítimas da remoção forçada, "uma vez que os danos que serão causados não são suscetíveis de reparação, restauração ou indenização adequada". Semelhante ao último processo movido pela Massa Falida Soma Equipamentos Industriais LTDA. e Melhoramentos Agrícolas Vifer LTDA. em 2013, o reclamante – Ministério Público - não apresentava qual seria o destino dos moradores da ocupação, tão pouco como seriam transportados seus bens e onde estes pertences seriam armazenados.

Não distante desses fatos, ocorreu também, a publicação de uma foto na capa do Jornal Folha de São Paulo , na manhã desta mesma quarta-feira, que serviu como ponto de partida para uma corrida maluca onde, quem chegasse primeiro, literalmente tomaria os 1 mi de m² ocupados desde 2012. O registro – dezenas de moradores do "Soma" com escudos feitos de barris de plástico – acompanhava o título "Grupo prepara 'exército' contra reintegração de posse no interior de SP".

Foto: Marcela Bragaia/Advocacia Popular

Entendendo que, além das controvérsias judiciais - que envolvem um processo cível em nome da propriedade privada e, paralelamente, o Ministério Público, que aponta irregularidades ambientais e urbanísticas na ocupação – haveria um proeminente confronto entre ambas as partes, a Polícia Militar (PM) e os moradores, Lewandowski suspendeu os efeitos da decisão judicial que ordenava a reintegração de posse da área.

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O documento torna explicito a "concessão de medida liminar para atribuir efeito suspensivo ativo ao recurso extraordinário até o julgamento final da questão no Supremo Tribunal Federal, suspendendo, consequentemente, a ordem de reintegração de posse agendada para o dia 17/1/2016, domingo próximo". A concessão ainda apresenta como base, as afirmações de que o cumprimento de ordens de reintegração de posse no Brasil são processos onde "o desrespeito aos direitos humanos das pessoas removidas torna-se o ponto central das operações".

Essa reviravolta tão singular que gerou grande fluxo de informação durante a madrugada dessa quinta-feira não caiu do céu. A ocupação, que enfrenta processos judiciais desde 2012 – ano em que a área passou a ser ocupada – enfrentaria, ainda em dezembro de 2015 essa mesma reintegração de posse, que foi adiada e, agora, suspensa, como conta a reportagem "A maior ocupação do Estado de São Paulo pode sumir do mapa" , publicada aqui.

Para entender o que levou o grupo que integra Movimento dos Trabalhadores Sem Teto ( MTST) a esse estágio avançado de conquistas, mesmo em um momento político reacionário como o que o Brasil vive hoje, é preciso conhecer os últimos passos do "Formigueiro em Ação", que envolve, além de desobediência civil, muita organização, coletividade e comunicação.

Reunião na Fábrica Flaskô. Foto:Lucas Jacinto

Em uma reunião realizada na última terça-feira (12/01) na Fábrica Flaskô – falaremos dela muito em breve aqui na VICE – convocada por Alexandre Mandi, advogado popular que defende a Vila Soma, foram apresentados quais seriam as ações a serem realizadas ainda nessa semana com o intuito de evitar a reintegração de posse. Na ocasião, estiveram presentes representantes da advocacia popular de várias regiões do Estado de São Paulo, coletivos de mídia livre, artistas plásticos e docentes de importantes instituições de ensino, além de líderes de comunidades.

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"É muito bom lembrar a todos vocês que, o que nos espera no domingo é algo trágico e violento. Todos os apoiadores que estiverem do nosso lado serão muito bem-vindos, porém, assumirão grande risco", enfatizou Mandi. "Temos uma lista de atividades com a finalidade de questionar a população, seja pelas redes sociais ou em atos públicos – onde vão morar os desabrigados do Vila Soma?", explicou.

Nessa agenda, estavam a exibição do documentário " Soma – Na luta pela moradia ", produzido pelo coletivo de mídia livre Piracicabano Serviço de Utilidade Pública (SUP) . "Esse filme foi produzido no fim de 2015 e lançado recentemente. Iremos projetá-lo em alguma praça de Sumaré, para tentar comover a comunidade", contou Mandi.

Outra ação, seria a passeata das mulheres. "Queremos mostrar para a cidade o grande número de mulheres que vivem com suas famílias, criam seus filhos e procuraram um futuro dentro da ocupação. Em marcha pacífica na quinta-feira (14), o objetivo é mostrar também a força e presença marcante das mulheres na tomada de decisões coletivas do Soma."

Dentro da ocupação a situação também era de organização e fortalecimento. "Esperamos uma ação truculenta da PM, ao passo que como as manchetes dos jornais regionais apontam, os moradores darão a vida por suas casas. Para garantir a resistência, estão sendo construídas barricadas além da montagem de escudos e outros equipamentos de segurança para os moradores da linha de frente", lembrou.

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Foto: Marcela Bragaia/Advocacia Popular

Ainda sobre o que estaria por vir no que diz respeito ao "corpo a corpo" no momento da reintegração, a direção do Vila Soma viabilizou uma equipe de socorro dentro da ocupação. "Teremos nossos próprios agentes de saúde que darão amparo aos feridos ou mais necessitados, tendo como base nossos últimos atos públicos, onde algumas pessoas desmaiaram ou foram feridas por estilhaços de bombas da polícia", esclareceu.

Outro desenrolar que se deu por parte da colaboração dos apoiadores, foi a criação do "Cordão de advogados populares". "No dia da reintegração, estaremos todos juntos, de mãos dadas, fazendo o acompanhamento da ação", contou Marcela Bragaia, advogada popular de Piracicaba, município localizado a 40 minutos de Sumaré.

"A ideia do cordão surgiu numa conversa entre advogados populares. Estávamos inconformados que o despejo marcado para dia 17, e como somos muitos advogados colaborando e, querendo colaborar, pensamos em fazer um isolamento de advogados entre a PM e as famílias", explicou Marcela.

De acordo com a advogada, tudo passou a ser articulado entre os advogados da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP). "Montamos um grupo da advocacia popular da grande Campinas e agora estamos nos articulando para oficiar as comissões de prerrogativas da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para que estejam presentes", contou.

O motivo para tamanha mobilização, segundo Marcela, é uma triste realidade. "Via de regra, em toda reintegração as prerrogativas dos advogados populares são ofendidas. Eles (a PM) respeitam os advogados dos ricos, mas dos pobres não, quando na verdade somos todos iguais".

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"Não caracterizamos nossa atuação como resistência, pois quem resiste são as famílias. Nós atuaremos para que nenhum direito delas seja infringindo, porque a PM é fascista, o choque, a cavalaria, adentram com violência, não permitem que as famílias retirem seus pertences, destroem tudo", justificou.

Marcela Bragaia garantiu ainda que, assim como os moradores, estariam preparados para truculências. "Temos experiências de reintegrações de posse, contudo, essa será a maior reintegração de posse das nossas vidas", lembrou a advogada. "Lá (Pinheirinho) eram 9 mil moradores, a Vila Soma são 10.000. Pinheirinho foi pego de surpresa, mas nós estamos amplamente organizados em diversos setores, o jurídico não é diferente", concluiu.

Dando espaço para várias vozes, durante a reunião uma fala chamou atenção. "No Joana D`Arc nós passamos por quatro anos de sofrimento, e só agora, há pouco mais de um ano, nós descobrimos o que é paz. Tivemos que apanhar muito da polícia". A representante da comunidade, que não se identificou, disse que existe esperança. "Era uma área para onde o aeroporto de Viracopos queria se expandir. Nós lutamos, resistimos, vimos barracos serem queimados repentinamente por agentes da PM, pessoas quase morreram, mas nós conseguimos. É por isso que nossa comunidade estará presente com o Vila Soma", revelou.

Foto: Marcela Bragaia/Advocacia Popular

Leonardo Smania Donanzan , grafiteiro que reside em Americana, município vizinho de Sumaré, contou que soube da ocupação por meio do SUP e de amigos. "Por conta da complexidade do assunto, não bastavam os jornais locais para que eu pudesse de fato me aprofundar mais a respeito da ocupação".

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Donanzan, ativa na produção de murais autorizados e não-autorizados em Americana e região desde 2014, foi nacionalmente reconhecido em 2015 depois de uma campanha que envolvia sua arte. " Education is not a crime ", campanha internacional que escolheu Americana para iniciar suas atividades no Brasil, tem estimulado a produção de murais de grafite ao redor do mundo em defesa do direito universal de acesso à educação.

"Agora, eu gostaria de realizar uma produção que fosse voltada para a causa do Vila Soma". O artista plástico, que teve um trabalho mencionado em uma lista dos 30 melhores murais de arte de rua brasileiros criada pelo Catraca Livre, desde a última semana, vinha procurado muros em Sumaré - sem êxito. "A pressão na cidade é tão grande, que mesmo os moradores que não são contrários a presença do Vila Soma acabam não autorizando a realização do trabalho em seus muros. Eles temem represálias e retaliações dos outros moradores do município", desabafou Donanzan, ainda na reunião.

Poucos minutos depois da reunião, ficou decidido que seu trabalho seria realizado dentro do Vila Soma. "Pela rejeição da ocupação ser muito grande e o caso envolver muita polêmica, minha ideia, além de conscientizar, é trazer mais visibilidade para o tema. Talvez causar até um pouco de empatia naqueles que rejeitam a ocupação". Para atingir esse objetivo, o artista pensa em utilizar a internet. "Ela (internet) é vital quando bem articulada. O exemplo da campanha Education is Not a Crime exemplifica bem isso", concluiu.

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Antes de encerrar a reunião, ironicamente, Alexandre Mandi revelou que haveriam pouquíssimas chances de uma suspensão acontecer, mesmo lembrando de todos os tramites e esforços. "Temos a defensoria pública ao nosso lado, que entendendo que não há nenhuma decisão quanto ao destino dos moradores, se dirigiu ao STF. Temos mais esse recurso".

Durante sua fala sobre o "último suspiro" jurídico dos advogados populares, Mandi fez uma crítica. "Existem três ou quatro defensores públicos destinados aos casos de habitação e moradia no Estado de São Paulo. O nosso governador, Geraldo Alckmin, já assumiu para a mídia que se fosse atender todos os casos judiciais desse setor, teria que parar o Estado", gargalhou ante a mazela.

Foto: Marcela Bragaia/Advocacia Popular

Assim que a notícia foi constatada como verdadeira, os moradores do Soma, junto de todos os seus apoiadores presentes comemoraram sem pensar. Mas mesmo em clima de festejo o recado foi dado. "As barricadas aqui construídas deverão ser mantidas até o domingo, e só assim teremos segurança antes de termos a certeza de que não haverá uma retomada desfavorável à ocupação na justiça", frizou Mandi nesta madrugada.

O grupo reconhece que realizou um bom trabalho nas bases para fortalecer a ocupação e o movimento na busca pelo direito à moradia. "Ainda que ocorresse a reintegração, teríamos estruturas para enfrentar legalmente ou ao menos ir até onde seria humanamente possível resistir a essa ação. Acredito que isso ficou evidenciado pela decisão do STF."

"Insistimos nas semelhanças entre o caso do Pinheirinho com o Vila Soma. Dias antes da reintegração em 2012, a justiça arremeteu, mas, mesmo assim, a ação foi cumprida. Estaremos preparados para qualquer revés como esse. Só nos sentiremos seguros quando a PM anunciar a suspensão da ação, e quando seus pelotões baterem em retirada da nossa comunidade", encerrou o advogado.