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Tentei falar sobre drogas com o criador do Breaking Bad

Segundo parece, a cena dele são os sedativos.

UPDATE: Apesar de todos os momentos que aqui falamos já estarem a ser discutidos em múltiplos recantos da internet, caso tenham perdido os últimos dois episódios, este artigo pode ter informação que desconhecem. Considerem-se avisados. Uma entrega dissimulada de umas chaves num café e uma metralhadora na mala do carro só podem significar uma coisa: vem aí merda (daquela com cinco temporadas de gestação). O flash-forward que inaugura a temporada final de Breaking Bad é um momento para o qual Vince Gilligan e os seus argumentistas já estavam preparavam quando decidiram contar a história de Walter White, um falhado professor de Química de ensino secundário que se converte em líder do narco-tráfico e sedento de poder. A descida de Walt ao abismo terá sido a mais turbulenta e imprevisível em toda a história televisiva, e agora, depois de tantos cadáveres e quilos de bom cristal, torna-se impossível prever o caminho a que o levam os episódios finais da série. Enquanto público, nunca estivemos tão comprometidos como agora. Neste momento, tudo está em aberto. Perdemos a fé na humanidade do Walt e na sua capacidade de evitar ser um tipo execrável consumido pelo orgulho. Depois de, num acesso de raiva, o vermos assassinar o Mike, poucos serão aqueles que não o querem ver furado de balas, venham elas da DEA ou do cartel. Mas até lá chegarmos, ainda há mistérios por desvendar e outros terão de morrer. Desde os filhos de Walt a Saul Goodman, ninguém tem a vida assegurada. Todo este alvoroço deve-se a Vince Gilligan, um tipo que decidiu que a TV se tinha tornado demasiado previsível. Ao contrário daquilo que se possa imaginar, não é agarrado, nem dealer, nem polícia, nem sequer um gajo arrogante. Foi quando produziu os incontornáveis X-files que o Vince se tornou conhecido. Depois disso escreveu o argumento de Home Fries e Hancock — dois filmes completamente diferentes mas igualmente maus. E depois decidiu chocar-nos a todos com um trabalho que desafia completamente o percurso da sua carreira. Falamos de Walter White. Falei com Gilligan pelo telefone, num intervalo de tempo pequeno cronometrado pela assistente dele que não fazia ideia que estava a ouvir a nossa conversa. Interrompeu-me quando perguntei ao Vince qual era a sua droga preferida. Ainda assim, consegui perceber algumas motivações das diferentes personagens. VICE: Estamos nos últimos episódios. Como tem sido recebida a série?
Vince Gilligan: Bem, tem sido fantástico. Continuo a querer beliscar-me para ver se estou a sonhar. Já parece desonesto dizer isto, mas ainda fico incrédulo com a ideia de que a série está sequer a ser emitida. Esta semana vai marcar o nosso 54º episódio, e é incrível como depois de cinco anos ainda temos um fluxo crescente de gente a descobrir e a gostar da série. É uma bela surpresa que haja tanta gente a adorar a série. Há quanto tempo sabes o fim da história de Walter?
Devias ter-nos visto ontem à noite. Eu e os argumentistas estamos a trabalhar constantemente nos últimos oito episódios. Ainda nem sequer os escrevemos. Claro que já temos certas ideias há meses, noções muito vagas de coisas que queremos que aconteçam, mas por agora está tudo por terminar. Temos sorte porque a emissora e os estúdios nos abençoaram com o tempo que necessitamos para refinar pequenos detalhes. É excitante e assustador o pouco que sabemos nesta altura, temos muitas possibilidades em aberto. Quanto da série é produto dessa criação gradual? E quanto é que já estava naquela ideia original, de Mr. Chips que se converte em Scarface? É difícil defini-lo. Por um lado, nunca nos desviámos dessa ideia original, isto é, de transformar o protagonista em antagonista. Mas por ser também um princípio vago, sempre nos deu muito espaço de manobra. Os desenvolvimentos narrativos são pensados por nós de semana a semana. É difícil, temos de tentar antever os próximo oito episódios e tentar definir o nosso objectivo final. Não queremos contar esta história de forma artificial: “o Walt tem que ir do ponto A para o ponto B e logo C." A escrita mais competente é aquela que permite à personagem dizer ao escritor onde quer que ele a leve, contando-se assim a história da forma mais orgânica possível. Essas duas noções parecem ser opostas.
Fazemos o nosso melhor para as conciliar. Tentamos que Walt, Jesse e as outras personagens interajam de forma orgânica. E tentamos acertar gradualmente em certos marcos narrativos importantes. Na concepção de uma personagem, o que vem primeiro? Função ou personalidade?
Um misto de ambos. Odeio admitir isto, porque adoro trabalhar de forma orgânica, mas tem que se ter um princípio logístico em mente. Por exemplo, pode ser necessário um vilão na temporada. Um bom exemplo de personagem que surge como uma simples necessidade narrativa, mas acaba por ter uma presença crucial e integral à série é Hank. Eu quis que o Hank fosse a antítese de Walt. O Hank seria um vencedor nato, e o Walt naquele primeiro episódio é um falhado. O Hank seria maior do que a vida, um agente de narcóticos corajoso e confiante. E, basicamente, a motivação de Walt para cozinhar metanfetaminas teria em parte essa componente de se vingar de Hank por ser tudo o que ele não era. Como evoluiu a tua concepção do Hank?
Chamámos o Dean Norris para o papel. O Dean é um tipo extremamente interessante e multifacetado. É complexo, inteligente e capaz de desenvolver subtilezas enquanto actor. Tornou-se evidente que o Hank, enquanto personagem, podia ser muito mais do que a sua impressão inicial. À medida que fomos conhecendo o Dean, os argumentistas foram adicionando nuances à personagem. Agora que o Mike se foi, e pelos vistos o cartel também, espera-nos um confronto entre a DEA e o Walt? Ou entre o Walt e o Hank?
Não quero revelar muito. É lógico pensar que a descoberta do Hank sobre Walt seria um momento dramático enorme e final. Temos estado à espera disso há já algum tempo. Agora, se e quando isso irá acontecer — estou a tentar ser reservado, mas compreendo que tenhas essa ideia. Tendo em conta que a vossa escrita joga bastante com expectativas, estão a preparar este final? Há aqui muito jogo psicológico. Recentemente citaste Henry Mancini, disseste algo sobre a ideia de se avançar ao encontro de uma inevitabilidade. Ainda planeias brincar com as nossas expectativas? Ou falamos só de inevitabilidades sólidas? 
Um pouco de ambos. Queremos sempre surpreender o público e mantê-lo agarrado. Esse desejo nunca vai desaparecer. Há sempre um equilíbrio que se tenta atingir. Às vezes dar ao público o que ele quer é o melhor que se pode fazer. Como argumentistas, temos de olhar para cada história como única. Só porque algo parece óbvio, não deixa de ser legítimo. Como assim?
É como o Titanic. Toda a gente sabia que o barco se ia afundar, mas não que personagens se iriam conhecer, ou quem ficaria vivo ou morto. Mesmo havendo aquela inevitabilidade na narrativa geral do filme, na escala humana de acontecimentos não sabíamos o que ia acontecer a seguir. É estranho usar esta analogia, nunca vi o Titanic. O quê? Nunca viste o Titanic?
Não. Mas parece-me que a analogia não vai por água abaixo — curtiste a piada? Há coisas que esperamos que aconteçam no fim de Breaking Bad, e algumas talvez se confirmem, outras não. É um percurso acidentado até lá chegarmos. O interesse está nos detalhes, e há muitos pequenos detalhes. Há muitas surpresas e reviravoltas a acontecer nestes nove episódios finais. Recentemente foi uma surpresa ver que o Mike continua a confiar no Walt, neste caso para lhe trazer o saco da fuga. O que é estranho, especialmente depois de sabermos tudo aquilo que passaram juntos. O Walt já demonstrou inúmeras vezes que não se pode confiar nele. Além disso, o Mike manteve os seus mercenários subornados em vez de os matar, e continua a demonstrar afecto pelo Jesse. Isso quer dizer que o Mike é um velhote acabou por relaxar? 
Bem, ele ficou gravemente ferido no fim da última temporada. Talvez estes últimos oito episódios tenham sido fisicamente mais complicados para ele. Voltou a assinar acordo com o diabo. Mesmo não querendo, comprometeu-se com Walter White, apenas para compensar os seus homens. É-lhes leal e faria tudo por eles. Estes oito episódios mostram-nos que o Mike, mesmo sendo rijo — e é rijo que nem cornos — tem um código pelo qual se guia e não o quebra por ninguém. Resumindo, não é tão frio e ganancioso como Walt. Mas, se pensarmos que foi o Walt que lhe ligou no parque de estacionamento para o avisar que a polícia vinha prendê-lo, não parece que ele tenha sido assim tão descuidado. Mais ninguém o fez, apenas Walt. Julgo que Mike compreendeu que Walt não era um amigo, mas que naquele momento tinha desejos e necessidades próximas às suas, o que os punha essencialmente do mesmo lado. Ele tinha muito em que pensar nessa altura, mas penso que o grande erro foi ter virado costas ao Walt. Estando os dois frente-a-frente, o Mike teria lidado com Walt facilmente, mas errou quando lhe virou costas. O Walt entrou no tráfico de drogas pela família mas depois perdeu-a. É por isso que agora só quer consolidar o império? Porque já não tem mais nada? 
Boa pergunta. Essa é que é a questão que importa, "o que é que motiva o Walter White?" Ele é um tipo que, fruto das próprias acções, perdeu o amor da família. Não falo pelo filho, mas a verdade é que, à medida que os episódios avançam, também se afastou dele. O filho certamente desconhece os segredos terríveis que o pai guarda. Também perdeu o amor da vida dele. O Walt pôs em jogo tudo aquilo que supostamente lhe é querido. Precisamente. Então porque o faz?
Toda a gente que vê a série tem uma opinião igualmente válida sobre o porquê de Walt fazer o que faz. Isto pode soar pretensioso, mas quando expresso a minha opinião, ela não passa disso. Acho que este lado do Walt é parte integrante dele, desde sempre. Mesmo 50 anos antes do começo da história, ele tinha esse lado negro. Veio à tona com a notícia, terrível e no entanto libertadora, do cancro terminal que lhe é diagnosticado no primeiro episódio. Subitamente, os constrangimentos sociais desmoronam-se pouco a pouco. Agora é livre para ser quem realmente foi durante todos aqueles anos. Livre para fazer tudo o que de terrível tinha no coração mas que o medo refreava. Penso que ele adora a sensação de poder. O dinheiro é apenas um instrumento de medição, para o Walt nem sequer é uma prioridade. Mas é o dinheiro que mede o seu poder enquanto líder do império. Embora tenha de passar por situações horríveis e cometer actos horríveis que provavelmente lhe pesam na consciência, no fundo orgulha-se de ser um homem de força e respeito, dentro de um determinado mundo. Isso é algo que nunca teve na vida. No fim do sexto episódio (da primeira parte da última temporada) quando diz, "Isto é tudo o que me resta", a culpa dessa realidade é exclusivamente dele. Além disso sabe que não vai parar agora, especialmente agora, quando já perdeu tudo devido ao caminho que escolheu. Quando o Walt estava a lidar com o Tuco, que era um maluco, tinha um pensamento lógico e ponderado. Mas quando surgiu o Gus Fring, pareceu-me que vocês aproveitaram a oportunidade para confrontar o Walt com alguém semelhante a ele próprio — alguém que entrou na indústria sem pretensões de violência, mas que se viu atraído por ela. Foi nessa altura que o Walt começou a agir de forma completamente tresloucada. Estava a enlouquecer para confrontar o Gus?
Não, acho que estava simplesmente a perder o juízo. Esteve encurralado como um rato durante a maior parte da quarta temporada. E já se sentia assim na temporada anterior, quando se apercebeu da sua impotência. Houve ali uma altura em que estava mesmo a endoidecer — ali pela altura do "Fly". Para nós, a justificação daquela espécie de stress pós-traumático era o ter descoberto que fora inadvertidamente responsável pelo baleamento e ferimento do cunhado Hank. Descobriu que os primos do Tuco andavam atrás dele e que Hank se tinha interposto no tiroteio. Compreendeu também que o Gus Fring tinha "oferecido" Hank aos primos em vez dele.
Foi aí nesse momento de impotência, de responsabilidade partilhada, nesse momento em que percebe o quão culpado é, e como terá agora de engolir, carregar esse peso e sorrir perante alguém que julgava ser um homem de negócios puramente racional, mas que é na verdade extremamente perigoso. E depois descobre que esse homem é racional ao ponto da sociopatia. "O meu cunhado está em perigo, para este homem qualquer pessoa é descartável , estou aqui preso e tenho de fingir que está tudo bem." É como aquela deixa do Godfather, "Keep your friends close but your enemies closer". Então tivemos aquele episódio em que Walt se dirige ao Gus e diz, "Sei que, basicamente, mandaste matar o meu cunhado. Sei por que é que o fizeste e quero que saibas que não me importo que o tenhas feito, no teu lugar faria o mesmo." Mas era óbvio que se importava. Tanto que na cena seguinte entra no carro e quase que vai contra um camião em sentido contrário. A insanidade de que falas tem origem nesse momento. É uma loucura que deriva de: "Estou completamente aprisionado. Não gosto desta sensação. Como é que escapo disto? Como é que vivo com esta culpa?" Mas desde aí que ele tem conseguido viver com a culpa.
Sim, ele orgulha-se de ter conseguido matar um líder poderoso. É quase como aqueles guerreiros da América Central que matam o inimigo, arrancam-lhe o coração ainda pulsante e mordem-no para ganhar o seu poder. É uma ideia ancestral. Parece-me que ele pensa que, por matar Gus Fring, se torna no próprio Gus Fring. Se não literalmente, então figurativamente. Assumiu o seu poder, assumiu a sua aura de respeito. E claro, o que o tem chateado nestes últimos sete episódios é o facto de Mike não pensar nele nesses termos. Sempre viu a coisa como "Vê lá se te comportas Walter. Não és assim tão especial. Só porque mataste o Jesse James, não significa que sejas o Jesse James." É uma pedra no sapato de Walt, o facto de Mike nunca o ter respeitado. Na série, os agentes da DEA são um bocado incompetentes — por exemplo, o facto de Hank nunca conseguir descobrir o que se passa com Walter, quando Hank é uma pessoa extremamente vigilante em todos os aspectos. O resto do departamento nem suspeitava do Gus Fring. Achas isso indicativo da DEA na vida real? 
Não, não. Sabes aquela ilusão de óptica em que, ou vês um vaso, ou vês duas caras? Estou a ver um vaso e tu as duas caras. Dito isto, és livre de fazer essa interpretação. Eu diria que a DEA, como a retratamos nesta série, é inteligente e esforçada. São competentes no que fazem. Mas Gus Fring é mesmo esperto, tipo vilão de James Bond. O Walter White está camuflado à luz do dia, mesmo debaixo do nariz do cunhado. No universo da série, o Hank é o agente mais esperto de todos, mas tem ali um ângulo morto no que toca ao cunhado. Isso faz sentido? 
Parece que segue aquela velha lei do comportamento humano que nos diz que medimos as pessoas pela primeira impressão que temos delas. O Hank conhece o Walt há muitos anos, talvez mais que uma década, antes dele decidir entrar no tráfico de drogas. A imagem que o Hank tem do Walt está gravada em pedra. O Hank vê-o como um tipo meigo e atrapalhado, demasiado inteligente para seu próprio bem. Um homem castrado, nem se chateia ao saber que a mulher tem um caso. Chegando-se ao ponto de um confronto, Hank teria muita dificuldade em aceitar a verdade sobre Walt. Quanto ao DEA, parece que tentaram ao máximo ter em conta a inteligência do Gus. Tentaram antecipar cada jogada que fazia, como num jogo de xadrez. O Padrinho é sempre uma referência. O Gus Fring sempre se esforçou por manter a sua actividade criminal escondida. Nunca foi ganancioso, sempre tomou as precauções necessárias. Jogou um jogo de aparências. Fez-se amigo da DEA e deu dinheiro às suas diferentes causas. Provavelmente teria funcionado para sempre, se o Walt não tivesse entrado no jogo e estragado tudo. Achas que há assim tantos criminosos brilhantes no mundo real?  
Não me parece. Há dez anos trabalhei numa curta série policial e tínhamos uma data de agentes a dar consultoria técnica. Lembro-me de perguntar a um detective de roubos e homicídios da LAPD, "Viste aqueles filmes e séries que todos vemos, com aqueles criminosos geniais e sempre dez passos à frente dos polícias. Já encontraste um mestre do crime assim na vida real?" Ele disse, "Não, a maior parte dos criminosos são estúpidos! E ainda bem, há sempre tanto trabalho e tanto bandido que, se andasse por aí um cabecilha maquiavélico, provavelmente nunca íamos dar conta dele sequer. Seria improvável apanhá-lo com o volume enorme de trabalho e crimes para resolver. A maior parte dos criminosos são imbecis." Já que falamos disso, achas a guerra contra as drogas é eficaz? Refiro-me especialmente à fronteira EUA — México.  Considero-me agnóstico em relação a esse assunto. Talvez não seja a melhor forma de resolver as coisas. Também não sei se a descriminalização de certas drogas o será. Parece que devia ter uma opinião mais forte sobre o assunto, mas dedico todo o meu tempo a focar-me em personagens individuais e não na situação política que os abrange. Reconheço que há muita gente bem-intencionada a trabalhar contra o tráfico das drogas, e sei que aqueles cartéis mexicanos, por exemplo, são causa de muita dor, sofrimento e morte. Dito isto, será que a resposta é atacá-los ainda mais e manter tudo ilegal? Ou fazê-los desaparecer do mercado legalizando tudo? É complicado. Já experimentaste metanfetamina?
Não, definitivamente nunca. Calculo que a minha cena sejam os sedativos. Qual é a tua droga preferida? 
[A Relações Públicas interrompe] "Olá Abdullah, desculpa, temos de terminar, o Vince está muito atrasado."   Merda.