Cimento, areia, pedras e entulhos: como fazer pistas de skate com as próprias mãos

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Cimento, areia, pedras e entulhos: como fazer pistas de skate com as próprias mãos

Há vinte anos, o skatista Rafael Finha e sua crew se sujam de concreto para criar pistas nos lugares mais inesperados de SP.

Foto: Guilherme Santana/VICE

O skatista profissional Rafael Finha, 34, é um dos pioneiros na arte da intervenção urbana. Há quase duas décadas, ele e os camaradas do bairro onde cresceu, o Real Parque, em São Paulo, estão acostumados a construir seus próprios obstáculos, em madeira e em concreto, a fim de transformar lugares esquecidos em verdadeiras praças skatáveis.

O esquema do it yourself veio da pura necessidade. Por mais que a cultura skater tenha a reinterpretação dos espaços urbanos no DNA, quando se vive num país onde asfalto é gasto, as calçadas são esburacadas e as pistas são descuidadas — para não falar dos dissabores das escadarias e corrimãos vigiados pelos guardas a serviço da propriedade privada —, o que resta é meter a mão na massa e criar os próprios picos.

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GIF: Guilherme Santana/VICE

"Na minha época as pistas que tinham eram a antiga ZN Skatepark e a Prestige", relembra Finha. "Eu era pivete e, para chegar na ZN, pegava um busão, um metrô, e, depois, outro busão. Pra voltar, tinha que pegar dois ônibus. Então, com o tempo, a nossa experiência fez com que conseguíssemos construir uns negócios legais por aqui mesmo. E nunca mais precisamos passar tanto perrengue só pra dar um rolê daora de skate."

O Finha estava com 15 anos quando começou a organizar os primeiros mutirões para construir rampas e corrimãozinhos de madeira. A rapeize os dispunha no meio da rua mesmo. Para a função, ele tinha como aliada a experiência e auxílio familiares. Seu pai era dono de oficina e soltava as ferramentas na mão dele, além de dar uns toques essenciais. Primeiro, aprendeu a manejar martelos, furadeiras e serrotes. Depois, com um pouco mais de manha, passou para as ferramentas mais difíceis, como serra elétrica e solda. Na posse de tais objetos, ele construía rampas de 45º, palquinhos e trilhos.

Hoje as intervenções feitas pelo Finha e a crew de skatistas do bairro, a Real Família, se alastram por regiões como Parelheiros, extremo sul de São Paulo. Lá tem uma enorme garagem de ônibus abandonada que é um verdadeiro playgroud para os caras.

No pátio, descortina-se uma área externa com algumas rampas feitas com pedaços de parede de azulejo e cimentadas com areia, pedras e cacos de vidro encontrados ali mesmo. Escombros da erosão. Os vãos no solo, um dia usados para a manutenção dos busões, agora fazem a vez de camicases obstáculos para os skatistas saltarem. Na parte coberta, no primeiro andar de um pavilhão que ainda resiste, fica um espaço com o piso meio fissurado, porém lisinho, estilo marquise.

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Vários obstáculos loucos foram construídos ali pela turma da Real Família e outros skatistas, locais e forasteiros. Tem palquinho, transição, rampa e uma cantoneira junto à parede, atravessando o vão da escada, onde a galera manda manobras de grind. Curtição total.

Varando obstáculo inspirado no design de uma pista da Suécia. Foto: Guilherme Santana/VICE

Além do pico em Parelheiros, Finha já realizou intervenções em todos os cantos de São Paulo, sobretudo na região do Brooklyn, Chácara Santo Antônio e Vila Cruzeiro, onde fica a Praça Dina, spot conhecido da galera do skate. Foi a Real Família que começou a fazer aquele lugar skatável. Há obras também na Mooca, numas quadras abandonadas com umas paredes meio inclinadas, onde o Finha construiu uns wallrides e uns banquinhos de mármore daora; e até em Manaus, numa pistinha onde ele meteu um rainbow. "Aquilo foi um legado que eu deixei pra eles", orgulha-se.

Rafael Finha posa para foto na garagem, em Parelheiros: "Pode entrar com o carro que é tudo nosso"

Sair numa session pela cidade com o Rafael Finha é descobrir uma nova perspectiva do street skate. Certas paisagens urbanas que, para muitos, passariam batido, para ele representam os melhores spots. Saltar de um telhado ao outro em Paraisópolis, por exemplo, é um lance corriqueiro para ele.

A caminho de Parelheiros para clicar as fotos desta matéria, passamos por um obscuro acesso, espécie de trilha entre dois terrenos de mato alto e espesso. "Cadê o pico, mano?", perguntei. E a resposta veio na sequência: "É logo ali!". Olhei na direção para onde ele apontava e avistei, do outro lado da pista, uma barreira Jersey que impedia o trânsito de carros por aquele acesso. A barreira era o pico, enfim. A única intervenção que ele fez ali foi cimentar uma transição ao pé do obstáculo – possibilitando o impulso ideal para um wallie, no pleno gás, vindo lá do meio da via expressa.

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Foto: Guilherme Santana/VICE

Famosa entre os skatistas mais fuçados, a chamada "quadrinha" acolhe as intervenções de maior orgulho para o Finha. Trata-se de uma pequena quadra poliesportiva que, deixada às moscas, fora recuperada pelos skatistas do Real Parque. Próxima ao Novotel, à FMU Veterinária e ao edifício-sede do Carrefour, fica bem no centro de um bosque cercado por portões abertos 24h. O desenho que os moleques aplicaram ali é ouro demais, parece que você está andando num pico do interior. Os obstáculos foram dispostos de modo que se torna intuitivo o trânsito de um para outro, facilitando as sequências de manobras.

Big ollie. GIF: Guilherme Santana/VICE

Antes dos skatistas assumirem a zeladoria do lugar, o pico era filho bastardo de uma iniciativa do Bank Boston, realizada em 1997. O banco construíra o espaço como um presente para o bairro. Só que, com o tempo, parece que deixou de ser interessante investir na manutenção. Como o bosque era muito frequentado pela comunidade, seus atrativos foram se desgastando e caindo no ostracismo. "De um lado, já não tinha mais a parte de cima da trave. Do outro lado, só restou um dos paus da trave. As tabelas de basquete já estavam todas quebradas, destruíram a encanação de água do bebedouro, os noias foram e roubaram toda a instalação de fio que garantia a iluminação do espaço", conta Finha. "Nesse abandono, eu tive a visão, mano, de falar com os moleques sobre ocupar o lugar."

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O ano era 2004, o Finha já corria campeonato, tinha um foco diferente no skate, mais centrado no esporte como profissão e transformação social. Os skatistas chegaram de mansinho, dividindo o espaço com os outros frequentadores, sobretudo o pessoal do basquete. Só que os caras das cestas colavam uma ou duas vezes por semana. Às vezes, nem isso. Nessas, ele convocou a crew e mandou o papo reto: "Falei pro pessoal: 'Porra, mano, a gente vai precisar ser atrevido pra tentar alguma coisa'. E os caras: 'Mas, como?'. E eu: 'Vamos arrancar a tabela, tio!'."

Segundo o Finha, a tabela já andava toda podre, com o aro amarrado, e a galera do basquete não aparecia há duas semanas. Os skatistas removeram tudo. Quando os caras chegaram, depois de três semanas sem colar, o cenário era outro: toparam com dois corrimãozinhos de base de concreto, chumbados no chão, que estão lá até hoje. Quem curtiu, afirma o skatista, foi o zelador da época, o Seu Zé. "Porque o pessoal da quebrada bagunçava muito. Zoava, ficava pulando dentro da casa dele pra roubar as frutas dos pomares, então meio que dava problema. Ele gostava de nós porque não dávamos problema. Estávamos em contato direto com ele o tempo todo, ele dava água pra gente, abria a torneira. Era um puta cara legal. Só que aí o Seu Zé morreu. Isso foi há quatro anos."

Vista geral da entrada da quadrinha

Com a morte do Seu Zé, a quadrinha ficou sem zeladoria por um tempo. Nessa época, o Finha já capitaneava a ASRP (Associação de Skate, Esporte, Lazer e Cultura do Real Parque), e a casinha que serviu de morada para o Seu Zé acabou virando sede da associação. Eles promovem umas festas para arrecadar grana e usam o lucro para investir em material. O dinheiro também chega por doações. De rateio em rateio, a associação descolou verba para uma ampliação que segue em andamento. Pelo jeito, vai rolar um paredão de wallride bem style, logo atrás da rampa. "Essa verba não chegou fácil. Ali, demos o nosso suor. São dez anos que estamos lá todos os dias fazendo acontecer. Não caiu nada do céu", frisa o skatista.

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O laboratório do que se encontra hoje na quadrinha começou num lugar na Marginal Pinheiros, anexo ao prédio da SulAmérica Seguros. Quando construíram o edifício, em 1999, na região do antigo Morumbi Park, funcionou ali também um alojamento para os trabalhadores. Terminada a obra, o alojamento foi destruído. Restou o chão, perfeito. Era uma extensão aproximada de 40 metros de piso, intermediada por um degrau, mais 40 metros, por cinco de largura. Lá os caras experimentaram bastante as possibilidades. Chumbaram corrimãos, rampas, palcos e canos. Mas a alegria durou apenas quatro anos. O jeito foi continuar botando os obstáculos nas ruas do Real Parque durante mais alguns anos até que conseguissem a posse da quadrinha. A luta dos skatistas da Real Família é diária para garantir a integridade do pico, mantendo afastados os vândalos e noias.

"Na quadrinha, a gente sabe que se abrir mão e deixar os outros fazerem o que quiserem, vai virar bagunça, entendeu?", esclarece Rafael Finha. "É um espaço democrático, aberto a todos, só que dentro dos limites."

Smith grind. Foto: Guilherme Santana/VICE

Nem todos os lugares transformados pela Real Família permanecem intactos. Em alguns casos, a vizinhança espana e rola um boicote. Noutros, espíritos de porco destroem os obstáculos. "Todos os spots que a gente constrói são pro skate, independente de ser no meu bairro. Concluído o negócio, ele fica lá, mesmo que eu não volte nunca mais pra andar. O que quero é movimentar as coisas, energizar, fazer acontecer", diz o skatista.

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"Mas não tem como segurar. Eventualmente alguém chega na maldade com um pedaço de ferro ou uma marreta, vai, picota, quebra, faz uns buracos e zoa." Na tentativa de evitar esse e outros tipos de problemas, a dica dele é seguir alguns protocolos. O primeiro: sondar a rotina do bairro. O segundo: trocar ideia pessoalmente com as pessoas da comunidade local. Concluída a intervenção, o terceiro é: "não queimar o filme no pico depois."

Toda essa parede ao fundo da quadrinha dará lugar a uma rampa de wallride. Foto: Guilherme Santana/VICE

Para quem pretende embarcar nessa onda DIY, ele dá a letra de que não tem muito segredo. Rola de customizar os lugares de diversas formas sabendo trabalhar com o material elementar: ferro, madeira e restos de entulho. Mas a base de tudo é o concreto, o cimento. Nesse caso, não tem outro caminho: tentativa e erro até dominar a fórmula. "O esquema é você misturar cimento, areia e água, e a partir daí saber trabalhar", explica o Finha. "Existem algumas técnicas. Tipo, um pouco mais de areia, um pouco mais de cimento, menos água, mais pedra. Fiz várias cagadas no começo, mas depois vai da sua criatividade, de executar aquilo que tem em mente, modelar. O bagulho é uma arte, não tem regra."

Em essência, a lição se resume ao seguinte: o cimento é a cola; a areia, as pedras e entulhos em geral, o volume; enquanto a água faz a química acontecer. Mais fácil do que mandar um pop shove-it.

Um dos obstáculos mais antigos da quadrinha

Wallie varando a barreira

Finha mandando mais um pixo em Parelheiros. GIF: Guilherme Santana/VICE

Backside smith grind. Foto: Guilherme Santana/VICE

Foto: Guilherme Santana/VICE

Foto: Guilherme Santana/VICE

Foto: Guilherme Santana/VICE

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