Música

Falamos com especialistas em religião sobre o novo álbum de Kanye West, 'Jesus Is King'

Antes do lançamento do nono disco de Kanye, falamos com professores de religião para contextualizar a abordagem do gospel segundo Kanye.
KC
Queens, US
MS
Traduzido por Marina Schnoor
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Foto por Dimitrios Kambouris/Getty Images para Yeezy Season 3.

Kanye West vem usando sua música para pedir a ajuda de Deus há 15 anos. “Quero falar com Deus mas tenho medo porque não nos falamos há muito tempo”, ele rima em “Jesus Walks”. O rap centrado na fé capturava a desconexão entre o secular e o sagrado, com o rapper de então 27 anos de Chicago tentando encontrar pureza no coração com uma música sobre Jesus que pode ser tocada na balada. Desde seu álbum de estreia em 2004, College Dropout, West foi de buscar o reino de Deus para criar seu próprio, se batizando como Yeezus e adotando um audacioso complexo de deus.

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Quase duas décadas depois de “Jesus Walks”, Kanye West retornou esta semana com Jesus Is King, seu nono álbum de estúdio de que ele já vinha dando dicas este ano com seus Sunday Services, concertos de uma hora transformando hip hop e R&B em música gospel. Os shows também lembram um culto de igreja com testemunhos ocasionais – só que não são pra qualquer um. A lista de convidados é reservada para a elite de Hollywood, gente como Rick Rubin, Katy Perry e Courtney Love, e o público normalmente precisa assinar um contrato de confidencialidade. O disco voltado para o gospel de West provavelmente vai atrair algum ceticismo, mas o que significa para um dos artistas mais influentes do hip hop usar a igreja como um veículo para seu próximo álbum?

“Se você quer fazer qualquer coisa com os negros neste país, você ainda precisa passar por uma igreja negra”, disse o Dr. Jay-Paul Hinds, professor-assistente do Seminário Teológico de Princeton, para a VICE. “A temporada de eleições está se aquecendo novamente e você vai ver de novo políticos nas igrejas, porque esse ainda é o principal caminho para atingir a comunidade afro-americana.”

A fixação de Kanye com a igreja negra tem implicações além do som de Jesus Is King. A visão de um rapper que se alinhou a Trump e disse que a escravidão parecia “uma escolha” rodando por instituições que pregam uma teologia que data do período da escravidão vai atrair ceticismo.

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“Isso levanta questões sobre como [Kanye] se situa nessa tradição profética [do cristianismo negro] em particular, que é muito mais interessada em bem-estar social em oposição à piedade pessoal”, diz o professor-assistente da Universidade de Nova York Dr. Xavier Pickett.

Em setembro, Kanye realizou um Sunday Service na New Birth Missionary Baptist Church em Atlanta. Em 2010, o Bispo Eddie Long, ex-líder da megaigreja, foi acusado de abuso sexual por quatro homens da congregação. Agora liderada pelo Dr. Jamal Bryant, a decisão da New Birth de permitir que Kanye fizesse seu show na igreja deles também pareceu suspeita. O espetáculo de ter um convidado famoso como Kanye West já seria suficiente para colocar a igreja novamente sob os holofotes, desta vez por outra razão que não as acusações contra Long. Os motivos da New Birth ainda não estão claros, mas devem ser analisados. “Se ninguém quer fazer a pergunta, então no que estamos realmente interessados? Queremos ser entretidos e queremos ser provocados?”, pergunta o Dr. Pickett.

Kanye se voltar para a religião não é algo sem precedentes. Artistas negros como Ma$e, No Malice e DMX (que liderou uma oração num Sunday Service em março), se distanciaram de suas personas originais do rap depois de buscarem a Deus. Kanye pode estar se apresentando como um líder de igreja, mas como um dos maiores rappers do mundo, ele tem uma influência incomensurável. Quando se trata da comercialização da religião, isso só é errado quando Kanye West decide fazer o mesmo? Pedimos aos professores Hinds e Pickett para nos ajudar a analisar as ramificações de Kanye tornando a igreja tão mainstream quanto o hip hop, no que dizem ser seu álbum mais virtuoso.

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Como vocês definiriam o papel da igreja negra na comunidade afro-americana?

Dr. Xavier Pickett: É importante chamar atenção para o fato de que a igreja negra nunca foi monolítica. O papel dela depende da comunidade. Isso exige que interroguemos outro fenômeno social, a ideia de comunidade. Os bairros não parecem mais como eram 60, 70 anos atrás através da dessegregação. O que antes era identificável como uma comunidade negra discreta está se tornando mais e mais difícil de identificar.

[Quando Barack Obama cortou laços com Jeremiah Wright] muitos cristãos brancos, e brancos no geral, não tinham ideia do que acontecia nas igrejas negras ou do tipo de pensamento teológico que ascendeu dessas igrejas em particular. Eles não entendiam como cristãos negros estão intrinsecamente ligados a formação desta nação.

Você não tem Martin Luther King separado das igrejas negras. Eles querem o “Dr. King 'Eu tenho um sonho'”, mas não a tradição religiosa que fez King sonhar em primeiro lugar. Há uma tradição negra radical que sempre existiu, da escravidão até os hush harbors, até Frederick Douglass, Sojourner Truth, que sempre foi extremamente importante para esta nação. Uma nação que às vezes, muitas vezes, disse ser cristã ou estar agindo em nome de Deus.

Dr. Jay-Paul Hinds: A igreja ainda tem um grande papel em termos de participação e do que ela significa para o cotidiano das pessoas, mesmo que isso esteja diminuindo nos últimos 20 anos. Para muita gente, das cidades do interior principalmente, a igreja ainda é o primeiro ponto de contato para recursos financeiros, de saúde e de ajuda psicológica. A igreja ainda é a principal fonte onde uma pessoa pode procurar ajuda. Não só para religião e espiritualidade, mas em termo do cotidiano das pessoas. Você tira isso e a comunidade fica abandonada.

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Desde o começo do ano, Kanye West vem realizando seu Sunday Services, onde ele refaz hip hop como músicas gospel. Como vocês descreveriam o significado da música dentro da igreja negra?

XP: Líderes religiosos conseguiram promover sua mensagem através da música gospel. Foi através do rádio e da televisão que pessoas como Mahalia Jackson e Thomas Dorsey conseguiram popularizar a música gospel, através dessas novas tecnologias. Eles conseguiram colocar a música no mainstream de um jeito que não era feito antes.

Música gospel em si é um amálgama de folk, religião e migração de pessoas negras do sul dos EUA para o norte urbano. Isso acabou mudando o som da música em lugares como Chicago. É uma mistura que não é uma música pura que só tem fontes religiosas. A mercantilização da religião e igrejas é uma continuação de como o cristianismo se proliferou. Novas religiões puderam nascer nos EUA porque a religião é vista não apenas como algo a ser vendido, mas algo que é sempre valioso no mercado.

JPH: Voltando na história, W.E.B. DuBois escreveu um livro chamado The Souls of Black Folks onde chamava os spirituals de o grande presente que os afro-americanos deram ao país. Música é essencial para a experiência religiosa afro-americana, que vem antes de DuBois. Isso vem das canções de trabalho durante a escravidão.

Você pode debater se o que Kanye West está fazendo é música gospel real ou música secular. Ele só está tentando vender discos ou está tentando expressar algum tipo de desejo espiritual? Não sei. Mas o que ele está fazendo é usar o modo primário da igreja negra. Mesmo o jeito como pregadores negros apresentam seus sermões é cantando, num modo melódico. Você não pode escapar disso. Ele está abordando algo que já é parte da experiência da igreja negra. Acho que é por isso que esses esforços dele estão sendo bem recebidos.

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É difícil dizer o que é falso e o que é real assistindo filmagens de um Sunday Service numa igreja como a New Birth Missionary Baptist Church em Atlanta.

JPH: Não sei quanto disso para ele é um meio de reconciliação. Uma conversão em termos do que ele acredita que Jesus está fazendo por ele e com ele, mas também seu jeito de se reconciliar com uma comunidade. Se você quer se reconciliar com a comunidade negra, você tem que voltar para a igreja negra. Se você quer convencer a comunidade de que “Eu voltei pra casa”, e tudo que eu disse não era verdade. Ou talvez fosse verdade, mas ainda quero que vocês gostem de mim. Você tem que voltar para a igreja negra porque a igreja negra vai te aceitar de volta.

Se ele voltar para a Casa Branca e continuar falando do jeito como estava falando antes, o que isso significa em termos do que ele disse na New Birth? Isso significa que não é algo autêntico? Ainda pode ser tão real como sempre. Não significa que ele mudou suas visões políticas ou que mudou suas visões de como ele se sente sobre a comunidade afro-americana, só porque ele acredita que Jesus mudou sua vida.

Qual a diferença entre ele fazendo uma música como “Jesus Walks” e ele fazendo um álbum conceitual como Jesus Is King? Como é mercantilizar a religião e a igreja?

JPH: Kanye não está fazendo nada de diferente do que os televangelistas fazem toda semana, que é vender a palavra, vender a mensagem, vender o evangelho. É tipo “Se eu não vender isso direito, não terei espectadores. Se não vender isso direito, ninguém vai comprar minhas fitas. Se não vender isso direito, ninguém vai vir para minhas conferências”. Mesmo num nível micro, “Se eu não vender isso direito, as pessoas não virão para minha igreja”. Membros, dízimo, tudo isso é sobre mercantilizar o evangelho. Ele não está fazendo nada diferente.

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O perigo é perder a mensagem nessa repaginação do evangelho. O foco se torna como isso se comunica em vez da mensagem em si.

Meu medo nisso é que muitas pessoas que estavam na New Birth, que não frequentavam a igreja há anos, e decidiram voltar naquele domingo e colocar a vida em ordem por causa do que Kanye disse. Vou nascer de novo hoje por causa do que Kanye disse. Há uma irresponsabilidade nisso quando você entra nesse tipo de fórum. Você não pode fazer isso toda semana. Você pode converter pessoas inicialmente, mas essas pessoas vão entrar na comunidade para serem ajudadas a desenvolver um estilo de vida ético verdadeiro?

XP: Há uma longa história de mistura de religião e capital, o que geralmente é chamado de prosperidade do evangelho. Igrejas negras não são isoladas nisso, e elas também são fornecedoras de neoliberalismo. Os sons negros que se tornaram populares estão se tornando mais desejáveis. A Motown queria não apenas o som, mas os cantores que saíam dessas igrejas. Igrejas negras são um terreno fértil para cantores que às vezes lideram uma igreja, e acabam tendo sucesso nacional e secular como Aretha Franklin e Sam Cooke.

As pessoas estão certas em ficar céticas com os motivos dele?

JPH: Você pode ser cético, mas acho que você não pode julgá-lo. Você pode se perguntar por que ele está fazendo isso, mas não pode julgar onde ele está em termos de fé. Você não pode julgar que se ele voltar para a Casa Branca, ele não pode ser um cristão. Se o TMZ o achar num clube de strip-tease bebendo Hennessy, você não pode dizer que ele se afastou da fé.

XP: Kanye, em particular, tem um fardo maior que a maioria dos artistas considerando sua história. Esse é o mesmo cara que disse “George Bush não se importa com os negros”, mas também visita Trump no Salão Oval – e ele sabe o que Trump acha dos negros. Então isso levanta a questão, OK, o que você acha dos negros, Kanye? Você acha que como os negros amam Jesus eles vão te perdoar também? Isso também está no fundo em termos de como a igreja negra pode ser tão importante. Há uma suposição de que os negros perdoam, especialmente cristãos negros.

Isso levanta ainda mais questões sobre essas igrejas [que o convidaram]. Por que vocês querem Kanye na sua igreja? Vocês querem se aproveitar dessa base de fãs, desse nome, da autoridade, da associação e dos valores que vêm com isso? Se sim, para qual propósito? Se vocês têm Deus, por que precisam de Kanye West?

Kristin Corry é parte da redação da VICE EUA.

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