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Doenças Tropicais Mantêm os Norte-americanos na Pobreza

Um efeito dessa pobreza é o crescimento dos casos de doenças tropicais negligenciadas no país, particularmente no Sul e ao longo da Costa do Golfo, atingindo principalmente comunidades negras e hispânicas.

Sem-teto em São Francisco. Foto via usuário do Flickr Evan Blaser

As estatísticas da miséria nos EUA são de chorar. O relatório anual do censo norte-americano sobre renda mostrou que uma em cada cinco crianças norte-americanas vive na pobreza, que os norte-americanos estão ganhando menos que em 2007 e que a renda média dos lares negros conta com US$ 23 mil a menos que os lares brancos. No ano passado, um parecer do National Poverty Center revelou que o número de lares americanos vivendo com menos de US$ 2 diários por pessoa cresceu de 636 mil em 1996 para 1,65 milhão em 2011.

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Um efeito dessa pobreza é o crescimento dos casos de doenças tropicais negligenciadas no país, particularmente no Sul e ao longo da Costa do Golfo, atingindo principalmente comunidades negras e hispânicas. Mais de 1 milhão de pessoas carregam o parasita que causa a doença de Chagas, uma infecção crônica que leva a problemas cardíacos ou a danos intestinais em 40% dos casos.

Há várias outras doenças similares que ilustram como os norte-americanos pobres são negligenciados pela sociedade como um todo. Alguém que entende do assunto é o médico Peter Hotez, do Sabin Vaccine Institutee do Hospital Infantil do Texas, em Houston. Ele vem trabalhando com doenças tropicais negligenciadas desde o começo da carreira, então me encontrei com ele para falar um pouco mais sobre o assunto.

VICE: As doenças tropicais com as quais você trabalha são classificadas como “negligenciadas”. Você sente que o seu trabalho também é negligenciado?
Dr. Peter Hotez: Há um grupo dessas doenças. Nossa lista original, publicada em 2005, tinha 13 ou 14 “doenças tropicais negligenciadas”, e agora a Organização Mundial de Saúde expandiu a lista para 17 doenças – e esta é uma boa lista. Gosto de chamá-las de as doenças mais importantes do mundo das quais você nunca ouviu falar. Essas são as doenças mais comuns entre as pessoas pobres. E o problema é que elas só ocorrem entre os pobres, então ninguém presta atenção a elas. Uma das coisas que fez o HIV/AIDS tão conhecido é que tivemos um grupo de conscientização muito forte que começou nos EUA, América do Norte e Europa, e não temos isso para essas doenças, porque elas só ocorrem entre os extremamente pobres.

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Um dos nossos estudos mostrou que algumas das taxas mais altas de doenças tropicais negligenciadas estão ocorrendo entre os pobres dos países ricos, incluindo os EUA. Essas não são doenças apenas da África Subsaariana.

Dr. Peter Hotez. 

Que tipo de doenças estão aparecendo nos EUA agora que não estavam aqui antes?
Bom, não é que elas não existiam aqui antes; era só que ninguém estava prestando atenção nelas, o que também é interessante.

Uma delas é a chamada doença de Chagas: uma infecção provocada por um parasita transmitido pelo inseto barbeiro, muito comum no Texas.

Então você acredita que essas doenças são ignoradas especificamente por afetarem pessoas pobres?
Certo. Se essas doenças estivessem afetando a classe média ou os ricos da América do Norte ou Inglaterra, ou de qualquer outro lugar da Europa, nunca toleraríamos isso. Mas como elas ocorrem apenas entre os mais pobres dos pobres, elas passam despercebidas.

Com isso em mente, qual é sua abordagem de trabalho?
Acho que a sua pergunta é: “Como você faz as pessoas prestarem atenção a essas doenças?”

É. Como você faz as pessoas se importarem com isso, mas também como você faz as pessoas se importarem sem se mostrar como uma figura salvadora?
Bom, uma coisa que sempre digo é que essas doenças não só ocorrem em cenários de pobreza; também temos evidências fortes de que elas causam pobreza. Doenças como a esquistossomose, que é uma infecção provocada por um verme, e outra chamada toxocaríase – que ocorre entre os pobres norte-americanos – realmente reduzem a inteligência. Elas diminuem o QI entre as crianças, e estudos mostram que, quando uma infecção crônica ocorre na infância, [isso pode] reduzir o salário futuro em 40%. E outras doenças deixam as pessoas doentes demais para trabalhar.

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Essa é a razão furtiva para milhões de pessoas na base da pirâmide não conseguirem escapar da pobreza: porque estão doentes. Em muitos casos, temos intervenções que são tão baratas que poderíamos levantar bilhões de pessoas da pobreza através disso. Na verdade, chamamos as vacinas que fazemos nos nossos laboratórios de “vacinas antipobreza”, porque elas podem causar um impacto não só na saúde, mas também no desenvolvimento econômico.

E essas vacinas estão recebendo apoio? Suponho que se você diz a esses políticos e grandes empresas que pessoas pobres têm essa doença em particular, o que também ajuda a mantê-las na pobreza, você ouve muitos comentários preocupados na sala, mas nada realmente acontece. Como alguém que trabalha com essas doenças, você sente que está recebendo apoio ou sente que está batendo a cabeça na parede?
Eu diria os dois. Temos dias bons e dias ruins. E temos feito um trabalho muito bom conseguindo doações da União Europeia: eles estão apoiando nossa vacina contra vermes. O Carlos Slim Health Institutetem apoiado nossas vacinas contra Chagas e leishmaniose. Temos recebido apoio da Gates Foundation, do governo norte-americano, do National Institutes of Healthe de grandes companhias como a Michelson Medical Research Foundation.Isso nos permite desenvolver as vacinas nos primeiros estágios dos testes clínicos. O desafio será os últimos estágios dos testes clínicos e o licenciamento – como isso será financiado. Não temos todos os elementos do modelo de negócio pensados ainda, mas fizemos progressos enormes conseguindo colocar essas vacinas em testes clínicos.

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O ciclo de vida do esquistossomo (clique para aumentar). 

Você disse que muitas das soluções para essas doenças são simples; então, o problema aqui seria que vocês têm as vacinas e os remédios, mas é difícil distribuí-los, educar e fazer isso chegar às pessoas certas?
Sim, o problema às vezes tem relação com acesso global – como garantir isso? E acreditamos que temos boas estratégias em termos de remédios eficientes, que os distribuímos para tratamento de vermes e esquistossomose, por exemplo. Eles parecem estar chegando às pessoas que precisam. Na verdade, a Agências Americana de Desenvolvimento Internacional acaba de comemorar o bilionésimo tratamento, então parece que as pessoas estão tendo acesso. E foi assim que projetamos parcialmente o pacote quando escrevemos esses trabalhos em 2005 e 2006. Achamos que seria simples e fácil, especialmente quando os remédios estão sendo doados e não precisam ser dados por profissionais de saúde.

Como a distribuição desses remédios nos EUA se compara à distribuição no resto do mundo?
A ironia é que estamos tendo dificuldade para fazer as pessoas aceitarem quão comuns essas doenças tropicais negligenciadas são nos EUA. As pessoas não querem admitir que temos pobres neste país, mas temos 1,65 milhão de famílias norte-americanas vivendo com menos de US$ 2 por dia. Então estamos trabalhando com o Congresso para termos uma legislação específica promulgada. O congressista Chris Smith, de Nova Jersey, propôs recentemente uma legislação no Congresso chamada Lei para Acabar Com Doenças Tropicais Negligenciadas, que aborda o problema não só das DTNs, como a esquistossomose genital feminina na África, mas também com DTNs aqui nos EUA.

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Então a presença de DTNs nos EUA se torna uma evidência de algo sobre o que os americanos não querem falar, que é a existência de uma pobreza generalizada no país?
Isso mesmo, e o assunto se acendeu de novo com o debate sobre a imigração – sabe, as 50 mil crianças da América Central detidas hoje na fronteira com o México. Uma das razões que eles dão para deportar essas crianças é que elas podem introduzir aqui todas essas doenças, mas na verdade essas doenças já estão aqui há muito tempo.

Sempre fui fascinado pelo número de jovens americanos que querem “salvar a África”, mas que não entendem que há muita pobreza bem na porta de casa.
O que impressiona é a pobreza extrema que estamos vendo agora. Hoje, temos quase 20 milhões de norte-americanos vivendo numa metade do nível de pobreza dos EUA e estamos nos aproximando de um nível – principalmente no Sul e na Costa do Golfo – que alcança o nível de pobreza de países de renda média. A pobreza é o determinante esmagador. Chamamos isso de “doenças tropicais”, o que às vezes é um equívoco. Essas são doenças de pobreza extrema. Sim, o clima é um componente, mas a pobreza é o determinante primordial.

Você presenciou uma ascensão da pobreza no seu tempo como médico?
Bom, uma ascensão no sentido de que, antes, ninguém prestava atenção nisso – agora estamos prestando. Viemos para o Texas três anos atrás para criar a National School of Tropical Medicine, que é modelada de maneira similar a escolas em Londres e Liverpool. A diferença é que estamos trabalhando num país com doenças endêmicas aqui na parte sul dos EUA e Houston, então isso tem sido algo de muito poderoso: a ideia de que estamos fazendo intervenções não só pelas pessoas na África, mas também para doenças negligenciadas entre os pobres daqui. As companhias farmacêuticas têm ajudado doando medicamentos, mas uma coisa completamente diferente é convencer os acionistas dessas companhias a investir em pesquisa e desenvolvimento de novas intervenções. Então sentimos que precisamos fazer isso pelo setor sem fins lucrativos.

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Tradução: Marina Schnoor