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Música

Os Smiths nasceram há 30 anos e isso merece um artigo

Não haverá ninguém que coloque mais ênfase numa efeméride do que os aficionados de música.

Não haverá ninguém que coloque mais ênfase numa efeméride do que os aficionados de música — edições deluxe de um disco com dez anos, reedições de outro com 20, DVDs especiais de um concerto que aconteceu há 40, lembrete de que artista X veio ao mundo há 70, e por aí fora. É algo que acontece com tanta naturalidade como respirar. A pop, por ser pop, é efémera. Mas o filtro nostálgico confere-lhe sempre um valor especial, e é por isso que hoje ainda há gente que ouve Duran Duran e taxistas que acham que os anos 80 foram uma bênção para a música depois de discutirem connosco como no baptizado da filha uma das canções que se escolheu foi a “Je T'Aime Moi Non Plus” — algo que mereceria um artigo por si só. A efeméride de hoje incide sobre os Smiths, essa banda maravilhosa que terminou demasiado cedo e que deixou um legado ainda imensurável. Em 1983, no dia de Nossa Senhora de Fátima, o quarteto de Manchester editava o seu (fabuloso) primeiro single, Hand In Glove. A partir daí a pop — e o mundo indie — nunca mais seria o mesmo. Estávamos na presença de uma banda reaccionária, que voltava a aproveitar as guitarras por contraste com os sintetizadores tão em voga na altura, que almejava liderar o mundo sem necessariamente o querer de verdade, ennui paradoxal que resultou em quatro discos, um porradão de canções geniais e uma vontade enorme dentro do grupo troll nacional em fazer do grito “toca Smiths!” o novo “Freebird!”. Falar dos Smiths é complicado não se sendo um adolescente desajeitado, o enfoque da maioria dos temas. Claro que dentro de nós existe sempre um adolescente desajeitado — não é por, subitamente, passarmos da casa dos 20 que deixamos de nos preocupar com a vida e abandonamos a melancolia. O que confere às canções dos Smiths a eternidade que merecem: souberam traduzir, melhor do que ninguém, essa vontade de desnascer, os problemas existenciais de um miúdo que pouco leu de Sartre mas que sabe que o mundo e o romance e a vida em geral são verdadeiramente merdosos (e nem precisa de ter lido: there's more to life than books, you know). A discografia completa dos Smiths é intocável porque é sempre real, e é sempre real porque lhe conferimos, através das nossas experiências pessoais, esse contacto com a realidade. Talvez só o Ira Kaplan não sinta verdadeiramente o tremor na voz do Morrissey (disse-mo ele, após o concerto deste ano na Aula Magna). Não que seja o pseudo-terrorista vegetariano a única coisa a reter na banda. Há os riffs do Johnny Marr, um dos dez guitarristas mais importantes deste século (e não digo cinco por pudor), há as linhas de baixo resgatadas ao funk do Andy Rourke (“Barbarism Begins At Home” devia ser ensinada, obrigatoriamente, a toda e qualquer malta que decida um dia pegar num baixo) e o quase invisível, mas não menos importante, Mike Joyce a segurar em tudo isto (tal qual como no ritmo da anteriormente citada “Handsome Devil”). Nos seus piores dias os Smiths eram capazes de fazer uma boa canção. Nos melhores, a música era transcendental, transversal, terrivelmente tradutora de um estado de espírito que na literatura encontra o seu paralelo no romantismo — e os Smiths, pese o descontentamento geral na lírica do Morrissey, eram uns românticos, e que não se diga assexuados (“This Charming Man” tanto pode ser um hino ao amor gay como um encontro fortuito numa colina, e “Miserable Lie” é tão deliciosamente perversa que até nos faz corar). Eram músicos e eram, ao mesmo tempo, poetas. O primeiro single surgiu há precisamente 30 anos. O seu legado durará para sempre. Em Morrissey e Marr, temos muito provavelmente aquele que será o melhor par da história da pop a seguir a Lennon/McCartney, e —porque não? — serão até superiores a estes (para alguns) intocáveis. E ao contrário de muitas outras bandas que terminam cedo a sua actividade, a sua lenda perdura porque os rumores de uma reunião, que surgem ano após ano, contêm a mesma fé independentemente dos maus fígados que, certo e sabido, ainda existem entre o vocalista e os demais. Uma fé que nos permite rematar: “Hand In Glove”, uma canção precisamente sobre o encontro de Morrissey com Marr, surgiu há 30 anos. Quem sabe não se lembrarão disto e sanarão todas as suas divergências e arranjam forma de dar pelo menos um último concerto, uma última despedida aos que tanto os amam. Nossa Senhora nos ajude.