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Recomendar filmes de trauma negro não é tão antirracista quanto você acha

Tem uma desconexão entre a mídia que o público branco usa para se educar e a mídia que as pessoas negras realmente apoiam.
​Jessica Chastain and Octavia Spencer the help
Jessica Chastain e Octavia Spencer em 'Histórias Cruzadas'. Foto: AA Film Archive / Alamy Stock Photo.

Pra muitas pessoas negras, junho foi um mês incrivelmente estressante. Tinha essa ênfase generalizada em expôr racismo e violência contra nós, e a mídia acabou se tornando um gatilho. Pra mim, isso aconteceu quando o vídeo do assassinato de George Floyd não saía da minha página de recomendações do TikTok, e quando assisti o tio de Rayshard Brooks chorar na CNN. Nesse último, eu e minha mãe nos olhamos num momento de tristeza profunda e choramos.

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Dor negra é o pano de fundo da turbulência política atual, mas em vez de ler a academia negra ou ouvir os discursos de revolucionários e ativistas antirracistas negros, parece que muitos brancos – que, pela primeira vez na vida, estão se educando sobre racismo – em vez disso decidiram se voltar para filmes e televisão.

Os dois meios permitem exames aprofundados de assuntos difíceis, mas quando se trata de falar sobre raça, parece que muitas vezes encontramos narrativas que retratam negros como subordinados ou sofrendo.

Esse tem sido um tema comum nas últimas semanas. Por exemplo, Histórias Cruzadas entrou nos trending topics da Netflix, que também resolveu criar o gênero #BlackLivesMatter, apesar de várias acusações de discriminação nas escolhas de elenco para seu conteúdo original. Infográficos do Instagram tentando educar as pessoas sobre antirracismo recomendavam filmes sobre negritude que só retratam violência. O mesmo vale para as listas “filmes para assistir se você quer ser antirracista” de jornalistas brancos.

Eu daria a eles o benefício da dúvida e sugeriria que eles pelo menos estão tentando abordar o antirracismo sem depender dos negros para educá-los, mas considerando os muitos anos em que negros têm falado sobre representação, esses esforços começam a parecer vazios. Há uma desconexão entre a mídia que o público branco usa para se educar e a mídia que as pessoas negras realmente apoiam. As histórias de que o público branco se cerca geralmente são aquelas que os negros não podem assistir sem experimentar alguns tipo de transtorno de estresse pós-traumático.

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A Dra. Fatoumata Jatta, psicóloga clínica de Londres, diz que essa é uma experiência comum entre seus pacientes: “Vejo isso não só com meus pacientes de minorias, mas comigo também. O que sabemos por pesquisas é que simplesmente ver um tipo de dor em outros pode causar uma reação emocional nos espectadores, às vezes até uma reação física. Uma das coisas que também pode ter impacto é quanto nos identificamos com o que testemunhamos, então uma pessoa negra vendo essas imagens tem mais chance de se identificar com o que está acontecendo. Essas imagens podem ser um gatilho de nossas experiências passadas e presentes”.

Como Hollywood poderia realmente mudar o jeito como retrata a experiência negra através de suas lentes principalmente brancas? Óbvio: contratar mais negros para escrever, dirigir, produzir e assim por diante. Mas em vez de tirar um tempo para observar o momento atual e realizar uma mudança sistêmica numa indústria em hiato por causa do COVID-19, Hollywood optou por fazer o tipo de campanha de relações-públicas que você esperaria ver num episódio de Bojack Horseman.

"estamos vendo mudanças superficiais sendo feitas na superestrutura (tornar a arte, mídia, publicidade 'menos racista') para agradar os manifestantes e distrair das mudanças materiais na base (abolir a polícia, prisões e redistribuir capital)"

“Estou muito irritada com a conversa sobre diversidade atual, porque sinto que isso está vindo de um lugar de Hollywood não querendo realmente fazer mudanças de longo prazo”, diz Jourdain Searles, crítica de cinema e roteirista negra.

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Recentemente, Searles entrevistou Kendrick Sampson, ator de Insecure da HBO que assinou uma carta com outros atores negros pedindo que Hollywood aborde como a negritude é representada. Para Searles, foi interessante testemunhar como um ator do nível de Sampson mostrava uma preocupação legítima com os manifestantes nas ruas e a mudança institucional – mas ela fica imaginando se o resto da indústria faria o mesmo.

“Fico imaginando o que seria necessário para fazer o resto de Hollywood se importar, fora pessoas que sempre foram ativistas”, ela diz. “Em vez de fazer novas mudanças, eles estão encontrando coisas antigas de que costumávamos reclamar no Twitter para consertar, como o #OscarsSoWhite. Parece que eles estão dizendo ‘Bom, agora finalmente podemos prestar atenção nos velhos problemas de diversidade com que as pessoas estavam irritadas’, o que me parece um golpe barato.”

O diálogo atual cercando animação e blackface é um exemplo perfeito disso – não porque não vale a pena ter essas conversas, mas porque celebridades dando declarações de desculpa por escolhas de que outra maneira não iriam se desculpar não é exatamente o que incontáveis manifestantes corajosos se arriscando a pegar COVID-19 estão pedindo.

Quando observamos o uso de blackface em séries de TV como 30 Rock – que terminou antes do movimento atual – a ação repentina de apagar todos os episódios com blackface parece uma medida meia-boca vinda de uma consciência culpada. Apenas quatro anos atrás, Tina Fey escreveu um episódio de Unbreakable Kimmy Schmidt onde um personagem fazia yellow face. Esse também foi um episódio onde Fey “cancelou” a cultura do cancelamento retratando os asiáticos americanos como uma multidão raivosa da internet irritada, com todo o direito, com uma caricatura racista.

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O que coloca a questão: Se Tina Fey é tão apologética e compreensiva agora, por que ela ignorou as preocupações das pessoas quatro anos atrás? E por que ela colocou uma mulher branca num papel de nativa americana?

A resposta curta: essa onda recente de desculpas é apenas performance. Celebridades e criativos brancos estão percebendo que podem ganhar crédito cultural dizendo que não têm mais crenças racistas que tinham pouco tempo atrás. É por isso que séries como Family Guy, The Cleveland Show e Simpsons estão se afastando das posições “anti-pessoas-não-brancas” que tinham há tempos para agradar populações de que eles desdenharam por tanto tempo.

Francamente, não dou a mínima para brancos se desculpando por essas coisas. Parece uma autogratificação; um tapinha nas costas por fazer o mínimo para desmantelar décadas de representação racista. O que realmente quero ver são ações claras e honestas para financiar arte negra dentro da indústria cinematográfica. Pare de dar trabalho para os mesmos quatro atores que se beneficiam de nepotismo, dê mais bolsas para diretores negros que não podem pagar uma faculdade de cinema, e erradique a ideia de que uma história sobre negritude precisa ser sobre trauma para ter algum valor. Há incontáveis outros jeitos de falar sobre racismo, como comédia, ficção científica ou terror. Desculpas são inúteis a menos que possamos ver ações concretas para desmantelar o racismo de que pessoas brancas continuam se beneficiando.

@haaniya

Para mais informações sobre como se envolver, acesse Black Lives Matter e Brown Girl Butterfly Project.

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