Há quem diga que Cidade de Deus (2002), filme de Fernando Meirelles inspirado no livro de Paulo Lins, dissemina imagens negativas e de violência; para a sensibilidade conservadora é perigoso trazer à tona uma história sobre criminosos. A representação das camadas populares e a denúncia escancarada da desigualdade pesam. Tudo agride em Cidade de Deus: as mortes, a violência gratuita, o descaso do poder público e da sociedade, o exército de crianças e até mesmo as falas dos personagens. A grande verdade é que a história da favela, seja ela retratada por Paulo Lins ou por Fernando Meirelles, incomoda.
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A obra cinematográfica fez sucesso para além dos cinemas brasileiros, tendo seu reconhecimento na Europa e nos Estados Unidos – tanto que foram quatro indicações ao Oscar de 2004: Melhor Diretor, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Edição e Melhor Fotografia.
Uma das questões mais marcantes em torno da produção cinematográfica é o fato de o elenco fazer parte do contexto de Cidade de Deus – bairro periférico do Rio de Janeiro que já chegou a ser considerado o mais perigoso do município –, inclusive parte da equipe técnica, como no caso do ator e diretor Luciano Vidigal, que começou no grupo de teatro Nós do Morro e se tornou cineasta em 2002.“Antes do filme, eu cantava rap e vivia como muita gente da favela vive, fazendo escolhas que não são tão comuns e necessárias fora da favela" – Eduardo BR
"O Fernando Meirelles e a Kátia Lund vieram aqui pro morro e convidaram o fundador do grupo pra achar atores jovens e negros das favelas do Rio. Eu fiz esse mapeamento, daí acompanhei todo o processo e treinamento e, depois, o filme entrou em produção. Cidade de Deus foi meu maior estágio de cinema como cineasta”, relata.A inserção dessas pessoas, com certeza, trouxe protagonismo para o filme e representa até um ponto de virada na vida de muitos a partir do audiovisual. Para Eduardo BR, que interpretou Jorge Piranha, a participação no longa trouxe uma mudança completa de vida. “Antes do filme, eu cantava rap e vivia como muita gente da favela vive, fazendo escolhas que não são tão comuns e necessárias fora da favela, mas que, dentro dela, se tornam necessárias por uma série de questões", rememora. "Eu vivia como muitos jovens vivem em algum momento da sua vida. A principal mudança na minha vida foi a abertura de novos horizontes.”
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A realidade que era vista de forma determinista passou a ter uma possibilidade de mudança. Vidigal menciona atores que conseguiram sucesso em suas carreiras até internacionalmente, como Douglas Silva (que interpreta Dadinho na infância) e Thiago Martins (no papel de Lampião). “O próprio BR, que era traficante e virou diretor de cinema”, comenta.No caso de Eduardo BR, a atuação no filme foi a descoberta de uma paixão: a parte técnica do cinema. "Com mais dois amigos, fundei a ONG Nós de Cinema, onde fiquei durante um tempo. Em 2006, eu saí e comecei a trilhar meu caminho para me tornar diretor, lancei meu primeiro longa-metragem no cinema e estou muito feliz."Dez anos depois, Luciano Vidigal e o cineasta carioca Cavi Borges decidiram mostrar a realidade de Cidade de Deus e como os atores se encontravam. Dentre muitas histórias, o que mais marca nos relatos do documentário é a questão dos baixos cachês. “Não foi difícil reencontrar os atores, muitos se tornaram meus amigos. 70% deles é do grupo Nós do Morro. A dificuldade é que alguns não quiseram dar entrevista pelo tema. Se você vê o filme, você percebe que muitos ficaram revoltados por não terem recebido essa retribuição financeira de uma forma bacana”, relata Vidigal.No próprio documentário, os atores falam abertamente sobre quão pouca foi a quantia recebida. Alguns dizem ter comprado alguns utensílios domésticos, outros, um computador. E essa passa a ser a principal crítica em relação à produção cinematográfica. Embora o filme tenha sido a oportunidade de um ponto de virada, não foi para todos. “Quando encontrei o Renato Sousa, que fez o Marreco, eu fiquei bem mal. Estava trabalhando em uma oficina e o achei muito talentoso. Ele assumiu que se deslumbrou, que foi difícil aceitar o sucesso. Também teve um dos atores, o Jeff Xander, que desapareceu, não sabemos se faleceu”, conta Vidigal.
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Diante disso, não dá para dizer que apenas o fato de ter participado de um filme indicado ao Oscar seria suficiente para capacitar e dar alicerce para essas pessoas. "Quando você lida com atores que têm uma estrutura social precária, você, como realizador, tem que pensar muito sobre isso", pondera Vidigal. "Você tem que criar uma certa estrutura para essas pessoas. O Fernando Meirelles e a Kátia Lund tinham essa preocupação, mas o elenco era muito grande. Então, fica difícil julgar. Eu aprendi muito com o filme, principalmente, a lidar com esse tipo de pessoa e com o mercado, que não é fácil.""Quando você lida com atores que têm uma estrutura social precária, você, como realizador, tem que pensar muito sobre isso" – Luciano Vidigal
Ele pontua que foi difícil para o elenco compreender como tinham ganhado tão pouco para atuar em um filme dessa magnitude. “Eu sou ator também, já tem 30 anos de carreira, mas até hoje discutir cachê é uma questão. O valor vai de acordo com a pessoa que você é, com o empresário que você tem, que vai brigar pelo valor, e 90% do elenco nunca tinha feito um filme de longa-metragem. Então, foi avaliado assim, foi o primeiro cachê deles. A tabela para ator iniciante no audiovisual brasileiro é uma coisa polêmica”, explica.
Representatividade versus racismo
Para Luciano Vidigal, o documentário é uma grande reflexão sobre o Brasil 10 anos depois do lançamento de Cidade de Deus. “Ser artista é uma profissão muito mágica, mas, ao mesmo tempo, é muito árdua e injusta, principalmente, para o artista negro”, comenta. Durante entrevista ao Itaú Cultural em 2017, Paulos Lins revelou que o objetivo de seu livro era diminuir a violência e a matança da população negra e pobre feita por policiais. Ou seja, a motivação de escrita da obra é algo que ainda permeia os desdobramentos dessa realidade: o racismo.Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter, Instagram e YouTube.