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Música

Quinze Anos Se Passaram e o Hip Hop Britânico Ainda Não Conseguiu Superar o 'Brand New Second Hand' do Roots Manuva

Se você acha que no fim dos anos 90 o hip hop britânico era só um chupinhado do Dr. Dre e do DJ Premier, sinto dizer que você está (bastante) atrasado.

O hip hop britânico ocupa um lugar estranho e malquisto na música. Eternamente impregnado por malhas cafonas de crochê, skunk barato, porém potente e divagações astrológicas de mauricinhos de escola particular, esse pouco convincente e perene gênero lutou pra encontrar uma voz original, mesmo com seus tantos sotaques regionais. O rock’n’roll foi uma invenção norte-americana, mas bandas como Beatles e Rolling Stones o cooptaram tão bem que a ideia de um desgracento classe-média de Kent cantando como se tivesse nascido e criado no delta do Mississippi chegou a parecer a coisa mais normal do mundo. As origens do punk podem ser infinitamente disputadas, mas as bandas de punk inglês tem um som reconhecidamente britânico, e foi na mesma época que a música das ilhas caribenhas estava começando a ser reinterpretada por todo lado da Grã-Bretanha, de Brixton até Birmingham.

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O hip hop britânico, entretanto, sempre cheirou muito à paga-paus de americanos, estudantes de filosofia dançarinos de break e hippies que pensam que murmurar num microfone sobre dar uma chance à paz vai, de fato, dar uma chance à paz. Os artistas britânicos que poderiam ter feito discos de hip hop gravitaram pros lados do garage, grime ou trip-hop. Talvez isso tenha rolado porque essas cenas eram mais próximas das cenas de reggae e dub que as precederam. Em todo caso, há uma exceção significativa à regra do “hip hop inglês ser uma grandessíssima merda”. Essa exceção vêm na forma de um disco feito há quinze anos por um cara do sudoeste de Londres chamado Rodney. O disco é o Brand New Second Hand do Roots Manuva e é tão melhor do que qualquer disco de hip hop britânico que parece até piada.

Apesar de ser inequivocamente um disco de hip hop, Brand New Second Hand é entrecortado por ragga e dub. É esparso, pesado no grave e o flow de Rodney Stockwell, com uma pegada de patois jamaicano, dá ao disco uma vibe de dancehall que o separa dos grandes nomes britânicos que chupinhavam Dr. Dre (quando queriam ser gangstas), ou DJ Premier (quando queriam ser conscientes). Do momento em que a primeira faixa, “Movements”, começa acordar pra vida, a produção te coloca num domínio misterioso e inquietante. Há quase um sentimento de Guerra Fria nas lavadas paisagens urbanas que Roots evoca em “Movements”, uma ideia de que você está sendo observado, que atrás de cada esquina há um perigo oculto e que, a qualquer momento, o próprio rapper vai saltar pra fora da música e vai “slap the bacon out your mouth, dance upon your sarnie” (arrancar esse bacon da sua boca no tapa, dançar em cima do seu lanche). Coloque isso nos fones de ouvido e você vai achar que facilmente enfiaria uma faca em alguém que te olhou torto.

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Há alguns discos que você conhece palavra por palavra, e há alguns que você conhece melodia por melodia. Brand New Second Hand é um disco que eu conheço foneticamente. Enquanto o Roots Manuva usa sua voz como instrumento, deixando as linhas da melodia fluírem sobre as batidas, além de contar histórias envolventes e profundas. “Inna” é uma história sobre se sentir deslocado num bairro da moda e ela começa assim:

"There were trendy wannabes staring in my face

As I stepped to the place I could taste their glare

Tall hair, small hair, nuff shapes of hair

Swinging out blabber with the coin to spare

Me myself, I only got five quid to spend

And once I've broken this note my pockets on a bend"

(“Tinham uns wannabes modernosos me encarando / quando entrei no lugar senti seu olhar / cabelo alto, cabelo pequeno, cabelos de todas as formas / espalhando blábláblá pra todo lado com moeda de sobra / e eu aqui só com cinco mangos pra gastar / e uma vez que eu gastar essa nota, meus bolsos estarão do avesso”)

Muita gente esquece disso, mas no fim dos anos 1990, quando o fanzine “Shoreditch Twat” andava na contramão das transformações do leste de Londres, cortes de cabelo -- particularmente o Shoreditch Fin -- eram os mais proeminentes marcos de uma tribo. Rodney vai a um bar, sozinho, mas diferentemente de todos ao seu redor, ele não tem muito dinheiro, e diz pra garota do bar que ela tem um cabelo bonito e marreta um drink dela. Lá pelo “in the midst of them sweaty boogie folk” (meio do povo suarento), Rodney dá um tapa num hash e acaba tirando sua camiseta antes de ser abordado pela garota do bar e um par de seguranças, que o derrubam no chão. A faixa narra a paisagem em transformação de Londres e também capta o que deve ter sido ser um negro de Stockwell amado pelos caras brancos de classe média, mas que também sabia que “the company of us cats, they didn’t want to keep” (eles não queriam a nossa companhia).

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“Soul Decay” é um retrato da Grã-Bretanha no final do século, mas que poderia ter sido escrita ontem:

"Will you live to work or will you work to live?

Will you step to the future or dwell on the past?

For what be your fight, be it colour or class?"

(Você vai viver pra trabalhar ou vai trabalhar pra viver? Você vai caminhar pro futuro ou se permanecer no passado? Qual será sua luta, seja cor ou seja classe?)

É sobre a contínua desigualdade e o triunfo do dinheiro sobre a moral, sobre como o “love of the pound” (amor pela libra) pode eternamente te comprometer. É tipo uma história da Bíblia, cheia de referências à tentações e ao mal, uma que vai fundo nas preocupações humanas mais antigas, ao invés de ficar presa em um lugar qualquer da balada.

Em todo o disco há referências à política britânica, à corrida dos ratos, à dívida do terceiro mundo mantendo o povo no seu lugar. O Roots Manuva é um rapper bastante idiossincrático, não se gaba e nem é arrogante, e também não rolam prepotentes “vibes positivas”. Ele tem uma abordagem afiada, realista e imersiva na sua forma de contar histórias, que em Brand New Second Hand o mantém afastado daquela onda barbuda que maldiz os EUA e louva a paz, surfada pelos rappers que se dizem anti-gangsta.

Há um tom de pregação que talvez venha da sua criação na Igreja Pentecostal, uma postura de pregador no púlpito que o permite abordar sérias questões morais e políticas sem soar como um leviano. Ele é sempre cordial, sempre sincero, mas na maioria das vezes perspicaz. Mas ele não é um religioso bitolado. Você consegue perceber que ele passou por tudo aquilo e sobreviveu pra contar a história. Em “Clockwork”, ele diz que Testemunhas de Jeová são uma farsa enquanto fala sobre o sentido que ele dá pra própria vida:

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"Cos it's all about strength while we walk through the valley of the snipe, heathens

Get thee from my sight, you cats is ever eager

To preach up in my face when you just about scrape to know all that is

How the hell you try to tell me coca-cola got fizz?

I read your pamphlet four times, It don't make sense

You front like you be scholar, Smith smells pretence

Youse best get off your horse, drink your milk, get the frig out"

(“Porque é tudo sobre a força com que caminhamos pelo vale do cinismo, pagãos/ Saia da minha vista, seu gato está muito ávido / Para pregar na minha cara quando você está prestes a descobrir tudo que é / Como diabos você vem tentar me dizer que a Coca-Cola tem bolhas?/ Li seu panfleto quatro vezes, ele não faz sentido/ Você afronta como um estudioso, Smith cheira a pretensão/ Melhor descer do cavalo, beber seu leite, vazar daqui”)

É uma declaração de individualidade e essa individualidade é fortemente sentida no disco todo. Em “Strange Behaviour”, Rodney quebra seu porquinho e leva seus trocos ao P.J. Patel pra descolar um abdômen definido. O Sr. Patel está bem aborrecido com Todder, mas o que ele pode fazer? Nosso homem retorna ao lar chiando. No caminho, ele se encontra com Charmaine, uma velha amiga, (“Não estávamos enroscados, éramos apenas bons amigos”) e eles vão pro seu apartamento beber e papear. Depois de algumas horas, Charmaine surta e conta sua história: ela se envolveu com um traficante e agora há um preço de 10 mil libras pela sua vida. Ela viveu no bem-bom por um tempo, mas agora está apavorada. Na verdade, ela está “trapped in the trade of the oldest trade” (presa no negócio dos mais antigo negócio) e quer saber se o Sr. Manuva está interessado em seus serviços. Ele não faz “no business with no drugs man’s queen” (negócios com a primeira-dama de um chefão das drogas) e diz não. É mais uma declaração de individualidade:

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"It seemed like the planet gone mad

What you staring in my face for?

I told you dudes I can't save ya

What the frig is with this strange behavior?"

(“Parece que o planeta foi à loucura / Por que é que você está me olhando / Já falei pra vocês que não posso salvá-los / Que porra de comportamento estranho é esse?”)

É difícil acreditar que já se foram 15 anos desde que esse disco foi feito. É mais fácil acreditar que nada de tão bom foi lançado na cena do hip hop britânico. O grime dominou o rolê, e isso não é ruim, mas Brand New Second Hand precisa ser escutado outra vez. É um disco que te leva pra dentro do mundo dele. Há um sentimento inquietante, quase místico, que atravessa as meditações de Roots Manuva sobre pobreza, vida urbana, racismo e crime. É bastante inglês: mercadinhos indianos, cofrinhos, insatisfação, cartões de viagem, gritos de “great scot” e vários elementos que fazem com que Manuva nunca soe como um Tupac de quinta categoria. Ele talvez nunca tenha chegado perto disso outra vez, e talvez a cena hoje esteja mais morta do que viva, mas por ter feito Brand New Second Hand, o Roots Manuva merece ser honrado pelos serviços prestados à música britânica.

Pra celebrar o aniversário de 15 anos de Brand New Second Hand, a Big Dada está distribuindo downloads grátis da faixa “Movement”. Aí vai:

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