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Música

Como a carreira de jornalista musical me fez acabar num hospital psiquiátrico

Descobri da pior maneira possível que uma carreira no jornalismo musical é a solução perfeita para quem não quer deixar o trabalho atrapalhar a sua bebedeira.

Todas as fotos foram cedidas pelo autor.

Matéria originalmente publicada no ‘Noisey Guide to Music and Mental Health’, dedicada aos complicados problemas de saúde mental no mundo do trabalho na música, do Noisey Reino Unido.

Há um ditado bastante famoso que diz o seguinte: “escrever sobre música é como dançar sobre arquitetura”. Talvez você o conheça. Sua origem muitas vezes é atribuída a Elvis Costello, Frank Zappa e Martin Mull, ou qualquer um desses daí. Acho que posso dizer que essa citação me fez querer ser jornalista musical, mas aí eu estaria mentindo.

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Mas sem zuera, caí nessa por acidente. Eu era um clichê ambulante: um músico falido que passava o tempo criticando outros músicos; o engraçado é que não conheço nenhum outro jornalista musical que seguiu esse rumo. Graças a uma série de eventos fortuitos, acabei me tornando repórter de uma falecida revista online lá por 2001. A bolha do pontocom ainda estava longe de estourar e havia grana o suficiente rolando de investimentos especulativos pra ajudar a bancar nossos salários. Logo percebi que jamais enriqueceria, e em muitos momentos me encontrava espetacularmente pobre, mas rolava muita coisa massa: CDs grátis (que não valem mais porra nenhuma), viagens, ficar pertinho de artistas — ou ao menos apontar pra eles em uma área VIP zoada e torcer pra que não sacassem —, conhecer meus heróis (o que você deve fazer, aliás), entrar em tudo que é show que quiser, e por último e não menos importante, muita birita e drogas.

O esquema de trabalho no meu novo emprego era extremamente suave, o que significava que inevitáveis noites trabalhadas até tarde logo viravam manhãs, e por vezes tardes, se você ficasse acordado cheirando com o Bobby Gillespie. Encher a cara e usar drogas não necessariamente eram atividades encorajadas, mas faziam parte do pacote, o combustível pra manter o motor rodando e de vez em quando trazer uma inspiração. Toda noite eu encontrava uma banda ou artista enquanto seu RP me bancava, já os finais de semana eram só lazer, o que muitas vezes envolvia beber, com cocaína o suficiente pra garantir que você ficasse 60 horas de pé sem dormir. Pra mim, tudo começou como uma grande aventura. Então, como dito por John Cooper Clarke: “Primeiro é só diversão, daí não é, então é o inferno”. Ou sendo mais duro, tudo parecia uma lindeza até que minha carreira me levou a um hospital psiquiátrico.

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O vício surge de diversas formas. É algo furtivo, que não discrimina idade, gênero, classe ou raça; pode afetar quem for, e em todos os estilos de vida. A “Bíblia” do Alcoólicos Anônimos diz que a bebida é “astuta, desconcertante, poderosa” e por mais que eu diga que se trate de um composto orgânico com base de etanol e lhe conferir personalidade é o tipo de coisa que afasta as pessoas de grupos como a AA, eu entendo o que eles querem dizer. Sei também que drogas e álcool são riscos ocupacionais na indústria musical. Ao longo do tempo, aprendi que o abuso ao longo do tempo pode ser péssimo para a saúde mental.

Não sei como é o esquema para jornalistas mais novos nos dias de hoje; os millennials parecem ser mais conscientes e resistentes aos clichês do rock’n’roll, da mesma forma que o futebol inglês deu uma melhorada com a chegada de Arsène Wenger. Parece haver maior foco na saúde mental e vício em setores criativos do que quando entrei nessa indústria, e a morte de Amy Winehouse 2011 fez com que muitos executivos se ligassem nas consequências de uma cultura de excessos. Quando entrevistei Amy em 2006, passamos o tempo todo zoando o vocalista do Keane que foi pra reabilitação por beber Pimms demais [drinque típico inglês].

Certamente nunca circulei nos mais altos círculos da Babilônia, onde rondavam boatos sobre o Queen fazendo festas com anões que levavam bandejas de cocaína em suas cabeças e Stevie Nicks ter contratado um rapaz para assoprar speed seu rabo adentro com um canudinho a cada quinze minutos. Mas nos anos 90 a coisa tinha uma tendência bem grande a ficar feia. A cultura em torno da indústria musical da época era curtir, mesmo que tivesse muita gente dando duro por trás dos panos. Eu era jovem e resistente o bastante pra escrever matérias e fazer resenhas de shows num ritmo frenético, logo fui contratado como editor em tempo integral.

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Em um primeiro momento, o álcool só aparecia em almoços e pela noite. E em festivais, claro, em que ficar muito doido é até mesmo questão de educação e praticamente inevitável. Mas aos poucos, minha rotina de trabalho permitiu que minha bebedeira crescesse exponencialmente. Copos de cerveja viraram pontuação na prosa do meu cotidiano. Caso fosse entrevistar alguém fora do escritório, dava um tempinho pra tomar uma no The Owl and the Pussycat, na ida antes do papo em si, e outra pra me congratular quando voltava. Por fim, tomava mais uma no bar perto do trabalho. Lembro de ir conversar com Rufus Wainwright na Baker Street completamente manguaçado e fedendo à cana, sem nem levar em consideração que ele estava na reabilitação no ano anterior.

Logo eu não só estava bebendo escondido no trabalho, logo estava indo pro bar pra dar a saideira da noite anterior antes mesmo de chegar no escritório. Algumas manhãs começavam comigo virando uma garrafa de uísque que achei na cama, ou uma latinha de cidra da cômoda. Eu até tomava umas latinhas debaixo da mesa ali pela tarde se dava sede; sei lá se meus chefes sacaram, mas se sacaram, nunca deu nada. Era a vocação dos meus sonhos, mas o trabalho em si logo virou algo secundário.

Eu estava começando a descobrir que uma carreira no jornalismo musical é a solução perfeita para quem não quer deixar o trabalho atrapalhar a sua bebedeira. Estrelas do rock podem ter bastante tempo livre pra encher a cara, mas também se distraem com todos aqueles shows e viagens. Já os jornalistas podem acompanhar tudo ali do bar mesmo, e passar o restante do dia seguinte tentando descobrir o que rolou ao juntar os hieróglifos bêbados que sobraram rabiscados no bloco de notas. Mas sem as benesses de ser uma estrela do rock, o trabalho logo pode virar um inferno. Depois de cinco anos na função, a pilha de CDs nunca ouvidos na minha mesa me deprimia. O sem-fim de bandas de chapeuzinho pós-Libertines tocando skiffle de crackudo me deprimia. Glastonbury, que era um festival tão massa no início, me deprimia. A bebida era a causa, ou o principal fator da minha depressão, mas como tantos outros alcoólatras, foi a última coisa que tentei dar jeito.

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Então, lá por volta de 2009, eu parei de beber (pelo menos por um tempo). Estava cansado de ser assaltado em caixas eletrônicos e acordar no ônibus da madrugada levemente cagado e sem carteira ou relógio. A vida melhorou um tiquinho, mas tentar ficar sóbrio sem qualquer acompanhamento era uma estrada solitária lotada de obstáculos. Na época, aquele papo todo de 12 passos não virava pra mim, e com certeza não existia nenhum manual de como lidar com o vício quando se está na indústria musical. Conhecia alguns colegas de trabalho mais velhos como Steven Wells e John Robb que tinham parado de beber há um tempo, mas não sabia o motivo, e não me sentia à vontade para me abrir com eles e nem pedir seus conselhos. Não tinha mesmo o que fazer e eu me sentia bem perdido.

E o pior de tudo: de saco cheio. Decidi que a melhor forma de lidar com a falta de bebida e os sentimentos bizarros que ela trazia consigo era me entupindo de drogas. Pó sem bebida só me deixava com medo. Não ligava, porque pelo menos sentia algo de diferente. Daí, no All Tomorrow’s Parties de dezembro, o que achava ser a resposta para os meus problemas me apareceu, num pacotinho.

“Experimenta isso aqui”, disse um dos meus colegas de profissão.

“O que é”, perguntei, com o bagulho me batendo no nariz.

“Adubo”, veio a resposta.

E foi assim que conheci a mefedrona.

O baque, de primeira, ficava entre a cocaína e o ecstasy. A chapação logo passava, ou seja, precisava de uma nova dose a cada 15 minutos. Não que isso fosse um problema, porque por 50 paus o carteiro deixava a parada na sua porta, já que dava pra comprar pela internet, bastando inserir os dados do cartão de crédito. E isso logo se tornou sim um problema, porque eu só parava quando esvaziava um pacotinho, o que levava até quatro dias, então ficava alucinando com lápis voadores. É de se pensar que tal experiência seria o suficiente pra me fazer parar, mas logo estava comprando cada vez mais. Meu peso despencou e logo fiquei parecendo o Lux Interior do The Cramps, o que era até legal, por mais que ninguém ao meu redor parecesse pensar assim. Além do que, não conseguia lidar com a “ressaca” se não tinha droga nenhuma, então voltei a beber. Meus amigos ficaram preocupados — e mais — putíssimos comigo. Eu não tinha nada de grana. Daí minha namorada nova linda que havia conhecido quando estava sóbrio me largou, me falando que eu era um fodido. Não restava mais desculpas, estava num trem-bala em direção à ruína.

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Quando a mefedrona foi banida pelo Ministro do Interior Alan Johnson, decidi pedir um “bem bolado” de novas drogas sintéticas online para fazer os testes em busca de um possível substituto. O Benzo Fury foi minha desgraça e, anos depois, seria minha salvação. Perdi memórias de três dias da minha vida, mas alguém de confiança me disse que uma ambulância no leste de Londres me pegou no meio da rua enquanto tentava me cortar com uma lâmina no meio desse apagão. Havia perdido o controle. Voltei a mim mesmo num leito de hospital no dia seguinte e lembro de pensar “Isso aqui deu ruim, hein”.

Aparentemente eu havia me internado voluntariamente, e como o hospital parecia estar cheio de gente louca, pensei logo em dar um jeito de cair fora. Mas depois da avaliação do psicólogo, fui encaixado na Lei de Saúde Mental. A situação toda mudou de figura e logo me vi preso ali por tempo indeterminado com uma lustrosa barba branca, um conto trágico de uma alma problemática que havia caído pelas frestas, passando o resto dos seus dias institucionalizado. Voltei à área comunal e assisti a jogos da Copa do Mundo na África do Sul. A TV de tela-plana era protegida por vidro reforçado, já que o aparelho anterior havia sido destruído por um dos pacientes com o auxílio de uma cadeira. Imaginava se a barulheira das vuvuzelas na torcida não os levariam a tentar destruir a nova.

A enfermeira me chamou em seu escritório e leu uma lista enorme de drogas encontradas em meio ao meu sangue. Era bagulho que não acabava mais. “Há alguém com quem você não gostaria que compartilhássemos estas informações?” ela perguntou. “A polícia?”, respondi, meio que confuso com a pergunta. De cara disse aos meus amigos que tomaria uma “cervejinha da liberdade” quando saísse dali. Todos acharam que seria uma péssima ideia. Tendo passado meses sem me alimentar direito, uma nutrição adequada era o socorro pelo qual meu cérebro adicto clamava, e eu finalmente começava a pensar racionalmente. Aos quatro dias de estadia, me disseram que poderia ir embora. Como era domingo e os psiquiatras todos estavam curtindo seus finais de semana, me disseram que não teriam como me manter ali, apesar de terem me pedido que ficasse mais um dia para passar por nova avaliação.

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“Você está me dizendo que eu posso simplesmente cair fora ou esperar até amanhã, quando vocês possivelmente podem decidir que estou doente de novo e me manter aqui por mais tempo?”

“Sim.”

Decidi ficar mais uma noite. Não queria ter nenhuma dúvida na minha mente quanto à minha sanidade (fora que o rango de lá era uma delícia), e no dia seguinte fiquei aliviado ao receber alta.

Ser internado contra a minha vontade por quatro a cinco dias no Homerton Hospital, loucão, sofrendo de abstinência, suicida e assustado, foi o “fundo do poço” que eu precisava. Há quem insista no erro mesmo quando os alarmes soam aos milhares de decibéis. Tem quem nunca entenda, e as consequências são invariavelmente trágicas. Pedi ajuda posteriormente em um monte de locais, incluindo programas de reabilitação em Hackney que não existem mais por conta de cortes do governo. Encontrei um terapeuta brilhante, fiz os 12 passos, aprendi a meditar e tratei de alguns dos problemas que havia ignorado ao longo de toda a minha vida. O ano seguinte seria dureza comigo tendo que reaprender a fazer as coisas mais simples do mundo e interagir com os outros sem a ajuda de qualquer bebida ou substância, mas cheguei lá, mesmo sendo menos sociável hoje em dia.

“Não dá pra ser pior que ficar trancado numa ala psiquiátrica”, lembro de comentar pesarosamente ao meu padrinho do programa de tratamento, tremendo feito vara verde após entrar nessa de reabilitação.

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“Ah, acredite em mim”, ele disse, “pode piorar muito”.

Estou limpo e sóbrio há seis anos. Ainda sou jornalista musical, e gosto de pensar que trabalho melhor hoje com a cabeça no lugar. Se eu vou a um show ou festival, consigo lembrar o que aconteceu. Tenho uma rede de apoio de outros jornalistas que também não bebem ou se drogam, que tiveram experiências parecidas com a minha. Toda essa cultura em torno da indústria musical parece ser mais sensível agora, com artistas mais novos cada vez mais sensatos, e por mais que meus instintos digam que isso não tem nada a ver com rock’n’roll, o fato de que o mito do rock em si esteja sendo desmistificado e posto de molho não é nada ruim. Tudo bem sofrer pela sua arte, mas vale morrer por ela?

Às vezes penso em fazer outra coisa, aí lembro que não sei como. Se aparecer alguma vaga de dançarino de arquitetura, me avise.

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Tradução: Thiago “Índio” Silva

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