A história política da Croácia vai muito além dos rótulos simplistas
Ilustração: Cassio Tisseo

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A história política da Croácia vai muito além dos rótulos simplistas

Um passado de guerras e um presente com sinais de xenofobia marcam seleção às vésperas de sua primeira final de Copa.

A Croácia é o país mais jovem dos 32 participantes da Copa do Mundo, se considerado o cenário político contemporâneo: o plebiscito pelo qual se separou da finada Iugoslávia completa 27 anos em 30 de outubro. Mas para entender as possíveis ligações de jogadores com movimentos nacionalistas e neonazistas é preciso recuar muito mais no tempo, e entender como se construiu a nação que no domingo disputa pela primeira vez a final do maior torneio do futebol mundial.

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Com 56.542 quilômetros quadrados, o equivalente ao tamanho da Paraíba, o território da atual Croácia foi parte do Império Romano e do Império Bizantino, e começou a ser habitada no século 7 por povos eslavos, etnia da qual fazem parte os croatas. As primeiras tretas com os sérvios, também eslavos, datam do século 16, e a principal causa de dissensão entre eles, além do território, era a religião: os croatas eram católicos, e os sérvios, cristãos ortodoxos.

Na época da Primeira Guerra Mundial, a Croácia era parte do Império Austro-Húngaro, um dos palcos centrais do conflito. Na época, na região dos Bálcãs, havia uma doutrina política conhecida como pan-eslavismo, que defendia a criação de um Estado único para os povos – este seria a Iugoslávia, cuja tradução é “povos eslavos do sul” – os “do norte” seriam poloneses, ucranianos e russos.

Após o fim da guerra e a derrocada do Império Austro-Húngaro, nasceu então o Reino da Iugoslávia, com capital em Belgrado e maioria sérvia, que logo foi contestado pelos croatas. O cenário evoluiu aos trancos e barrancos até 1941, quando o país foi invadido pelo Eixo, já passados quase dois anos da Segunda Guerra. O território iugoslavo foi então dividido, com a Croácia se tornando um Estado independente sob comando de um sujeito chamado Ante Pavelic, respaldado por uma milícia de extrema-direita chamada Ustasha. Basicamente, era uma marionete de Hitler e Mussolini que não resistiu à queda da Itália, e em 1944 o movimento de resistência comunista, liderado pelo marechal Josip Broz Tito, retomou o poder em Belgrado, reconquistando a Croácia no ano seguinte, com o apoio do Exército Vermelho, da União Soviética.

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O curto período de Pavelic e da Ustasha no poder, entretanto, deixou marcas pesadas. Para começar, a “Grande Croácia” que ele sonhava incluía o que hoje é a Bósnia, além de pedaços da Sérvia. Além disso, houve conversões forçadas ao catolicismo e uma enorme limpeza étnica: estima-se um número que varia de 500 mil a 700 mil mortes de sérvios e de outras minorias, como judeus, muçulmanos e ciganos. Quando o regime estava se dissolvendo e o Eixo a ponto de perder a guerra, ainda houve tempo de estabelecer uma linha direta de fuga, com auxílio de padres e bispos católicos, que trouxe líderes nazistas alemães e croatas à América do Sul. A história é contada no livro “A Verdadeira Odessa”, do escritor argentino Uki Goñi.

União à força não faz a força

Embora fosse nascido em território croata, Tito era um defensor do pan-eslavismo, e uma de suas primeiras medidas foi o renascimento da Iugoslávia, agora uma república socialista. O dirigente sempre teve uma relação muito mais independente com Moscou em relação a outros países do bloco comunista, mas comandou um regime autoritário cuja medida mais polêmica foi o incentivo às migrações: seria mais fácil, para ele, controlar o poder e garantir uma união nacional se os povos se misturassem naturalmente – ele mesmo tinha pai croata e mãe eslovena. Mas as cicatrizes das décadas passadas nunca se fecharam totalmente e os croatas sempre se viram como os patinhos feios de uma federação construída na marra.

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Após a morte de Tito, em 1980, os movimentos separatistas começaram a ganhar força até chegar a 1991, quando Eslovênia e Croácia pediram a independência por meio de plebiscitos. A essa altura, o comunismo já se tornava um fantasma: o Muro de Berlim caiu em 1989 e a Alemanha se reunificou no ano seguinte; ainda em 1989, em plena noite de Natal, o ditador romeno Nicolae Ceausescu foi fuzilado com transmissão ao vivo pela TV; em 1990, o sindicalista Lech Walesa se elegeu presidente da Polônia; em agosto de 1991, tanques cercaram o Kremlin para tentar derrubar o líder soviético Mikhail Gorbachev, mas o que acabou mesmo, meses depois, foi a União Soviética.

A independência da Croácia foi pedida nesse cenário, mas o governo da Iugoslávia deu de ombros e tentou manter o país unificado na base da bala. Estabeleceu-se uma guerra que se arrastou até 1995, quando foi fechado o acordo definitivo de cessar-fogo. Na prática, o resto do mundo já aceitava a Croácia desde 1992, ano em que o país até disputou a Olimpíada de Barcelona – foi medalha de prata no basquete masculino, derrotado apenas pelo Dream Team de Michael Jordan, Magic Johnson e Larry Bird.

Uma das cidades atingidas pelo conflito servo-croata foi Zadar, na costa do Mar Adriático. Num vilarejo ali perto vivia um garoto de 5 anos que foi obrigado a fugir com o que restava de sua família – o pai estava lutando no exército croata e o avô foi assassinado por milicianos sérvios. Ele passou quatro anos morando num hotel abandonado no centro de Zadar que virou abrigo de refugiados. No próximo domingo, esse menino vestirá a camisa 10 e a faixa de capitão da Croácia contra a França: seu nome é Luka Modric.

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Feridas abertas, sentimentos incomparáveis

Outros jogadores da seleção sofreram com os horrores da guerra nos Bálcãs. As famílias do atacante Mario Mandzukic e do zagueiro Dejan Lovren tiveram que fugir para a Alemanha, mas foram obrigadas a voltar à Croácia anos depois, já em tempos de paz, porque não foram aceitas como refugiadas permanentes.

As lembranças, porém, não se apagam. E talvez expliquem porque parte do nacionalismo croata tenha um pé no neonazismo que vem crescendo na Europa, nos últimos anos de forma mais assustadora – e não só na Alemanha, que combate tais manifestações com vigor, mas curiosamente em países que sofreram nas mãos de Hitler e seus aliados, como a Polônia, cuja invasão, aliás, foi o estopim da Segunda Guerra. Afinal, se o grande período de liberdade croata esteve ligado ao nazismo, na década de 1940, não é difícil inventar um silogismo, por mais falacioso que seja, de que só o neonazismo engrandecerá novamente o país.

O atual governo da Croácia é teoricamente moderado de centro-direita. A presidente Kolinda Grabar-Kitarović virou figurinha fácil da TV durante os jogos, mas quem manda de verdade é Andrej Plenkovic, primeiro-ministro desde outubro de 2016, membro do partido HDZ (em português, União Democrática Croata). É o mesmo do líder da luta pela independência a partir de 1989, Franjo Tudman, que se apresentava na época como “nacionalista e anticomunista”. Hoje, oficialmente o partido defende ideais liberais e capitalistas, mas para compor a maioria do parlamento já foi obrigado a ceder espaço a legendas mais radicais na defesa do nacionalismo.

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E aí entram os sinais dados pela própria seleção, como o vídeo em que é ouvida no vestiário a canção “Bojna Cavloglave”, escrita por um roqueiro chamado Marko Percovic. A letra traz trechos que lembram vários dos hinos nacionais executados na Copa, como: “Estamos lutando por nossas casas, nossos irmãos e nossa liberdade”. Mas o que pega mesmo é o começo da música: “Estamos prontos para nossa casa” é um dos lemas da Ustasha, da qual Percovic já se declarou admirador.

Um problema, que puxa outro…

O zagueiro Domagoj Vida e o assistente técnico Ognjen Vulkojevic colocaram uma pimenta extra na confusão ao aparecer em vídeo dizendo “Glória à Ucrânia” após a vitória sobre a Rússia, nas quartas de final. Vida passou cinco anos jogando no Dínamo de Kiev, principal representante na bola do nacionalismo ucraniano – e a Ucrânia desde 2013 está em guerra declarada com a Rússia por causa da Crimeia, como já citamos nesta série. Há uma certa identificação entre croatas e ucranianos em contraponto à aliança entre Sérvia e Rússia que vigora desde os tempos do comunismo. Vale lembrar que a Ucrânia também foi engolida como parte de um país maior e só reconquistou sua independência em 1991.

Embora tenha dito que era apenas uma manifestação de apoio a um país onde foi bem recebido como atleta, Vida levou uma bronca da Fifa e vaias, muitas vaias, a cada vez que pegou na bola durante o jogo com a Inglaterra. Vulkojevic foi afastado pela própria federação croata e mandado de volta para casa, além de pagar uma multa de cerca de R$ 60 mil. Os cartolas ainda vieram a público pedir desculpas.

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Não é o primeiro problema do gênero para a Croácia. Em 2013, o zagueiro Simunic puxou os gritos de guerra da Ustasha dentro de campo, com microfone e tudo, para comemorar a classificação para a Copa no Brasil após uma vitória contra a Islândia. Tomou 10 jogos de gancho, não pôde jogar o Mundial e hoje está fora da seleção. Em 2015, antes de um jogo pelas eliminatórias da Eurocopa contra a Itália, uma suástica apareceu discretamente pintada no gramado do estádio de Split, o que provocou multa e punição da Uefa: dois jogos sem torcida e pedido de desculpas. É como diz o ditado: gato escaldado tem medo de água fria.

Talvez seja difícil demais para a gente, no Brasil de 2018, entender o que se passa na cabeça de povos que estiveram em guerra até tão pouco tempo atrás. Que tipo de sentimentos move um Modric ou um Lovren depois de tudo o que suas famílias e eles mesmos passaram? O que se pode extrair de tudo isso é que não, a seleção da Croácia não é um bando de nazistas, mas, sim, tem gente ali dentro que, de certa forma, simpatiza com ideias xenófobas e supremacistas. Isso significa que devemos torcer contra? Bem, se considerarmos que do outro lado está a França, país com passado colonialista e presente cheio de gente xenófoba, se o seu critério de torcida for esse talvez seja melhor desligar a televisão. Ou então torcer pela bola, por um grande jogo, gols bonitos, muita emoção, quem sabe até uns pênaltis – e combater, depois, as bobagens e escrotices que forem ditas.

Fernando Cesarotti, 40, é jornalista e professor universitário. Assina a coluna Geopolítica das Copas , sobre futebol e política, durante o Mundial da Rússia.

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